segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

MAIS SOBRE O 'FURACÃO'



ME DEIXAS LOUCA (Me vuelves loco) (Armando Manzanero / versão: Paulo Coelho), que está na trilha da novela BRILHANTE (1981), é a última gravação de Elis.

"Eu gosto, não sei explicar por que gosto. Gosto de bolero pra burro. (...) Acho que, honestamente, não há um brasileiro que possa dizer que pelo menos uns dois ou três grandes momentos de sua vida não foram embalados por um bolero!", Elis Regina
("Os grandes da MPB", Edições Del Prado S.A., 1996) 

"Pode cantar chorando, mas tem que chorar afinado!", Elis Regina

ESSA VOZ
Milton Nascimento - Fernando Brant

Não se apaga, não se cala essa voz
não se esquece, permanece essa voz
voando livre no espaço essa voz
eterno canto de esperança essa voz
ela é humana e é divina essa voz
nossa amiga não parou de cantar
ela é a voz
de todos nós

Não se apaga, não se cala a mulher
o seu sorriso, o seu sonho, a fé
sua coragem, sua enorme paixão
a vida inteira lapidando a canção 
canção de vida e amor vai ficar
com as pessoas que não param de ouvir 
a sua voz, a voz
que é a voz
de todos nós 
Fonte  (LP): "Essa voz", Milton Nascimento, Anima, ARIOLA, 201909, 1982.


SAMBA PRA ELIS
Joyce / Paulo César Pinheiro

Clarão
luar
vulcão
no vesgo do seu olhar
quem vê
não diz
quem é
Elis,
 essa mulher.

Mourão
pilar
brasão
da música popular
quem viu
bendiz
a voz
 de Elis,
essa mulher

É uma garganta que Deus fez
e quando ouviu, não quis nem copiar
raio de luz que passa uma só vez
mas que deixa um sagrado som no ar
não tem mais nem pra nós nem pra vocês
esa voz que o Brasil amou demais
feito estrela voltou pro céu talvez
ou foi cantar pros Orixás

Fonte (CD): "Astrnauta: canções de Elis", Joyce, Pau Brasil, 1998.
 
             

A DESCOBERTA DA RAPIDEZ*
Aldir Blanc

O verão nos trouxe um livro que saiu do frio, "A Descoberta da Lentidão", de Sten Nadolny, sobre a vida do navegador inglês John Franklin. Desde menino, fascinado por navios e pelo mar, Franklin pretendeu estancar, ou pelo menos atenuar, a passagem do tempo, numa espécie de defesa contra o acaso e a força devastadora dos acontecimentos.
Elis Regina tentou o processo inverso e pisou fundo no acelerador. Ao invés de parar, correr. Jamais retardar o fluxo dos instantes, mas ultrapassá-lo.
Talvez essas duas ansiedades, aparentemente opostas, tenham a mesma origem. E na origem da tragédia de cada um, está sempre a tragédia das origens: o frio, as necessidades enregelantes, a paralisia do que é entendido, erroneamente, como educação.
Das ilustrações da morte, costumamos recordar a figura envolta em mortalha, segurando a foice, e esquecemos, para nossa própria proteção, que ela também carrega a ampulheta implacável. Se a foice pode vacilar, até mesmo errar o golpe, a ampulheta jamais se detém - o tempo conhece tudo, menos a piedade. As duas crianças tiveram experiências semelhantes: o tempo escoando-se através das aulas de latim, da "enérgica" apatia familiar, da escola pantanosa, da cidade sem sentimentos...
Uma frase do livro: quem não aprendeu a crueldade deve pelo menos se tornar atrevido. Cada um tentou a seu modo. Em sua primeira apresentação em programas infantis, Elis Regina chegou a ousar a fórmula do navegador - e calou-se. Depois, intuindo que à velocidade da luz também viramos luz, resolveu correr - e nunca mais nada a deteve. Família, convenções, contratos, ideologias, preconceitos, falsos profetas, o amor, o sucesso - nunca mais ninguém a deteve.
Elis escolheu a Paixão: o padecer constante, a pulsão permanente do desejo infinito pelo infinito. Esse caminho não tem volta, dirão os tolos. Nenhum caminho tem volta. O mito do eterno retorno é o nosso retornar sistemático à dor da impossibilidade de retornar. Quando o navegador percebeu isso, instalou a calmaria dentro de si. Elis, para recordar o título do belo livro de Regina Echeverria, preferiu o furacão - e todos nós sentimos sua passagem, seus braços ventando a partir de Arrastão, sua voz de forças primordiais e imensas em sua solidão.
Se pensarmos na história recente de nossa música, vemos um cenário de acordos: grupos paulistas, os de Minas, a organização das brigatti baianas sob a aparente descontração, aqueles que, depois, vieram do Norte, etc.
Elis é solidão monumental, libiríntica, vertiginosa, com a consciência absurda de que a saída, a única, é em direção ao sol e à queimadura. A dúvida de viver presente em cada instante, a vontade de poder, e a certeza da inutilidade do esforço alimentando a dúvida e a vontade. O ensaio interminável visando não à perfeição, mas ao momento sublime do passo em falso no arame. A vida sem redes. Agir impetuosametne para nos ensinar a pensar. Cortejar o fantasma da irreflexão para que melhor pudéssemos expulsá-lo. Essa generosidade - transtornada, mas belíssima - não foi compreendida pelos farsantes, pelos baleiros do circo onde Elis era a trapezista. É natural. Oscar Wilde nos ensinou que as relações sociais e o primeiro crítico apareceram quando aquele primata, à entrada da caverna, diante da fogueira, contou ao protótipo do otário como havia caçado um mamute... sem jamais ter pariticipado de uma caçada.
É bastante sintomático que toda "postura" (palavra desgraçada) rimbaudionisíaca da época tenha produzido prósperos comerciantes, enquanto a gauchinha cafona e aburguesada, sem o anteparo de modismos e filosofodices, seja, hoje, a luz mais pura que restou de tudo - para citar Drummond, outra chama, "o epítome-epílogo da grandeza".
Com jeitinho brasileiro, podemos carnavalizar a tragédia e perguntar: e aí, Morte palhaça, cadê a tua vitória? E o urubu sai voando, manso...
Ninguém está mais vivo que Elis Regina. Influência, exemplo, paradigma, deusa, musa. Seu legado humano e artístico é de tal ordem que a alegria de tê-la conhecido sobrepuja o luto.
Ainda conversamos muito. Contei pra Elis que Dan Quayle veio para a posse. Ouvi sua gargalhada estilhaçante. Leio pra ela todas as declarações sobre nossas elites:
- Olha essa, Elis...
- Brincadeira tua.
- Tá aqui, no jornal de hoje.
Risos.
Promessas de "mudanças" radicais nas gravadoras, hii, ela a-d-o-r-a.
Os queridos ouvintes podem (danem-se!) achar piegas, mas, quando eu estiver apagando, meus pensamentos serão pra ela:
- Oi, Estrela. Manera essa corrida louca porque eu sou um pobre e lento navegador indo ao teu encontro.
(...)

* Texto produzido para o encarte que acompanha a caixa WEA COLLECTION, lançada em 1990.


"Quando percebi quem era Elis, ela já estava na ativa há muito tempo. (...) Ela cantava com o Zimbo Trio e aconteceu do grupo estar fora, numa excursão, e no escalamento dos grupos da TV Record escalaram o Som 3 pra fazer o programa dela no lugar do Zimbo. (...) Ali tive que fazer arranjo do Upa, neguinho. Foi quando tive um contato um pouquinho maior com ela, de minutos no camarim. Sentei no piano - íamos fazer também Pra dizer adeus e Gente - e imediatamente senti que a barra era um pouco mais pesada, vi seu potencial. Até Edu Lobo falava sempre que muitas vezes ela dizia pro músico: 'Não é esse acorde'. E quando o sujeito mudava, ela então sossegava: 'Ah, é esse'. Como pode? Não sabia tocar instrumento nenhum. Essa musicalidade dela a fez virar um músico dentro do trio."
César Camargo Mariano, músico, arranjador.

"Realmente, Elis era gênio. Era impressionante. Por várias vezes ela gravava a voz junto com a base e ficava. O César fazia tudo depois, ela confiava nele. Gravava e ia embora para casa. E não errava nunca, era perfeita. Fico arrepiado de lembrar. Não era insegura profissionalmente."
Luigi Hofer, técnico de som.

"Perfeccionista ao extremo, era capaz de fazer quatro ou cinco takes da mesma música, com uma interpretação (maravilhosa) diferente para cada um, o que tornava a escolha do melhor take uma tarefa dificílima. (...)"
Armando Pittigliani, produtor musical.

"(..) Cantava com muita alma. Foi a maior cantora do Brasil de todos os tempos, na minha opinião."                                                               
Antonio Adolfo, violonista, compositor e produtor musical.

"Das artistas incríveis que eu conheci, tipo Elizeth, Maysa, Dalva... nunca houve uma mais completa que a Elis Regina."                                                                               
Jair Rodrigues, cantor.

"Ainda naquele início dela, em meio aos ensaios do show no Beco, ela disse que queria desistir de tudo e voltar para Porto Alegre. (...) Uma hora, botei as duas mãos no ombro dela, mirei bem nos seus olhos e disse: 'Você não quer ser a maior cantora do Brasil, não?' Deu três segundos de pausa, me olhou absolutamente vesga e respondeu: 'Eu não vou ser, não, eu sou a maior cantora do Brasil' (...)."                                                                         
Renato Sérgio, jornalista e diretor do primeiro show de Elis.

Depoimentos extraídos dos folhetos que acompanham as caixas "Elis 60" e "Elis 70" (Universal, 2012).


"(...) Elis foi a intérprete mais completa já surgida no cenário musical brasileiro. Ela cantava para fora (uma qualidade cada vez mais rara entre as introspectivas e desafinadas cantantes nacionais) e imprimia emoção a cada sílaba (...)."
                                                                                                   
Revista VEJA, 15 de FEV., 2012, p. 124.



MUITOS GURIS



O MEU GURI
Chico Buarque / 1981
Partituras 
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando, não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice ele um dia me disse
Que chegava lá
Olha aí
Olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega

Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega

Chega no morro com o carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega

Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri


 

1981 © - Marola Edições Musicais Ltda.
Todos os direitos reservados
Direitos de Execução Pública controlados pelo ECAD (AMAR) Internacional Copyright Secured

http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=omeuguri_81.htm

MENINOS CARVOEIROS*
Manuel Bandeira

Os meninos carvoeiros
Passam a caminho da cidade.
- Eh, carvoero!
E vão tocando os animais com um relho enorme.

Os burros são magrinhos e velhos.
Cada um leva seis sacos de carvão de lenha.
A aniagem é toda remendada.
Os carvões caem.

(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe,
                                       [dobrando-se com um gemido.)

- Eh, carvoero!

Só mesmo estas crianças raquíticas
Vão bem com estes burrinhos descadeirados.
A madrugada ingênua parece feita para eles...
Pequenina, ingênua miséria!
Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se
                                                             [brincásseis!

- Eh, carvoero!

Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado,
Encarapitados nas alimárias,
Apostando corrida,
Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos
                                                                          [desamparados!
             
                                                                                          Petrópolis, 1921

* Sugestão da amiga Therezinha Fassarela.



MENOR ABANDONADO
Cora Coralina

Versos amargos para o Ano Internacional da Criança, 1979

De onde vens, criança?
Que mensagem trazes de futuro?
Por que tão cedo esse batismo impuro
que mudou teu nome?

Em que galpão, casebre, invasão, favela,
ficou esquecida tua mãe?...
E teu pai, em que selva escura
se perdeu, perdendo o caminho
do barraco humilde?...

Criança periférica rejeitada...
Teu mundo é um submundo.
Mão nenhuma te valeu na derrapada.

Ao acaso das ruas - nosso encontro.
És tão pequeno... e eu tenho medo.
Medo de você crescer, ser homem.
Medo da espada de teus olhos...
Medo da tua rebeldia antecipada.
Nego a esmola que me pedes.
Culpa-me tua indigência inconsciente.
Revolta-me tua infância desvalida.

Quisera escrever versos de fogo,
e sou mesquinha.
Pudesse eu te ajudar, criança-estigma.
Defender tua causa, cortar tua raiz
chagada...

És o lema sombrio de uma bandeira
que levanto,
pedindo para ti - Menor Abandonado,
Escolas de Artesanato - Mater et Magistra
que possam te salvar, deter a tua queda...

Ninguém comigo na floresta escura...
E o meu grito impotente se perde
na acústica indiferente das cidades.

Escolas de Artesanato para reduzir
o gigantismo enfermo
da criança enferma
é o meu perdido S.O.S.

Estou sozinha na floresta escura
e o meu apelo se perdeu inútil
na acústica insensível da cidade.
És o infante de um terceiro mundo
em lenta rotação para o encontro
do futuro.
Há um fosso de separação
entre três mundos.
E tu - Menor Abandonado,
és a pedra, o entulho e o aterro
desse fosso.

Quisera a tempo te alcançar,
mudar teu rumo.
De novo te vestir a veste branca
de um novo catecúmeno.
És tanto e tantos teus irmãos
na selva densa...

E eu sozinha na cidade imensa!
"Escolas de ofícios Mãe e Mestra"
para tua legião.
Mãe para o amor.
Mestra par ao ensino.

Passa, criança... Segue o teu destino.
Além é o teu encontro.
Estarás sentado, curvado, taciturno.
Sete "homens bons" te julgarão.
Um juiz togado dirá textos de Lei
que nunca entenderás.
- Mais uma vez mudarás de nome.
E dentro de uma casa muito grande
e muito triste - serás um número.

E continuará vertendo inexorável
a fonte poluída de onde vens.

Errante, cansado de vagar,
dormirás como um rafeiro
enrodilhado, vagabundo, clandestino
na sombra das cidades
que crescem sem parar.

Há um fosso entre três mundos.
E tu, Menor Abandonado,
és o entulho, as rebarbas e o aterro
desse fosso.

Acorda, Criança,
Hoje é o teu dia... Olha, vê como brilha lá longe,
na manchete vibrante dos jornais,
na consciência heroica dos juízes,
no cartaz luminoso da cidade,
o ANO INTERNACIONAL DA CRIANÇA.

CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 13. edição. Rio de Janeiro: Global Editora, 1986.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

"ATÉ TROCAREM TIROS"


                 
          
O CASAMENTO DOS PEQUENOS BURGUESES
Chico Buarque - 1977-1978
Para a peça Ópera do malandro, de Chico Buarque
 
Ele faz o noivo correto
Ela faz que quase desmaia
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a casa caia
Até que a casa caia

Ele é o empregado discreto
Ela engoma o seu colarinho
Vão viver sob o mesmo teto
Até explodir o ninho
Até explodir o ninho

Ele faz o macho irrequieto
Ela faz crianças de monte
Vão viver sob o mesmo teto
Até secar a fonte
Até secar a fonte

Ele é o funcionário completo
Ela aprende a fazer suspiros
Vão viver sob o mesmo teto
Até trocarem tiros
Até trocarem tiros

Ele tem um caso secreto
Ela diz que não sai dos trilhos
Vão viver sob o mesmo teto
Até casarem os filhos
Até casarem os filhos

Ele fala de cianureto
Ela sonha com formicida
Vão viver sob o mesmo teto
Até que alguém decida
Até que alguém decida

Ele tem um velho projeto
Ela tem um monte de estrias
Vão viver sob o mesmo teto
Até o fim dos dias
Até o fim dos dias

Ele às vezes cede um afeto
Ela só se despe no escuro
Vão viver sob o mesmo teto
Até um breve futuro
Até um breve futuro

Ela esquenta a papa do neto
Ele quase que fez fortuna
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a morte os una
Até que a morte os una

 

1977 © Marola Edições Musicais
Todos os direitos reservados. Copyright Internacional Assegurado. Impresso no Brasil

 http://www.chicobuarque.com.br/construcao/index.html

             
   
"ATÉ TROCAREM TIROS"
Por Fábio Brito

Para mim, essa história de que “os opostos se atraem” é pura balela. Desconfio - e faz muito tempo! - de que os "os que têm afinidades" é que se atraem. O pior não é eu desconfiar da "lei" da atração dos opostos, mas ir de encontro ao que muitos pregam há “zil” anos. Dizer que "os opostos se atraem" é o que mais ouvimos por aí. Ninguém contesta isso, não é mesmo? No entanto, vou cometer uma ousadia... e das "grandes": quem vai negar que, numa relação amorosa, as afinidades são essenciais? De que forma vamos juntando amigos vida afora? Se não for por causa das afinidades, estou mais que redondamente enganado. No amor, não me parece diferente. Ou não? 
Sem querer “dar uma” de psicanalista”, posso até arriscar o seguinte: se os tais opostos se atraíssem mesmo, ambos cresceriam na relação. Não é o que vejo. O que tenho observado por aí - e "aos montes"! - nas tais relações em que os "opostos se atraem" (ai, que chatice!) e 'se' juntam é que, nesse caso, um acaba reforçando o pior lado do outro. E aí? Aí é tiro 'pra' todo lado. E haja munição! Portanto, não há como fugir: são as afinidades intelectuais que seguram qualquer relação. Não o sexo, como pensam muitos. Pior: confundem sexo com amor ou com "sei lá o quê".
Vou tentar ir mais longe: na maioria das tais "relações amorosas", não vejo esse tal de amor, sabia? A esta altura da vida, estou desconfiando (pura maldade minha!) de que amor, para mim, é de mãe, de pai, de amigo, de irmão. Quando há a ditadura do sexo, ou a da libido, desconfio da existência do que chamam amor. As pessoas se atraem, sim, mas, na maioria das vezes, não vejo quaisquer “atrações intelectuais”. Sentem-se atraídas por um “palminho” de cara bonita e pronto. Ou por um "corpinho" atraente. 
Por causa dessa "atração", resolvem, então, dividir tudo. Começam pela casa. Fico até imaginando os "opostos dividindo um mesmo espaço": um tenta ouvir seu Dizzy Gillespie ou sua Callas; o outro, seu "pancadão". Um quer, em paz, ler seus livros ou assistir a seu Fellini, a seu Bergman; o outro odeia ler e é fã das 'xaropadas' 'hollywoodianas' que, aos montes e 'pirateadas', chegam ao lar recém-construído. Jesus! Imaginem o tiroteio. Sejamos sinceros: alguém aguenta tanta diferença?! Algum "amor" suporta tanta diferença?!
O fogo, que "batizam" de amor, até que dura um tempo. Depois, as "redes sociais" - para ser bem contemporâneo! - incumbem-se de dar fim à bela história de amor: aparecem outras carinhas bonitas e outros corpinhos atraentes. Oh! Vem mais "amor" por aí. Antes, porém, da tal relação ser minada pelas redes sociais (estamos no século XXI!), o casal faz um pacto de "dedicação exclusiva" (Oh!!!). Assim, ambos dão adeus aos amigos e aos parentes. Só vale o "amor". É preciso evitar interferências ruins, maléficas, que só querem "pôr fim à perfeita relação". É preciso afastar as pessoas que só querem destruir o "amor". O "esse-povo-se-mete-muito-em-nossa-vida" é a pura verdade.
Pois é, mas, como 'nos' diz Marina Colasanti, "dedicar-se à relação é importante, dizem todos. E é verdade. Mas qualquer um de nós tem inúmeras relações, de amizade, vizinhança, sociais, e anda me parecendo que concentrar toda a dedicação na relação amorosa pode custar o empobrecimento das outras"¹. É ou não é?!  Pois é, depois que o amor acaba, é quase certa a debandada dos amigos.  Ninguém vai ficar esperando que os "pombinhos" cheguem à constatação de que o "amor tão perfeito" não era tão perfeito como parecia. Era, ao contrário, uma "baita" mentira. 
Há também outro lado dessa história de as pessoas "caçarem" seus amores a qualquer custo. Têm medo do desamparo (leia-se "solidão"), bastante reforçado pela pressão social. Medo é pouco. Elas têm paúra, pavor, pânico. Ficam desesperadas quando pensam que "podem passar o resto de seus dias sozinhas". 'Ninguém pode ficar sozinho' é a regra e pronto! Coitado de quem ficar solteiro! Em uma sociedade que hierarquiza as pessoas considerando apenas o fato de elas estarem sozinhas ou não, ficar solteiro é um mal incurável. Não é difícil imaginar que, em decorrência dessa pressão, muita gente sai por aí "catando o que aparece", ou, pior ainda, morando com o que aparece. Escolheu a  esmo? É só esperar. Aguente firme, irmão, até que a polícia chegue. É, camarada, foi difícil à beça o "até que a morte os separe", não foi? A morte, como bem disse minha avó, demorou muito 'pra' chegar. Enquanto há tempo, pule fora e vá procurar seus amigos. Espero que eles ainda estejam à sua espera. Torçamos...

¹ "É tempo de pós-amor" (In COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro, Rocco, 1996). Em 1986, esse texto foi publicado na revista Manchete.

           CATAVENTO E GIRASSOL
           Guinga - Aldir Blanc

           Meu catavento tem dentro o que há do lado de fora do teu girassol.
           Entre o escancaro e o contido, eu te pedi sustenido e você riu bemol.
           Você só pensa no espaço, eu exigi duração... Eu sou um gato de subúrbio, você é literorânea.           
           Quando respeito os sinais, vejo você de patins vindo na contramão
           mas quando ataco de macho, você se faz de capacho e não quer confusão.
           Nenhum dos dois se entrega. Nós não ouvimos ocnselho: eu sou você que se vai
           no sumidouro do espelho. Eu sou do Engenho de Dentro e você vive no vento do Arpoador.
           Eu tenho um jeito arredio e você é expansiva - o inseto e a flor.
           Um torce pra Mia Farrow, o outro é Woody Allen...
           Quando assovio uma seresta você dança havaiana.
           Eu vou de tênis e jeans, encontro você demais - scarpin, soirée. Quando o pau quebra na
           esquina, você ataca de fina e me ofende em inglês: é fuck you, bate-bronha...
           e ninguém mete o bedelho, você sou eu que me vou no sumidouro do espelho.
           A paz é feita num motel de alma lavada e passada pra descobrir logo depois que
           não serviu pra nada. Nos dias de carnaval aumentam os desenganos:
           você vai pra Parati e eu pro Cacique de Ramos.
           Meu catavento tem dentro o vento escancarado do Arpoador. Teu girassol tem de fora
           o escondido do Engenho de Dentro da flor. Eu sinto muita saudade, você é contemporânea,
           eu penso em tudo quanto faço, você é tão espontânea.
           Sei que um depende do outro só pra ser diferente, pra se completar.
           Sei que um se afasta do outro, no sufoco, somente pra se aproximar.
           Cê tem um jeito verde de ser e eu sou meio vermelho
           mas os dois juntos se vão no sumidouro do espelho.
 
           Fonte (CD): "Catavento e girassol", Leila Pinheiro, Catavento e girassol, EMI, 853167 2, 1996.

CRIANÇAS 'DE' OU 'NA' RUA?



HÁ UMA CRIANÇA NA RUA
Armando Tejada Gomez
A esta hora, exatamente, há uma criança na rua.
É honra do homem proteger o que cresce,
Cuidar que não haja infância dispersa nas ruas,
Evitar que naufrague seu coração de barco,
Sua incrível aventura de pão e chocolate,
Transitar seus países de bandidos e tesouros
Colocando uma estrela no lugar da fome.             
De outro modo é inútil ensaiar na terra a alegria e o canto,
De outro modo é absurdo, porque de nada vale se há uma criança na rua.
E a esta hora, exatamente,  há uma criança na rua.

              Acesse este link:       
                       Colaboração da amiga Therezinha Fassarela

DE QUEM SÃO OS MENINOS DE RUA?  
          Marina Colasanti

          Eu, na rua, com pressa, e o menino segurou no meu braço, falou qualquer coisa que não entendi. Fui logo dizendo que não tinha, certa de que estava pedindo dinheiro. Não estava. Queria saber a hora.  
          Talvez não fosse um Menino De Família, mas também não era um Menino De Rua. É assim que a gente divide. Menino De Família é aquele bem-vestido com tênis da moda e camiseta de marca, que usa relógio e a mãe dá outro se o dele for roubado por um Menino De Rua. Menino De Rua é aquele que quando a gente passa perto segura a bolsa com força porque pensa que ele é pivete, trombadinha, ladrão.
Ouvindo essas expressões tem-se a impressão de que as coisas se passam muito naturalmente, uns nascendo De Família, outros nascendo De Rua. Como se a rua, e não uma família, não um pai e uma mãe, ou mesmo apenas uma mãe os tivesse gerado, sendo eles filhos diretos dos paralelepípedos e das calçadas, diferentes, portanto, das outras crianças, e excluídos das preocupações que temos com elas. É por isso, talvez, que, se vemos uma criança bem-vestida chorando sozinha numa shopping-center ou num supermercado, logo nos acercamos protetores, perguntando se está perdida, ou precisando de alugma coisa. Mas se vemos uma criança maltrapilha chorando num sinal com uma caixa de chicletes na mão, engrenamos a primeira no carro e nos afastamos pensando vagamente no seu abandono.
Na verdade, não existem meninos De rua. Existem meninos NA rua. E todo vez que um menino está NA rua é porque alguém o botou lá. Os meninos não vão sozinhos aos lugares. Assim como são postos no mundo, durante muitos anos também são postos onde quer que estejam. Resta ver quem os põe na rua. E por quê.
(...)
Quando eu era criança, ouvi contar muitas vezes a história de João e Maria, dois irmãos filhos de pobres lenhadores, em cuja casa a fome chegou a um ponto em que, não havendo mais comida nenhuma, foram levados pelo pai ao bosque, e ali foram abandonados. Não creio que os (...) milhões de crianças brasileiras abandonadas conheçam a história de João e Maria. Se conhecessem talvez nem vissem a semelhança. Pois João e Maria tinham uma casa de verdade, um casal de pais, roupas e sapatos. João e Maria tinham começado a vida como Meninos De Família, e pelas mãos do pai foram levados ao abandono.
Quem leva nossas crianças ao abandono? Quando dizemos "crianças abandonadas" subentendemos que foram abandonadas pela família, pelos pais. E, embora penalizados, circunscrevemos o problema ao âmbito familiar, de uma família gigantesca e generalizada, à qual não pertencemos e com a qual não queremos nos meter. Apaziguamos assim nossa consciência, enquanto tratamos, isso sim, de cuidar amorosamente de nossos próprios filhos, aqueles que "nos pertencem". 
Mas, embora uma criança possa ser abandonada pelos pais, ou duas ou dez crianças possam ser abadonadas pela família, (...) milhões de crianças só podem ser abandonadas pela coletividade. Até recentemente, tínhamos o direito de atribuir esse abandono ao governo, e responsabilizá-lo. Mas, (...) quando queremos que os cidadãos sejam o governo, já não podemos apenas passar adiante a responsabilidade. 
A hora chegou, portanto, de irmos ao bosque, buscar as crianças brasileiras que ali foram deixadas. 

 Ref.: COLASANTI, Marina. Eu sei , mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
           Crônica publicada na revista Manchete em 1986.


AS CARIDADES ODIOSAS

Foi uma tarde de sensibilidade ou de suscetibilidade? Eu passava pela rua depressa, emaranhada nos meus pensamentos, como às vezes acontece. Foi quando meu vestido me reteve: alguma coisa se enganchara na minha saia. Voltei-me e vi que se tratava de uma mão pequena e escura. Pertencia a um menino a que a sujeira e o sangue interno davam um tom quente de pele. O menino estava de pé no degrau da grande confeitaria. Seus olhos, mais do
que suas palavras meio engolidas, informavam-me de sua paciente aflição. Paciente demais. Percebi vagamente um pedido, antes de compreender o seu sentido concreto. Um pouco aturdida eu o olhava, ainda em dúvida se fora a mão da criança o que me ceifara os pensamentos.
- Um doce, moça, compre um doce para mim. 
Acordei finalmente. O que estivera eu pensando antes de encontrar o menino? O fato é que o pedido deste pareceu cumular uma lacuna, dar uma resposta que podia servir para qualquer pergunta, assim como uma grande chuva pode matar a sede de quem queria uns goles de água.
Sem olhar para os lados, por pudor talvez, sem querer espiar as mesas da confeitaria onde possivelmente algum conhecido tomava sorvete, entrei, fui ao balcão e disse com uma dureza que só Deus sabe explicar: um doce para o menino.
De que tinha eu medo? Eu não olhava a criança, queria que a cena, humilhante para mim, terminasse logo. Perguntei-lhe: que doce você...
Antes de terminar, o menino disse apontando depressa com o dedo: aquelezinho ali, com chocolate por cima. Por um instante perplexa, eu me recompus logo e ordenei, com aspereza, à caixeira que o servisse.
Que outro doce você quer? perguntei ao menino escuro.
Este, que mexendo as mãos e a boca ainda esperava com ansiedade pelo primeiro, interrompeu-se, olhou-me um instante e disse com delicadeza insuportável, mostrando os dentes: não precisa de outro não. Ele poupava a minha bondade.
- Precisa sim, cortei eu ofegante, empurrando-o para a frente. O menino hesitou e disse: aquele amarelo de ovo. Recebeu um doce em cada mão, levantando as duas acima da cabeça, com medo talvez de apertá-los. Mesmo os doces estavam tão acima do menino escuro. E foi sem olhar para mim que ele, mais do que foi embora, fugiu. A caixeirinha olhava tudo:
- Afinal uma alma caridosa apareceu. Esse menino estava nesta porta há mais de uma hora, puxando todas as pessoas que passavam, mas ninguém quis dar.
Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Era inútil querer voltar aos pensamentos anteriores. Eu estava cheia de um sentimento de amor, gratidão, revolta e vergonha. Mas, como se costuma dizer, o Sol parecia brilhar com mais força. Eu tivera a oportunidade de... E para isso fora necessário um menino magro e escuro... E para isso fora necessário que outros não lhe tivessem dado um doce.
E as pessoas que tomavam sorvete? Agora, o que eu queria saber com autocrueldade era o seguinte: temera que os outros me vissem ou que os outros não me vissem? O fato é que, quando atravessei a rua, o que teria sido piedade já se estrangulara sob outros sentimentos. E, agora sozinha, meus pensamentos voltaram lentamente a ser os anteriores, só que inúteis. Em vez de tomar um táxi, tomei um ônibus. Sentei-me.
- Os embrulhos estão incomodando?
Era uma mulher com uma criança no colo e, aos pés, vários embrulhos de jornal. Ah não, disse-lhes eu. "Dá-dádá", disse a menina no colo estendendo a mão e agarrando a manga de meu vestido. "Ela gostou da senhora", disse a mãe rindo. Eu também sorri.
- Estou desde manhã na rua, informou a mulher. Fui procurar umas amizades que não estavam em casa. Uma tinha ido almoçar fora, a outra foi com a família para fora.
- E a menina? É menino, corrigiu ela, está com roupa dada de menina mas é menino. O menino comeu por aí mesmo. Eu é que não almocei até agora.
- É seu neto?
- Filho, é filho, tenho mais três. Olhe só como ele está gostando da senhora... Brinca com a moça, meu filho! Imagine a senhora que moramos numa passagem de corredor e pagamos uma fortuna por mês. O aluguel passado não pagamos ainda. E este mês está vencendo. Ele quer despejar. Mas se Deus quiser, ainda arranjarei os dois mil cruzeiros que faltam. Já tenho o resto. Mas ele não quer aceitar. Ele pensa que se receber uma parte eu fico descansada dizendo: alguma coisa já paguei e não penso em pagar o resto.
Como a mulher velha estava ciente dos caminhos da desconfiança. Sabia de tudo, só que tinha de agir como se não soubesse - raciocínio de grande banqueiro. Raciocinava como raciocinaria um senhorio desconfiado, e não se irritava.
Mas de repente fiquei fria: tinha entendido. A mulher continuava a falar. Então tirei da bolsa os dois mil cruzeiros e com horror de mim passei-os à mulher. Esta não hesitou um segundo, pegou-os, meteu-os num bolso invisível entre o que me pareceram inúmeras saias, quase derrubando na sua rapidez o menino-menina.
- Deus nosso Senhor lhe favoreça, disse de repente com o automatismo de uma mendiga.
Vermelha, continuei sentada de braços cruzados. A mulheer também continuava ao lado.
Só que não nos falávamos mais. Ela era mais digna do que eu havia pensado: conseguido o dinheiro, nada mais quis me contar. E nem eu pude mais fazer festas ao menino vestido de menina. Pois qualquer agrado seria agora de meu direito: eu o havia pago de antemão.
Um laço de mal-estar estabelecera-se agora entre nós duas, entre a mulher e eu, quero dizer.
- Deixe a moça em paz, Zezinho, disse a mulher.
Evitávamos encostar os cotovelos. Nada mais havia a dizer, e a viagem era longa. Perturbada, olhei-a de través: velha e suja, como se dizem das coisas. E a mulher sabia que eu a olhara.
Então uma ponta de raiva nasceu entre nós duas. Só o pequeno ser híbrido, radiante, enchia a tarde com o seu suave martelar: "dá dá dá".

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Rocco, 1999.