sábado, 16 de junho de 2012

O OLHO MÁGICO




SANGUE E PUDINS
Fagner e Abel Silva

Morro de medo
Nem quero saber aonde vou, é muito cedo
Talvez se eu arrancasse de minha língua
o sinal
Talvez se eu inventasse o juízo final
Talvez se eu prometesse sangue e pudins
Ou se eu costurasse a roupa
dos querubins

Mas o que eu quero saber
É o que apronta esse lado do teu rosto
E o que faz o sossego morar no que
está posto
Não guardo segredo
Mas sou bem secreto, sou bem secreto
É que eu mesmo não acho a chave
de mim

Não quero saber quem sou, morro
de medo
Nem quero saber aonde vou, é muito cedo
(...)

Simone, (P) 1978, EMI-Odeon, 31C0644421089D,
CD (Caixa “Cigarra” – 2008)


O OLHO MÁGICO
Por Fábio Brito

            Quando morei sozinho em apartamento, fui acordado, certa noite, por um barulho que vinha de outro "apê": o de xixi caindo na água do vaso. No momento, não me veio mais nada à cabeça além de querer ter sido poupado desse barulhinho, que não é um "barulhinho bom", principalmente de 'se' ouvir (no silêncio absoluto da madrugada, ouve-se até uma agulha indo ao chão). Não sei em que condições o responsável pelo xixi deve ter ‘se’ levantado da cama, mas, naquele momento, ela poderia ter sido mais discreto, pensei. Tudo bem que ele estava em sua casa, mas... cá entre nós: era um momento só “dele”, não? Não era necessário “dividi-lo” comigo. É evidente que certos momentos íntimos têm, é claro, de ser divididos, mas esse não! 
           E por falar em dividir (ou não) momentos íntimos, eis uma polêmica recente, em se tratando de exposição da intimidade: dias atrás, uma apresentadora de TV declarou, em um programa de grande audiência  e em TV aberta, que sofreu abuso sexual quando criança. Ih! Isca para polêmica. E que isca! Imediatamente, a declaração espalhou-se por jornais, revistas, programas de TV e rádio, comentários no “facebook” e nos bares. Não se discutia outro assunto. E todas as pessoas resolveram opinar.
           Quanto a mim, posso adiantar que não aprovei a atitude. Por quê? Simples. Qual a finalidade em "expor as entranhas aos abutres", como dizem certas pessoas? Autopromoção? Mas a pessoa em questão não precisa disso (ou será que, atualmente, anda precisando?). Se a popularidade anda "mal das pernas", é hora de levantá-la, não é mesmo? Vai saber... Se puder ser por meio de uma celeuma, vai ser melhor ainda. Sei lá, posso até estar sendo maledicente, mas não consigo deixar de considerar desnecessário esse tipo de exposição. Muitos dirão que não, que atitudes como essa são importantes, uma vez que, se uma pessoa pública tem essa coragem, ela acaba ajudando muita gente que sempre viveu com medo, acuada e, portanto, sem coragem de denunciar. Pode até ser...
           Polêmica é o que não falta envolvendo intimidade e famosos. Vamos a mais uma? Recentemente, como todos sabem, fotos nuas de uma atriz foram parar na NET. Tais fotografias, afirmam, eram "para a intimidade do casal". Ok. Por que, então, essas fotos não permaneceram na câmera? Por que salvar esse material fotográfico no computador? Não sabem "o que é" um "hacker"? Não sabem o que ele pode fazer?  
           Bom, se pessoas famosas expõem sua intimidade sem o mínimo de pudor, é porque existe um público voraz que consome isso. Caso contrário, elas não se mostrariam tanto. Desde que "me entendo por gente", revistas de fuxico acerca da vida de artistas vendem adoidado. Programas de TV bem rasos também têm uma audiência imensa exatamente porque capricham na fofoca. Hoje em dia, então, com a internet, está ainda mais fácil ficar a par das novidades do mundo fútil: quem está com quem; quem traiu quem; quem se casou com quem; quem engravidou; quem está doente; qual o ex-BBB que acaba de posar nu... Como isso tudo atrai as pessoas, meu Deus! Por que essa fissura pela vida alheia? Certamente, é o lado "voyeur" que vem à tona nessa hora. "Ohar" o que as pessoas fazem na intimidade é, desde tempos imemoriais, algo tentador para a humanidade.
           Para confirmar o "voyeurismo", basta lembrar a audiência que têm programas como BBB e A fazenda. É algo estarrecedor. Muitas pessoas não saem do olho mágico. Esses programas não têm, literalmente, nada de interessante. Taí um dos grandes desserviços que a TV nos presta. Que bela inutilidade! O que existe nisso que chamam de "programa", como o BBB, por exemplo, é um bando de "gente vazia" que vive dizendo bobagens "de um lado para outro". E os telespectadores adoram ouvir essas bobagens e, principalmente, gostam muito de saber o que "rola" debaixo dos lençóis, em piscinas, festas ou banheiros das tais casas onde são confinados os participantes. Quando alguns passam a "ter um caso", e todos têm um caso!, aí é que a curiosidade aumenta mesmo. Quanto mais o público conseguir "vasculhar" a intimidade, melhor. Excita (ops!) mais. É o sexo guiando as pessoas, determinando comportamentos e atitudes.
           Não dá para escapar: intimidade tem tudo a ver com sexo, que, é bom lembrar, sempre foi tabu. Nunca se lidou muito bem com isso. Em casa, escola ou em qualquer outro ambiente, o tal do sexo sempre foi um assunto bem espinhoso. E "bota" espinhoso nisso! Exatamente porque é tabu, "sexo" vende! Já repararam como as revistas "de nu", por exemplo, têm ganhado muita divulgação de alguns anos para cá? As pessoas morrem de curiosidade. Querem, "a todo custo", saber o que roupa esconde. E deixa o povo comprar esse tipo de publicação! E deixa o povo "varar madrugada na NET", como ouvi dia desses, atrás de "sites" pornôs.
           Ainda sem sair do campo da sexualidade, estive pensando no seguinte: palavrão também é tabu, não é? E ele tem tudo a ver com intimidade, com sexo. Por quê? Veja bem: como bem disse o psicanalista Flávio Gikovate, o palavrão, que, em nossa cultura, é a máxima violência verbal, tem praticamente todas 'as' suas palavras ligadas ao mundo da sexualidade. Tentemos lembrar alguns. Ih! Vêm muitos à cabeça! E todos, sem exceção, têm a ver com sexo e, portanto, com intimidade.
            É... em se tratando de intimidade, ou de sua preservação, as pessoas, em pleno século XXI, estão tendo de redobrar cuidados, principalmente em seus momentos mais íntimos. Não é paranoia, mas tenho desconfiado de que, antes de qualquer encontro, talvez seja preciso verificar se, em todos os cantos, não há microcâmeras instaladas ou quaisquer outros aparelhinhos. É bom conferir bolsos também. Ih! Cuidado! Sob mesas e cadeiras também pode haver algum objeto gravando conversas ou filmando o ambiente. Vários objetos (até caneta!) podem ser gravadores. Jesus! Grava-se e fotografa-se "tudo". Se, neste mundo do áudio e da imagem,  as pessoas não tomarem muitos cuidados, seus encontros amorosos correm o risco de estar no "YouTube". Vamos conferir? Melhor não. Quanto aos relacionamentos antigos e ditos "duradouros", também não se dispensam cuidados. Vai que, um dia, o que era para sempre chega ao fim? Em verdade, ninguém conhece ninguém. Se o outrora grande amor da vida de alguém, tomado pela ira por causa do fim do relacionamento, resolve, por vingança, divulgar detalhes da vida íntima, a situação não fica nada bonita.
            É... o que sei é que, nessa loucura toda que envolve a intimidade, o que sempre procuro é preservar a minha... e o faço exatamente para ter minha liberdade garantida. Muitos pensam o contrário: expondo-se, acham-se livres. A exposição pode ser uma bela jaula, uma bela prisão, cujos carcereiros dificilmente a maioria reconhece.  


         
                                     Se falo, me escondo; se escrevo, me desnudo.
Foi isso que eu quis ao me plantar em cena,
nessa luz? Vestida de sombras,
movento véus de angústia, levantar a pele,
dando a ver minha ferida acesa?

De longe, porém: sossegada e calma,
ninguém sabendo que sou eu, eu sempre,
despudorada ao alcance deles,
jogando numa tela lúcida os demônios
que seduzem meu corpo e reclamam minha alma.

LUFT, Lya. Mulher no palco. São Paulo: Siciliano, 1992




Este trabalho é parte da galeria de
Ivone Martins de Moraes
Fonte:
http://www.talentosdamaturidade.com.br/trabalho/2890/intimidade


MENINO DEUS
Caetano Veloso

Menino Deus
 Um corpo azul dourado
Um porto alegre é bem mais que um seguro
Na rota das nossas viagens no escuro


Menino Deus
 Quando tua luz se acenda
A minha voz comporá tua lenda
E por um momento haverá

Mais futuro do que jamais houve
Mas ouve a nossa harmonia
A eletricidade ligada no dia
Em que brilharias por sobre a cidade


Menino Deus
 Quando a flor do teu sexo
Abrir as pétalas para o universo
  Então por um lapso se encontrará anexo
Ligando os breus

 Dando sentido aos mundos
E aos corações sentimentos profundos

 De terna alegria
No dia do menino Deus


Fonte: VELOSO, Caetano. Letra só. Organização Eucanaã Ferraz. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
MAR E LUA
Chico Buarque
Para a peça Geni, de Marilena Ansaldi

Amaram o amor urgente
As bocas salgadas pela maresia
As costas lanhadas pela tempestade
Naquela cidade
Distante do mar
Amaram o amor serenado
Das noturnas praias
Levantavam as saias
E se enluaravam de felicidade
Naquela cidade
Que não tem luar
Amavam o amor proibido
Pois hoje é sabido
Todo mundo conta
Que uma andava tonta
Grávida de lua
E outra andava nua
Ávida de mar

E foram ficando marcadas
Ouvindo risadas, sentindo arrepios
Olhando pro rio tão cheio de lua
E que continua
Correndo pro mar
E foram correnteza abaixo
Rolando no leito
Engolindo água
Boiando com as algas
Arrastando folhas
Carregando flores
E a se desmanchar
E foram virando peixes
Virando conchas
Virando seixos
Virando areia
Prateada areia
Com lua cheia
E à beira-mar
Fonte: http://www.chicobuarque.com.br/

SEM AÇÚCAR
Chico Buarque

Todo dia ele faz diferente
 Não sei se ele volta da rua
Não sei se me traz um presente
 Não sei se ele fica na sua
Talvez ele chegue sentido
 Quem sabe me cobre de beijos
Ou nem me desmancha o vestido
 Ou nem me adivinha os desejos

Dia ímpar tem chocolate
 Dia par eu vivo de brisa
Dia útil ele me bate
 Dia santo ele me alisa
Longe dele eu tremo de amor
 Na presença dele me calo
Eu de dia sou sua flor
 Eu de noite sou seu cavalo

A cerveja dele é sagrada
 A vontade dele é a mais justa
A minha paixão é piada
 Sua risada me assusta
Sua boca é um cadeado
 E meu corpo é uma fogueira
Enquanto ele dorme pesado
 Eu rolo sozinha na esteira
Fonte: Chico Buarque letra e música. São Paulo: Cia. das Letyras, 1989.

 MEDITAÇÃO
Gilberto Gil

Dentro de si mesmo
Mesmo que lá fora
Fora de si mesmo
Mesmo que distante
E assim por diante
de si mesmo, ad infinitum

Tudo de si mesmo
Mesmo que pra nada
Nada pra si mesmo
Mesmo porque tudo
Sempre acaba sendo
O que era de se esperar

Fonte: Gilberto Gil: todas as letras. Organização Carlos Rennó. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. 

DOCE MISTÉRIO DA VIDA
(Ah! Sweet mystery of life)
Victor Herbert / Versão: Alberto Ribeiro

Minha vida que parece muito calma
Tem segredos que eu não posso revelar
Escondidos bem no fundo
 de minh'alma
Não transparecem nem sequer
 em um olhar
Vive sempre conversando a sós comigo
Uma voz que eu escuto com fervor
Escolheu meu coração pra seu abrigo
E dele fez um roseiral em flor

A ninguém revelarei o meu segredo
E nem direi quem é o meu amor

Fonte: Nossos momentos. Maria Bethânia. Universal, 2100122, 2006 -  (P) 1982

 
 (...) E doidamente me apodero dos desvãos de mim, meus desvarios me sufocam de tanta beleza. Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca. E tudo isso ganhei ao deixar de te amar. (...)

LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

ITHAMARA KOORAX NO ESPÍRITO SANTO




NEM FOI PRECISO VINHO
Por Fábio Brito
                                                  Deixa subirem os sons agudos, os sons estrídulos do jazz no ar.
Mario Quintana
Dia 2 de junho, em Santa Teresa/ES, nem foi preciso vinho para aquecer a noite fria de outono. A segunda noite do “Festival Internacional de jazz and bossa” teve o privilégio de receber Ithamara Koorax e os músicos Dino Rangel (guitarra), David Feldman (teclados), Haroldo Jobim (bateria) e Rômulo Duarte (baixo).
O espetáculo – um dos mais “calientes” da estrela maior do jazz - teve início com My Favorite Things. De cara, a diva disse a que veio: com sua voz ‘pra’ lá de poderosa, impressionou deveras o público seleto, que, diga-se de passagem, recepcionou-a calorosamente. Na sequência, vieram canções que ela não canta há um bom tempo, como The Shadow of Your Smile, Un Homme et Une Femme e Fica mal com Deus, esta do inesquecível Geraldo Vandré, o lendário compositor de Pra não dizer que não falei de flores (Caminhando). Got to be Real, que dá título ao último CD, assim como várias outras do espetáculo, comprovou a voz rara de Ithamara: seus agudos lancinantes impressionaram a todos. Minha saudade, dos mestres João Gilberto e João Donato, veio logo depois e provou, mais uma vez, que nossa estrela tem um ritmo e uma musicalidade incomparáveis.
 Também plenamente integrada ao roteiro, Aviso aos navegantes (SOS solidão), uma das mais deliciosas canções do repertório de Lulu Santos, ganhou “acompanhamento” do público, que assistia – deslumbrado - ao espetáculo. Um dos momentos mais vibrantes da apresentação (é bom registrar que todos os momentos ficaram irretocáveis) foi quando, em duo com a guitarra de Dino Rangel, Koorax interpretou Bye, Bye Blackbird, uma homenagem pungente a Miles Davis, uma das lendas do jazz. Impossível tentar descrever a beleza do número. Só estando lá. No embalo, foi a vez de Toque de cuíca, que contou com uma performance impressionante: intérprete e músicos deram uma “congelada”, como se estivessem “brincando de estátua”. Maravilhoso! E o que dizer de Never can say Goodbye? Arrebatadora. E "Can't Take my eyes off of you"? Quanto a esta, não foi surpresa para mim ouvir o público, em coro, cantar o refrão. A sensualidade que Ithamara conseguiu imprimir à conhecida canção é algo dificílimo: é quase impossível alguém fazer melhor. Só verdadeiros intérpretes conseguem isso. O comum, quando se tem uma canção conhecida, é encontrarmos cantores que apenas repetem interpretações. Ithamara não: ela vai sempre além e surpreende. E o que dizer também de Mas que nada, clássico de Jorge Ben (ele ainda não era Benjor)? Assim como todas as canções que interpreta, esse clássico é o mesmo que já ouvi em outros “shows” e, no entanto, a cada interpretação, é sempre uma nova música. Isso é fantástico, porque Ithamara, intérprete rara, nunca repete uma interpretação. Pois é, depois dessa canção, ninguém queria que o ‘show’ terminasse. E não terminou. No bis, acompanhada de David Feldman, ela volta para uma despedida arrebatadora em um improviso a que só os gênios têm direito. De pé, o público não queria parar de aplaudir. E olhe que há uns e outros que ainda dizem que Ithamara é elitista. Findo o espetáculo, tive vontade de ajoelhar-me e agradecer por tanta beleza.
  Espetáculos como esse de Santa Teresa só comprovam, mais uma vez, que o talento de Ithamara é incomum. Não faltam elogios a essa intérprete respeitadíssima em todo o mundo. Entretanto, não custa nada reforçar que sua extensão privilegiada, seu timbre lindo, sua incomparável divisão, seu ritmo e sua musicalidade fazem dela a primeira dama da música no mundo, lugar que ela ocupa indisputavelmente desde que, há vinte anos, começou a carreira, abençoada por ninguém mais, ninguém menos que a “divina” Elizeth Cardoso, sua madrinha.   
   É, para nós, um privilégio termos uma intérprete como Ithamara. Dá um orgulho danado! E esse orgulho aumenta ainda mais quando constatamos que nossa diva não precisa de "acrobacias" para estar no palco. Ela precisa dA voz. E que voz! No entanto, ainda há espaços aqui no Brasil, como os SESCs “da vida”, por exemplo, que a catalogam de elitista e, portanto, não a contratam. Assim, privam muitas pessoas do talento fora do comum dessa artista. Por que isso? Porque, infelizmente, vivemos em um país que idolatra o que há de pior em termos de arte, e o resultado, que não poderia ser diferente, é a péssima qualidade, principalmente na música, que prolifera por aí. Via mídia, quem são os incensados? Obviamente, os que fazem de seus espetáculos meras aulas de aeróbica, das quais muitos de nós precisamos, mas em academia, é claro! Em se tratando de música, precisamos da voz e de músicos competentes, como o são os que acompanham Ithamara. Sem as tais "acrobacias", muitos artistas desapareceriam, porque só entendem de pulos e gritinhos no palco. Perdão! Entendem de mais algumas “coisinhas”: precisam, para os “shows”, do modelito exclusivo do estilista tal, além de outros apetrechos. Tudo bem. Nada contra o modelito ou outros apetrechos, mas tudo contra quando o que existe é apenas isso. Ithamara está além de ostentações e futilidades. Em seus “shows”, o que vemos é pura Arte. 
P.S.:
Acabo de saber que o CD Got to be real, o mais recente da Ithamara, já é o mais executado na Europa. Pois é, enquanto os SESCs fecham-lhe as portas, o mundo a idolatra. Vai entender...