quinta-feira, 30 de junho de 2011

EM 'CAIXINHAS'



Se, em vez de meros "papagaios de realejo", muitos professores ajudassem a formar "seres pensantes", o mundo estaria bem melhor. 

LITTLE BOXES
Malvina Reynolds / Versão: Nara Leão

Uma caixa bem na praça
Uma caixa bem quadradinha
Uma caixa, outra caixa
Todas elas iguaizinhas

Uma verde, outra rosa
E uma bem amarelinha
Todas elas feitas de tic tac
Todas elas iguaizinhas

As pessoas nessas casas
Vão todas pra universidade
Onde entram em caixinhas
Quadradinhas
iguaizinhas


Saem doutores, advogados
Banqueiros de bons negócios
Todos eles feitos de tic tac
Todos, todos iguaizinhos

Jogam golf, jogam pólo
Bebendo um bom martini dry
Todos têm lindos filhinhos
Com netinhos engomadinhos

As crianças vão pra escola
Depois pra universidade
Onde entram em caixinhas
E
saem todas iguaizinhas


Os rapazes ficam ricos
E formam uma família
Todos eles em caixinhas
Em
casinhas iguaizinhas


Uma verde, outra rosa
E outra bem amarelinha
E são todas feitas de tic tac
Todas, todas iguaizinhas

QUALIDADES DO PROFESSOR
Se há uma criatura que tenha necessidade de formar e manter constantemente firme uma personalidade segura e complexa, essa é o professor.
Destinado a pôr-se em contato com a infância e a adolescência, nas suas mais várias e incoerentes modalidades, tendo de compreender as inquietações da criança e do jovem, para bem os orientar e satisfazer sua vida, deve ser também um contínuo aperfeiçoamento, uma concentração permanente de energias que sirvam de base e assegurem a sua possibilidade, variando sobre si mesmo, chegar a apreender cada fenômeno circunstante, conciliando todos os desacordos aparentes, todas as variações humanas nessa visão total indispensável aos educadores.
É, certamente, uma grande obra chegar a consolidar-se numa personalidade assim. Ser ao mesmo tempo um resultado — como todos somos — da época, do meio, da família, com características próprias, enérgicas, pessoais, e poder ser o que é cada aluno, descer à sua alma, feita de mil complexidades, também, para se poder pôr em contato com ela, e estimular-lhe o poder vital e a capacidade de evolução.
E ter o coração para se emocionar diante de cada temperamento.
E ter imaginação para sugerir.
E ter conhecimentos para enriquecer os caminhos transitados.
E saber ir e vir em redor desse mistério que existe em cada criatura, fornecendo-lhe cores luminosas para se definir, vibratilidades ardentes para se manifestar, força profunda para se erguer até o máximo, sem vacilações nem perigos. Saber ser poeta para inspirar. Quando a mocidade procura um rumo para a sua vida, leva consigo, no mais íntimo do peito, um exemplo guardado, que lhe serve de ideal.
Quantas vezes, entre esse ideal e o professor, se abrem enormes precipícios, de onde se originam os mais tristes desenganos e as dúvidas mais dolorosas!
Como seria admirável se o professor pudesse ser tão perfeito que constituísse, ele mesmo, o exemplo amado de seus alunos!
E, depois de ter vivido diante dos seus olhos, dirigindo uma classe, pudesse morar para sempre na sua vida, orientando-a e fortalecendo-a com a inesgotável fecundidade da sua recordação.

MEIRELES, Cecília. Crônicas de Educação v. 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, 262 pp.

PROFESSOR NOTA ZERO

Dos 214 mil professores que se submeteram à prova da Secretaria Estadual da Educação de São Paulo, 3.000 tiraram zero: não acertaram uma única questão sobre a matéria que dão ou deveriam dar em sala de aula. Apenas 111, o que é estatisticamente irrelevante, tiraram nota dez. Os números finais ainda não foram tabulados, mas recebo a informação que pelo menos metade dos professores ficaria abaixo de cinco. Essa prova tocou no coração do problema do ensino no Brasil, o resto é detalhe.
Como esperar que um aluno de um professor que tira nota ruim ou mediana possa ter bom desempenho? Impossível. Se fosse para levar a sério a educação, provas desse tipo deveriam ser periódicas em toda a rede (assim como os alunos também são submetidos a provas). Quem não passasse deveria ser afastado para receber um curso de capacitação para tentar se habilitar a voltar para a escola.
A obrigação do poder público é divulgar as listas com as notas para que os pais saibam na mão de quem estão seus filhos. Mas a culpa, vamos reconhecer, não é só do professor. O maior culpado é o poder público que oferece baixos salários e das universidades que não conseguem preparar os docentes. Para completar, os sindicatos preferem proteger a mediocridade e se recusam a apoiar medidas que valorizem o mérito.
O grande desafio brasileiro é atrair os talentos para as escolas públicas - sem isso, seremos sempre uma democracia capenga. Pelo número de professores reprovados na prova, vemos como essa meta está distante.

DIMENSTEIN, Gilberto.
08/02/2009 – Folha Online

CULTURA É A MÃE!
Elisa Lucinda
Estou certa de que muitos jovens abandonam a escola porque não acham nenhuma graça nem serventia no conteúdo geral dela. Fundamentada no espírito competitivo, a escola está longe de ser um lugar agradável para muitos. Metade de nossos jovens em idade de treze a quinze anos está fora do ensino médio. Por quê?
Na escola estão as grades, as curriculares inclusive, aonde (sic) o aluno tem um ano para caber naquele esquema de seleção. Só que cada um é um. É perigoso criar rótulos de: o reprovado, o bagunceiro, o impossível, o respondão. Muitas vezes, quem começa a discriminação é quem deveria ensinar a não se ter discriminação.
Mas o professor também está despreparado, foi sacaneado na sala de aula e agora vem dar o troco, como fazem os que estão nas entidades mais fechadas, cuja forte hierarquia pode gerar alguns esquemas sadomasoquistas de convivência. Por isso tem professor que dá zero na turma inteira, punitivamente, sem nem desconfiar que essa também é sua nota. Ora, se foi contratado pra ensinar e uma turma inteira está sem saber, isso revela o seu fracasso, o péssimo desempenho de uma bela experiência chamada aula.
Dou aula. Adoro. E como conheço outros apaixonados que, quando entram em sala, nem eles nem alunos veem o tempo passar, sei de ótimos mestres que não merecem esta minha crítica. O aluno, por sua vez, não entende porque raramente lhe é explicado que estudar serve para a vida e é para isto; para melhorarmos o mundo e entendermos melhor nosso papel nele.
E mais, aproveitamos as descobertas das ciências para viver logisticamente melhor neste mundo. Par isso, Geografia e História têm que se entender como matérias complementares. Não há como estudar uma geografia sem considerar sua gente, que agirá de acordo com seu clima e comerá de acordo com sua vegetação e, nessas bases concretas, muito de sua abstração é construído: seus mitos, seus ritos, as histórias inconscientes e conscientes de um lugar fazem aquela matéria.
Tudo só existe relacionado, e aí é maior do que parece. Na verdadeira democracia do saber, quem faz essa costura melhor do que ninguém é a cultura. É ela quem faz o link. A nova escola está começando a perceber que, para estudar o Nordeste, pouca coisa pode ser mais didática do que a literatura de “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos; mas ainda temos seu Guimarães Rosa e mais os cordéis todos, que nos levam ao colo do mais ardente sertão, contanto e cantando a história que, aí, em vez de se fixar na base da decoreba, se fixa nas bases da emoção.
Ainda não usamos a arte como prevenção, mas já entendemos que ela salva. Por isso, ela é quem estava primeiro a receber, na triste volta à escola, os alunos traumatizados da chacina de Realengo. Quem se não a arte para receber esses pequenos e restaurá-los? Pois lhe digo que, onde tudo falha, a arte pode ser estrela, rainha, mãe e guia. Poesia, música, dança, canto e teatro têm que estar na sala de aula, ser currículo. Arte é cultura, dupla face materna de um cidadão. Essa mãe desejo a todos. Órfãos ou não
A GAZETA Vitória (ES), domingo, 8 de maio de 2011

segunda-feira, 27 de junho de 2011

LISPECTOR



"Perdoando Deus" é um dos mais belos textos de Lispector. A voz é da atriz Aracy Balabanian.

PERDOANDO DEUS
           Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era tour de propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que me sentia satisfeita com o que via.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo, e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contiguidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar – não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele – mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
… mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
"Perdoando Deus", Clarice Lispector: contos por Aracy Balabanian, LCC002, Luz da Cidade, 1998.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

SEMPRE O AMOR



O AMOR ACABA

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

CAMPOS, Paulo Mendes. O amor acaba: crônicas líricas e existenciais. 2a ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 21-22).

domingo, 19 de junho de 2011

AMIZADE



A orquídea aí de cima foi presente de minha amiga Adriane Fin.

LIVRES PARA AMAR
Elisa Lucinda

Os frios ventos de junho me trouxeram à Bahia com o “Parem de falar mal da rotina” e eu acabei por parar logo na trezena de Santo Antônio da Mabel Veloso, poeta maravilhosa que vem a ser irmã de Caetano e Bethânia e mãe de Belô. De repente me dei foi conta do quanto amo Mabel. Somos amigas-irmãs sem esforço. Quando me vê, seu rosto ilumina e meu coração dispara. Sabe-se que está garantida a frigideira de maturi que ela vai fazer pra mim. Nos presenteamos, compartilhamos histórias, gargalhadas, trotes e poemas.
Amigo também é amor. Quando conhecemos um amigo novo (sic), o sentimento parece muito com a paixão. Fazemos planos juntos: festas, viagens, cinemas. A amizade goza de privilégios que fazem falta à saúde do amor, dito assim, romântico-carnal. Por exemplo, entre amigos é permitido (sic) períodos de afastamento, respirações, distâncias saudáveis que vão regando a saudade e o caminho de volta para a casa onde mora o afeto. Já no amor, abusamos do excesso de presença e brigamos na exigência de querer toda a vida do outro exposta a nós. Como um “reality show” autorizado pelo outro, observado, como prova de seu amor. E, em verdade, ser o que se é não é uma oposição ao outro.
Com o amigo, embora tenhamos compromisso afetivo, a largura da liberdade desse laço nos permite não dar tanta satisfação assim. E os respeitamos, seus sonhos e desejos. Queremos ajudá-lo a realizá-los, e isso é também fundamento de grande utilidade para o amor-amor.
Por isso, sem querer, há amores que não são compostos de amantes, mas de escravos. E por causa dessas prisões o amor perde muitas vezes a luta. Coitado, também pudera! Pode ele viver bem em cárcere privado se amar é querer bem? Sem contar as coisas que o amor não compreende e das quais tem que dar conta mesmo não sendo de sua alçada. Brigamos porque o outro perdeu a tampa da pasta de dente ou por causa da bendita toalha molhada sobre a cama. Já o dinheiro, vi acabar com tantos casamentos e amizades!
Se a gente reparar, há segredos que só a um único amigo confidenciamos e não gostaríamos que o nosso amor soubesse. Talvez por isso o ideal pareça ser termos o amigo e o amor fundidos num mesmo companheiro. Ou não? Ora, se a amizade é um estágio da árvore do amor, em que lugar a colocaríamos? Do amor, a amizade é princípio ou o seu estágio mais evoluído?
Nela somos mais flexíveis. Tem muita gente no mundo e não há restrição por parte do outro; você pode fazer amigo novo (sic) todo dia se quiser. E quando apresentamos um amigo ao outro que se tornam grandes amigos também, não nos dá orgulho? Não nos sublinha a coerência afetiva e nos confirma como tribo e rede? A mesma dinâmica no caminho do amor não tem normalmente o mesmo alegre desfecho-ciranda. Ao contrário, no amor isso dá guerra.
No mês dos namorados, que se inclua em seus cuidados as riquezas e as seguranças de uma amizade. Talvez seja o que falte à dinâmica amorosa. Uma pitada de cada ingrediente da amizade ao amor romântico pode nos levar a crer que a amizade é uma das evoluções do amor. Sem seu fundamento, casais e amigos se vigiam e se sacaneiam loucamente. A amizade como componente na poção amorosa faz milagres. Observe bem a triste fatalidade: onde houver miséria humana está ali ou ali esteve a falta de amor amigo, respeitoso, e de suas cúmplices possibilidades.

Fonte: A GAZETA, 19 de junho de 2011.


PRA EU PARAR DE ME DOER
Milton Nascimento / Fernando Brant

Mais que a dor do amor
Viver a dor
Me doeu
Eu quero mesmo é ser feliz
Amar amor

Quem não semear
Não vai colher
Ai de quem
É um e nunca será dois
Por não saber

Quem irá me valer?
São pessoas, é a caminhada
Quem irá me valer?
São meus sonhos no pó da estrada

Quem irá me valer?
É o sorriso que guardo comigo
Quem irá me valer?
É o segredo de fazer amigo

Fonte (CD): "Pra eu parar de me doer", Milton Nascimento, Encontros e despedidas, PolyGram 827638-2, 1997.

terça-feira, 14 de junho de 2011

A CAPATAZIA 'NA' LÍNGUA PORTUGUESA



Eis aí os melhores professores de LÍNGUA PORTUGUESA. Alguém duvida?


A CAPATAZIA ‘NA’ LÍNGUA PORTUGUESA
Por Fábio Brito
Sinto-me no século XIX quando ouço alguém dizer que “fulano é professor de gramática”. Pois é exatamente assim que muitos cursinhos (e faculdades também) denominam o profissional a quem cabe o ensino das regras da gramática normativa (parece-me que eles são incumbidos somente disso). Muitos até sentem-se orgulhosos, gabam-se da ‘decoreba’ das exceções das regras. Pior: não só se gabam disso, mas cobram – com requintes de crueldade – essas benditas exceções de seus alunos. Sem pudor, jogam “cascas de banana” para que os incautos alunos derrapem mesmo. E o tombo, não raro, é feio: reprovações e mais reprovações em cursos ou concursos (muitos concursos, hoje em dia, privilegiam o texto. Que bom! Os tempos estão mudando). Detalhe: conheço bastantes regras e exceções, mas não as uso como "método punitivo". Prefiro privilegiar o texto, a leitura. Pausa: certa vez, ouvi de uma de minhas professoras no curso de Letras que “gramática normativa é livro de consulta”, como os dicionários. Concordei plenamente com ela. Há uns bons anos, essa minha professora já estava muito à frente de seu tempo. Outros professores, no entanto, nem parecem estar no século XXI, mas no XIX, ou no XVIII...
Recentemente, em matéria publicada em um jornal de nosso Estado sobre a prova do ENEM, havia a opinião de dois “professores de gramática” acerca dessa prova. Um deles, inclusive, comentou que essa prova volta-se mais à interpretação de textos, o que libera o aluno da preocupação excessiva em “decorar as regras”. Mais adiante, esse mesmo professor diz que o aluno que é “bom em gramática” acaba, diante desse tipo de prova, sendo prejudicado (?!), tendo em vista seu nervosismo, o que pode acarretar confusão no momento de interpretação do texto. Ih! Polêmica à vista!
 Minha Santa Margarida, ajude-me! "Como é que é mesmo"?! Deixe-me ver se entendi: o aluno que é “bom em gramática” pode ficar enrolado na interpretação de um texto? Aaaaaah! Acho que entendi. O “bom de gramática” é o aluno “ferinha” nas regras, mas incompetente (desculpe-me da palavra "dura") 'para' a leitura e a produção de textos? Desconfio de que muitos “professores de gramática” também pequem na leitura e na interpretação de textos (não estou ‘me’ referindo aos professores citados, que nem conheço). Hum... Os tais alunos “ferinhas” em gramática talvez tenham herdado isso de algum professor... também “ferinha” no mesmo quesito. Quem sai aos seus não degenera, não é mesmo? É a velha história do discípulo seguindo o mestre. 
           Nessa mesma matéria do jornal a que me referi, outro professor, também “de gramática”, afirma que o ideal seria que a prova do ENEM mesclasse interpretação de textos e regras gramaticais. Ou seja, para ele, e para muitos outros, o ensino da língua portuguesa parece funcionar por meio de compartimentos estanques: interpretação de texto de um lado, “regras gramaticais” de outro. Santo Deus, preciso de ajuda!
         Há um bom tempo nessa vida de professor de LÍNGUA PORTUGUESA, sempre condenei essa divisão mais que tacanha entre “regras de gramática”, como dizem, e “interpretação de texto”. Tudo é, ou deveria ser, aula de LÍNGUA PORTUGUESA. Com isso, não estou dizendo que as tais regras não devam ser ensinadas. A norma culta, como disse João Ubaldo Ribeiro*, é necessária “para preservar e aprimorar a precisão da linguagem científica e filosófica, para refinar a linguagem emocional e descritiva, para conservar a índole da língua, sua identidade e, consequentemente, sua originalidade”. O problema é “como” ensinar essas regras. Por que, então, não as ensinar (nem todas, é claro) por meio de textos, em vez de, dogmaticamente, “ensiná-las” (?) de forma isolada, ou seja, dissociada de um texto? É provável que muitos professores, e escolas,  não simpatizem com a “gramática textualizada”. Ops! Mais perigo à vista: gramática textual não significa apanhar textos literários - como muitos, irresponsavelmente, ‘o’ fazem – e usá-los como pretexto para a cobrança de fatos gramaticais. Agindo assim, destroem o literário e afastam os estudantes da literatura, da qual muitos têm verdadeira ojeriza. Cuidado! Não insistam em mais esse absurdo.
           Essa divisão entre “professor de gramática” e “professor de interpretação de texto” está bem disseminada por aí, para meu espanto e de outros profissionais. Recentemente, em texto sobre a polêmica cartilha do MEC que “ensina a escrever errado”, como disseram, um famoso músico brasileiro também usou a expressão “professor de gramática”. E ele foi além: disse que o pessoal da linguística adora odiar esses professores. Não é por aí. Pelo que sei, esse “pessoal da linguística” não tem uma visão tacanha e obturada acerca da LÍNGUA PORTUGUESA. Para esses profissionais, todos nós falamos diversas “línguas”: a das pessoas com "baixo nível de escolaridade"; a das crianças; a das pessoas do interior do país; a das pessoas mais velhas... e por aí vai.
 O “povo da linguística” nos ensina as variações linguísticas, que são uma espécie de distintivo e que contribui para a identidade dos grupos. Todas essas “línguas” não podem ser catalogadas como “certas” ou “erradas”, uma vez que elas funcionam... e muito bem. O que ocorre, às vezes, é o que chamamos de inadequação. Por exemplo: se, num bate-papo informal, “dano” a empregar uma linguagem complicada e altamente rebuscada, estarei sendo, no mínimo mentecapto. O mesmo ocorre com os alunos que, em textos avaliativos do curso de Letras, por exemplo, que exigem a variante culta da língua, insistem em usar a linguagem que eles empregam no MSN. Eis outro caso de inadequação. Ou seja, estou falando de "situacionalidade": cada situação de comunicação exige um tipo de texto. Difícil entender isso? Acho que não. Para alguns “professores" talvez seja. Paciência!   
         Como resumo dessa ópera toda, posso dizer que a solução está na literatura, a melhor professora de LÍNGUA que temos, mas que poucos, infelizmente, consultam. Basta que se recorra a Machado, Clarice, Rosa, só para citar três que são fundamentais. Estão nas obras bem escritas as melhores aulas de LÍNGUA PORTUGUESA. Entretanto, muitos não sabem disso. E, em vez de livros e mais livros para seus alunos, despejam regras e mais regras, exceções e mais exceções sobre os coitados. E a tirania de muitos “professores" parece não ter fim. De "açoite em punho", eles não pensam duas vezes: erro é erro e pronto! Se, em vez de escrever "exceção", o pobre do aluno usar dois SS, coitado. Trezentas chibatadas e, em seguida, banho com água e sal. Não faltam capatazes da LÍNGUA PORTUGUESA. Perdoe esses tiranos, meu Pai, porque eles não sabem o que fazem.
 
* “Observações de um usuário”, João Ubaldo Ribeiro, O GLOBO, 29 de maio de 2011.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

O UNICÓRNIO PODE ESTAR NO JARDIM

O moleque aí da foto sou eu... aos 8 anos. Lembrei-me de Casimiro de Abreu. Detalhe: eu já sabia que seria professor. Acho que, até hoje, não fiz feio.


           O UNICÓRNIO PODE ESTAR NO JARDIM
           Por Fábio Brito

Estou ‘careca’ de dizer: a escola não precisa de bons computadores, mas de bons professores. Sei que, com esse tipo de declaração – que volta e meia atrevo-me a dar - vai chover pedrada. Não há problema. ‘Que’ venham as pedras! Há tempos reforcei meu guarda-chuva (ou seria “guarda-pedra”?).
Pois é, faz um tempão que tenho ouvido por aí um discurso para lá de rançoso, bolorento e que me causa certo fastio: “a escola precisa acompanhar a evolução tecnológica. Caso contrário, ‘perderá o bonde da história’. Ela tem de estar atualizada (leia-se: equipada com computadores de última geração)”. Haja espaço para esse discurso mais que mofado! Argh!
Decididamente, não acredito em mudanças desse tipo. De que adianta ser expert em tecnologia, mas não ter a mínima competência para uma educação de qualidade? Para mim, grandes mudanças na educação ocorrerão se o professor for competente. Caso contrário, o que chamam de avanço em educação não passará (não passa!) de mera fachada, de engodo mesmo. Podem argumentar que o investimento em educação tem aumentado, que “isso”, que “aquilo”. Tudo bem. Sabemos que investir nos professores é fundamental. No entanto, o resultado desse investimento tem de aparecer. O resultado tem, necessariamente, de desaguar na aprendizagem do aluno, no resultado que ele apresentar. No entanto, o que vimos por aí, infelizmente, é um pessoal malpreparado (e malvisto), sem o mínimo de bagagem para estar em sala de aula e sem a mínima competência para trabalhar com esse “negócio” chamado educação.
Como medir, então, o preparo (ou o despreparo) do professor? Isso é mensurável? Claro que é! Só para começar, há umas perguntinhas básicas que nos dão informações valiosas. Por exemplo: - Professor, quantos livros você leu no último mês? Pelo menos um? A quantas peças de teatro você assistiu nos últimos seis meses? A pelo menos uma? Quantos CDs você ouviu no último mês? Um? Quantos filmes você viu no último mês? Quantos jornais e revistas você costuma ler durante a semana? Sei que, para a maioria, não deve ser fácil responder a quaisquer dessas perguntas, embora elas sejam bem simples. Ou melhor: deve ser fácil sim. Se muitos forem sinceros, há muita gente que nunca leu um livro, que nunca assistiu a uma peça, que nunca viu um filme, que não lê jornais ou revistas... Xiiii! Ah! O desespero não para por aí: vão aparecer outras desculpas, como “a falta de tempo”, que é e-t-e-r-n-a. Tempo, como sempre digo, é questão de prioridade. O que não for prioritário não entra em minha escala, ok? Algum problema?
 Pois é, há algo de podre no “reino da educação”. A situação não pode, simplesmente, ser essa. Trabalhar com educação exige – ou deveria exigir – acesso constante a bens culturais. No entanto, para a maioria, isso é visto como luxo (quando não dizem frescura e ainda ironizam). Nem vou comentar a velha história da “falta de dinheiro”. Por quê?! Porque ele, o dinheiro, não falta para muita coisa, principalmente para as mais fúteis. Entretanto, falta para livro, falta para filme, falta para peça de teatro, falta para música. Não falta, por exemplo, para a roupinha de marca com que a criatura exibirá a “fina estampa” (muito fina!) nas festinhas. Preciso dizer mais? Estamos entendidos? Fui claro?
Talvez boa parte da culpa (sem medo de usar tal palavra) pelo estado em que se encontra a educação neste país deva ir para a conta da velha história – ideia mais do que disseminada - de que ser professor é algo messiânico. Sem essa! Vocação para messias? Decididamente não tenho. Sempre que ameacei andar sobre as águas, o camisolão saiu molhado. Aposentei essa ideia bem cedo. Querem mais variações sobre o mesmo tema? “Ser professor é um sacerdócio”. Oooooh! Sem essa “coisa” pesadona de sacerdócio! Que sacerdócio o quê? Professor é, sim, profissão nobre, venerável e superior e, por isso mesmo, exatamente por isso, precisa ser bem remunerada. Mas não se trata, aqui, de remunerar bem gente incompetente. Aliás, gente incompetente nem deveria estar trabalhando. Deveria, sim, tornar-se competente primeiro. Ou melhor: deveria descobrir a vocação, que todos têm... ou não? Quem sabe muitas pessoas que, hoje, estão na educação não estariam bem melhor, e felizes, em outras áreas? Basta descobrir o “cantinho” e ser feliz “nele”. O unicórnio pode estar no jardim dessas pessoas. Entretanto, muita gente não consegue enxergá-lo.
Acho deprimente procurar a educação como refúgio, como cemitério de elefantes, como última opção depois de fracassar em concursos e mais concursos. Não é por aí o caminho. Não é pedir muito que, em quaisquer profissões, as pessoas tenham preparo, competência e dedicação... e talento.
E por falar em preparo, ouço, frequentemente, pessoas dizerem que têm participado de muitos cursos, que a escola tem investido bastante nisso, que o município e o Estado têm investido naquilo e mais um monte de chorumelas. No mesmo instante, olho com “o rabo dos olhos”. Cursos?! Que cursos? Esses que não medem nada? Esses que não avaliam as pessoas nem antes, nem durante e muito menos depois? Esses de que muita gente sempre “dá um jeitinho” de fugir? Poupem-me desse tipo de “atualização”. Se é só para ter mais um diploma a contar pontos para provas e mais provas de títulos, melhor nem fazer esses tais cursos.
        O que vimos, então, nesse cenário deprimente, é gente frustrada, revoltada e com uma má vontade imensurável. É gente amarga à beça ocupando algum espaço na educação. Deus me livre!

quarta-feira, 8 de junho de 2011

MAIS PALAVRAS...



UMA PALAVRA
Chico Buarque

Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra

Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra
Que se produz
Muda
Feita de luz mais que de vento, palavra

Palavra dócil
Palavra d’água pra qualquer moldura
Que se acomoda em balde, em verso, em
                                                       [mágoa
Qualquer feição de se manter palavra

Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra

Talvez, à noite
Quase-palavra que um de nós murmura
Que ela mistura as letras, que eu invento
Outras pronúncias do prazer, palavra

Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra


HOLLANDA, Chico Buarque de. Tantas palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma ideia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento. Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos.
 Clarice Lispector


PALAVRAS
Luiz Gonzaga Jr.

Palavras, palavras, palavras
Eu já não aguento mais
Palavras, palavras, palavras
Você só fala, promete e nada faz
Palavras, palavras, palavras
Desde quando sorrir é ser feliz?
Cantar nunca foi só de alegria
Com tempo ruim
Todo mundo também dá bom-dia
Cantar nunca foi só de alegria
Com tempo ruim
todo mundo também dá bom-dia

“Palavras”, Luiz Gonzaga Jr., Luiz Gonzaga Jr., Odeon, Rio de Janeiro, 1973.



MAMA PALAVRA
João Bosco e Francisco Bosco

Se disparada pelo amor
Palavra-bala
Na boca do ditador
Toda palavra cala
Ô, mama
Cala palavra
Ô, mama, ô, mama
Mama palavra
Quando não se quer ouvir
Palavra-mala
Quando não se faz sentir
Pobre palavra rala
Ô, mama
Rala palavra
Ô, mama, ô, mama
Mama palavra
Em volta da mesa do bar
Palavra-porre
Se o tédio me assaltar
Palavra me socorre
Ô, mama
Cada palavra
Ô, mama, ô, mama
Mama palavra
Se gritar pega ladrão
Palavra corre
Quando não se tem tesão
Toda palavra morre
Ô, mama
Morre a palavra
Ô, mama, ô, mama
Mama palavra
Mãe de todos nós
Dos sem-mãe
Dos sem-voz
Na fala do policial
Palavra-malha
No Distrito Federal
Toda palavra encalha
Toda palavra encalha
Aquela que não funcionar
Palavra-falha
Aquela que não se juntar
Vira palavra-tralha
Tralha
Quando tudo fala igual
Palavra-palha
Pra tudo que é marginal
Palavra que batalha
Palavra que batalha
Aquela que não funcionar
Palavra-falha
Aquela que não se juntar
Vira palavra-tralha
Tralha

“Mama palavra”, Arnaldo Antunes, Songbook João Bosco – vol. 1, LD64-03/03, Lumiar Discos, Rio de Janeiro, 2003.



PROCURA DA POESIA

(...)
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


ANDRADE, Carlos Drummond. A rosa do povo. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.

RECEITA PARA LAVAR PALAVRA SUJA
Mergulhar a palavra suja em água sanitária.
Depois de dois dias de molho quarar ao sol do meio-dia.
Algumas palavras, quando alvejadas ao sol,
adquirem consistência de certeza,
por exemplo, a palavra vida.
Existem outras, e a palavra amor é uma delas,
que são muito encardidas e desgastadas pelo uso,
o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra,
depois enxaguar em água corrente.
São poucas as que ainda permanecem sujas
depois de submetidas a esses cuidados,
mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tira as manchas mais difíceis.
Mas todas as tentativas de lavar a piedade
foram sempre em vão.
Mas nunca vi palavra tão suja como perda.
Perda e morte, à medida que são alvejadas,
soltam um líquido corrosivo
- que atende pelo nome de amargura –
capaz de esvaziar o vigor da língua.
Nesse caso o aconselhado é mantê-las sempre de molho,
em um amaciante de boa qualidade.
Agora se o que você quer
é somente aliviar as palavras do uso diário,
pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo aqui é misturar palavras que mancham
no contato umas com as outras.
A culpa, por exemplo,
mancha tudo que encontra
e deve ser sempre alvejada sozinha.
Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo.
Desejo, sendo uma palavra intensa, quase agressiva,
pode, o que não é inevitável,
esgarçar a força delicada da palavra amizade.
Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras
sob o risco de perderem o sentido.
A sujeirinha cotidiana quando não é excessiva
produz uma oleosidade que conserva a cor
e a intensidade dos sons.
Muito valioso na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa.
Para isso conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos,
que passeie pelas expressões dos seus sentidos.
À noite permita que se deite,
não a seu lado mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme,
a palavra, plantada em sua carne,
prolifera em toda sua possibilidade.
Se puder suportar a convivência,
até não mais perceber a presença dela,
então você tem uma palavra limpa.
Uma palavra limpa é uma palavra possível.

MOSÉ, Viviane. Toda palavra. Rio de Janeiro: Record, 2006.