quarta-feira, 23 de julho de 2014

AS MUITAS MARGENS DE UM RIO


AS MUITAS MARGENS DE UM RIO
Sobre o disco “Rio vermelho”, de Ithamara Koorax

Por Fábio Brito

Carmen McRae, em entrevista a Zuza Homem de Mello, um dos maiores musicólogos do Brasil, publicada em 23 de novembro de 1984 n’O Estado de S. Paulo, demonstra uma lucidez acima de qualquer julgamento: “O que sei é que a única coisa que dura para sempre é a boa música. Tudo que você ouve hoje em dia vai ser esquecido. No ano que vem, ninguém vai conseguir mais cantar essa música. Quem vai se lembrar? Tudo um lixo, uma droga, todas são exatamente iguais”. Profetizou! Carmen se foi em 1994, ou seja, dez anos depois dessa entrevista, quando já se podia assistir a um caos sem precedentes na música. Imagine, então, o que ela diria acerca do que se ouve hoje!
De 1984, data da entrevista, para cá, não só no Brasil, mas no mundo, o que permaneceu do lixo musical produzido nesses trinta anos? Nada! Absolutamente nada! É possível que parte desse lixo tenha sido até maquiada e vendida como algo novo. No entanto, já desapareceu também, porque, mesmo maquiado, não deixou de ser lixo. Maquiagem cobre, sim, certas imperfeições, mas por pouco tempo. Com a mesma velocidade com que o público absorve esse tipo de trabalho, esquece-o. Assim, pela declaração de McRae, é fácil mensurar o tempo – curtíssimo! - que dura o “lixo musical” e, em sentido oposto, mede-se também a longevidade de uma obra de arte, ou obra-prima, musical. Os discos que fogem ao “processo industrial de criação” transformam-se, obviamente, em obras perenes e não têm prazo de validade. É o caso de “Rio vermelho” (Imagem, 1995), da extraordinária cantora/intérprete Ithamara Koorax, uma das grandes damas da música de todos os tempos. Não me canso de ouvir esse disco. Devo confessar que o ouço religiosamente, tamanho é seu requinte, tamanha é sua sofisticação, tamanha é a emoção de que sou tomado ao ouvi-lo.
Além da edição brasileira dessa obra grandiosa, artesanal, há mais duas: uma japonesa, “Red river”, também de 1995, e uma coreana, “Cry me a river”, de 2001. A diferença entre essas duas edições e a brasileira é, além da capa, a ordem das faixas (e os encartes). Além de um produtor “acima do bem e do mal”, Arnaldo DeSouteiro, que passa longe da “indústria da produção”, o disco conta com um time estelar de músicos: nosso “maestro soberano”, Tom Jobim, Paulo Malaguti, Ron Carter, Marcos Valle, Pascoal Meirelles, Sidinho Moreira, Paulo Sérgio Santos, Luiz Bonfá, Maurício Carrilho, Sadao Watanabe, José Roberto Bertrami, Jamil Joanes, Carlos Malta e Daniel Garcia. Só por aí já dá para saber que estamos diante de um disco arrebatador. Vale lembrar que a produção executiva é da própria Ithamara.
"Rio vermelho" é, pois, um trabalho único e que está a léguas de distância de todo e qualquer modismo, que é sempre negativo em quaisquer carreiras artísticas, embora muitos não consigam enxergar isso e embarcam na “onda”, seguem a moda e, de repente, topam com o ostracismo. Quanto às faixas dessa obra de arte, vale a pena – e como! – comentá-las com vagar. Ithamara, em todas, está inteira e, além de uma extraordinária aula de interpretação, mostra como um grande artista consegue burilar ao máximo uma canção, mas sem que ela, a canção, deixe de existir. Ou seja, é a mesma, mas é outra. Nas treze faixas que integram essa obra-prima, é possível constatar isso.
Comecemos exatamente pela faixa que dá título ao disco, “Rio vermelho” (Milton Nascimento / Danilo Caymmi / Ronaldo Bastos), também gravada pelo Milton (“Courage”, 1970), quando ainda só havia as duas primeiras estrofes. Está aí um dos mais fortes petardos contra a ditadura militar no Brasil. Na voz de Ithamara, essa canção, já com a letra completa, parece convidar-nos à luta aguerrida, mesmo depois do período cinza por que passamos. Sua voz, que é sempre volumosa, parece gritar pelos campos e pelas praças que a luta não pode cessar: “(...) lutei e meu leito de águas claras / se faz vermelho, o sangue tingia / mas não parei de lutar, perigo é meu guia / só me entrego pro mar, ê (...)”. Ithamara projeta a voz de uma forma deslumbrante. Consegue ocupar todo e qualquer espaço.
Assim como na faixa-título do CD, em “Sonho de um sonho” (Martinho da Vila / Rodolfo de Souza / Tião Graúna) - samba-enredo da escola Unidos de Vila Isabel em 1980, que homenageou o poeta Drummond - Ithamara também solta a voz e abre alas para as demais faixas. Parece um imenso tapete vermelho por onde desfilarão as demais canções. Não poderia ser outra a faixa para abrir o CD. Escolha acertadíssima. É hora, pois, de aumentarmos o volume.
“Retrato em branco e preto” (Tom Jobim / Chico Buarque), que vem a seguir, foi gravada por diversos intérpretes e é uma das maiores obras-primas da MPB. A gravação da Ithamara remete ao vigor interpretativo de Tânia Maria (“Brazil with my soul”, 1978) e Elis Regina (“Elis & Tom”, 1974). Não é qualquer um que pode gravar essa canção. Ainda assim, há uns corajosos que se atrevem, e o resultado, como sempre, é pífio. Ithamara, Elis e Tânia Maria podem, merecidamente, ser chamadas de coautoras desse clássico. Além da participação dos já citados Malaguti, Meireles e Watanabe, a faixa conta com o baixo de Ron Carter, um dos mais importantes músicos de jazz de todos os tempos, que, inclusive, já tocou com Miles Davis. Participação mais luxuosa que essa é impossível. Só Ithamara consegue essa proeza.
E por falar em músicos mais importantes de todos os tempos, eis que nos chegam mais dois: Tom Jobim e Luiz Bonfá, autores de “Correnteza”, a terceira faixa do CD, que contou com o violão sublime do próprio Bonfá. Precisamos de mais o quê? Temos “a” voz, “o” violão e “o” compositor. Eis o “crème de la crème”, a nata, o melhor do melhor.  
“Preciso aprender a ser só” (Marcos Valle / Paulo Sérgio Valle), a quarta faixa, é uma das composições mais conhecidas dos irmãos Valle. 'Nos' teclados, o próprio Marcos Valle acompanha Ithamara, que, não raro, inclui essa preciosidade em suas apresentações. Ouvindo Ithamara, temos a certeza de que grandes canções exigem grandes intérpretes. Tal faixa casa-se perfeitamente com a próxima, “Tudo acabado” (J. Piedade / Oswaldo Martins), um dos maiores sucessos de outra grande estrela, Dalva de Oliveira, nossa eterna “Estrela Dalva”. Koorax registrou-a em um andamento mais lento, mas a interpretação ficou igualmente linda. Bom intérprete é aquele que tem clara compreensão da canção, o que requer inteligência. Conheço até alguns artistas que são superestimados na MPB, mas a interpretação deixa a desejar. Ithamara, ao contrário, interpreta. Ou seja, sabe, compreende o que canta.
Na sequência, vem “Ternura antiga” (Dolores Duran / J. Ribamar), que é minha canção preferida da Dolores. Foi uma ideia genial gravar essa canção em lugar, por exemplo, de “A noite do meu bem”, a mais conhecida do repertório da Dolores e, logicamente, a mais regravada. A amargura, a agonia, a saudade, o vazio e o desencanto de esperar de que nos fala a letra ficam ainda mais intensos na voz profunda de Ithamara, que é acompanhada por Maurício Carrilho (violão) e Paulo Sérgio Santos (clarinete). Depois de ter ouvido inúmeras vezes essa gravação, só não me perdoo por não ter conseguido assistir ao espetáculo “Dolores Duran por Ithamara Koorax”, que, além das canções citadas, contava ainda com “Solidão”, “Estrada do sol”, “Castigo”, “Se é por falta de adeus”, “Por causa de você”, “O negócio é amar”, “Canção da volta”, “Pela rua”, “Noite de Paz” e várias outras pérolas.
A sétima faixa é “Não sei” (Lindolpho Gaya / Aloysio de Oliveira – com base no estudo em mi maior op. 10 nº 3, de Chopin), pinçada do repertório de outra excelente intérprete, Maysa, que a gravou em seu “último disco”, produzido, em 1974, pelo próprio Aloysio de Oliveira. A letra é um belo poema: “Hoje eu estou / entre onde andei / e pra onde vou / eu sou meio o que fui / e o que serei / e se perguntarem / o que sei de mim / eu não sei / nunca sei (...)”. A interpretação de Koorax, como nas demais faixas, está impecável. A clareza da dicção é impressionante.
Assim como “Retrato em branco e preto”, há, nesse “Rio” caudaloso, outra canção do “maestro soberano”: “É preciso dizer adeus”, em parceria com Vinicius de Moraes, o “Poetinha”. Trata-se de uma canção pouco conhecida da safra Jobim / Moraes, mas nem por isso menos bela que a maioria das canções compostas por essa dupla. O piano de Jobim, outro requinte de que poucos puderam desfrutar, e a voz da Ithamara conduzem-nos a uma viagem e tanto. Há muitos silêncios na canção, o que a torna mais comovente ainda. Só ouvindo. Impossível descrever a sensação inebriante que nos envolve quando ouvimos essa faixa.
“Cry me a river” (A. Hamilton), a nona faixa, é uma canção gravada por inúmeros intérpretes no mundo todo. Cada um, obviamente, fez sua leitura. Nem todas me agradam, é claro. Entretanto, nem é preciso dizer que a da Ithamara é arrepiante. Mais: sempre que a ouço, fico dias seguidos ‘cantarolando’ a melodia. Inesquecível! E os agudos lancinantes estão lá, para nosso completo deleite. Para nosso “doce deleite”.
A décima faixa é “Índia” (José Assunción Flores / Manuel Ortiz Guerrero – versão: José Fortuna). Imortalizada pela dupla Cascatinha e Inhana em 1952 e regravada por vários intérpretes, essa famosa guarânia ganhou de Ithamara uma versão ímpar, em que os teclados de José Roberto Bertrami (e que teclados!) completam a nobreza da gravação. Koorax prova, mais uma vez, que sua compreensão musical está muito acima da média. Ela e Bertrami não dão apenas uma excelente aula de música, mas ministram um curso de “pós-doutorado”. Ao fim, como em “Cry me a river”, os agudos triunfais de nossa diva nos deixam boquiabertos.
A próxima faixa também conta com os teclados de Bertrami. É “Se queres saber” (Peter Pan), também gravada por Emilinha Borba (1947), Nana Caymmi (1977) e Zizi Possi (1993). Ithamara imprime a essa joia do cancioneiro popular a delicadeza e a exuberância na medida exata. Não falta e não sobra nada. Ou melhor, sobra talento. Não é fácil visitar o repertório de outros artistas também talentosos. Não é fácil revisitar sucessos. No entanto, Ithamara sempre ‘o’ faz com o brilho e a dignidade habituais. Redimensiona, portanto, o valor e a importância das canções que revisita.   
“Empty Glass” (Luiz Bonfá / D. Manning) é a faixa que fecha o disco. Os teclados e o arranjo ficaram sob a batuta do sensacional Paulo Malaguti, que, ao lado de Maurício Carrilho, participou do primeiro disco de Ithamara, lançado em 1993 e gravado um ano antes e “inteiramente ao vivo, sem complementação posterior”, como consta no encarte. Como se não bastasse a participação de Malaguti, há ainda outros ilustres convidados: Sadao Watanabe e Sidinho Moreira. O primeiro, cujo talento é incontestável, tocou sax alto; o segundo, que já tocou com Paul Simon e diversos outros artistas, arrasou na percussão. Uma das mais belas entre todas as belezas do Bonfá, essa canção não poderia escapar às antenas sensibilíssimas de Ithamara. Ela também integra o “Almost in love – Ithamara Koorax sings Luiz Bonfá” (1995/96), que, assim como o “Rio Vermelho”, ganhou três edições. Luxo para poucos.
Pois é, uma obra raríssima como “Rio vermelho” deveria chegar ao grande público, não deveria? No entanto, aqui no Brasil, e no mundo também, não é novidade para ninguém que, para que o artista chegue ao que chamam de grande público, o preço a ser pago é bem alto. Seria necessário abrir mão da qualidade, da pureza, da integridade. Ser “popular”, no sentido mais rasteiro da palavra, é facílimo. Difícil é primar pela qualidade, pelo bom gosto. Não é cedendo aos apelos fáceis da repercussão popular que se constrói uma carreira digna e respeitável. A coerência de um artista, que nasce de sua responsabilidade, é primordial para a consolidação de sua carreira. Koorax é prova inconteste disso. A respeitabilidade e o prestígio conquistados aqui e no exterior vêm, obviamente, de seu talento imensurável, mas também da seriedade com que conduz sua vida artística.
E anda faltando seriedade por aí. E como! Muitos que, equivocadamente, são chamados de artistas andam fazendo uma série de concessões. Não raro, optam pelos pinotes, porque, assim, venderão “horrores”. Vivemos, de fato, o que Zuza Homem de Mello chama de “época do cabritismo”. Só sabem pular e nada mais. E não têm modéstia! Pior: ignoram completamente o ridículo. Problemas de um tempo em que as pessoas não mais “ouvem música”, mas qualquer “coisa” que chamam de “som”; problemas de um tempo em que as pessoas só se interessam por vulgaridades, mesmo – ou principalmente – em se tratando de música; problemas de um tempo vazio; problemas de um tempo de homens vazios.
E deixemos os “homens vazios” de lado. O que importa é que Ithamara foi eleita pelos deuses da MÚSICA para brilhar mais alto. Oscar Wilde, em “O retrato de Dorian Gray”, diz-nos que “eleito é aquele para quem as coisas bonitas significam simplesmente beleza”. Koorax também transforma em ouro tudo o que toca, ou melhor, tudo o que canta. Tudo, em sua voz, reluz e vira beleza. E beleza rara.
                                Foto: Fabio Brito


TUDO ACABADO
J. Piedade / Osvaldo Martins

 Tudo acabado entre nós
Já não há mais nada
Tudo acabado entre nós
Hoje de madrugada
Você chorou e eu chorei
Você partiu e eu fiquei
Se você volta outra vez
Eu não sei

Nosso apartamento agora
Vive à meia-luz
Nosso apartamento agora
Já não me seduz
Todo o egoísmo
Veio de nós dois
Destruímos hoje
O que podia ser depois
 Fonte: CD “Rio vermelho”, Ithamara Koorax, Imagem, MCD 2012, 1995.


PRECISO APRENDER A SER SÓ
Marcos Valle / Paulo Sérgio Valle

Ah, se eu te pudesse fazer entender
Sem teu amor eu não posso viver
E sem nós dois
O que resta sou eu
Eu assim, tão só
E eu preciso aprender a ser só
Poder dormir sem sentir teu calor
A ver que foi só um sonho e passou
Ah, o amor quando é demais
Ao findar leva a paz
Me entreguei sem pensar que a saudade existe
E se vem é tão triste
Vê, meus olhos choram a falta dos teus
Estes teus olhos que foram tão meus
Por Deus entenda
Que assim eu não vivo
Eu morro pensando no nosso amor
Fonte: CD “Songbook Marcos Valle – vol. 2”, Lumiar Discos, LD 3904, 1998.

NÃO SEI (No other love)
(Bob Russel – Paul Weston – adap.:  Aloysio de Oliveira)
(Gaya / Aloysio de Oliveira – com base no estudo em mi maior op. 10 nº 3, de Chopin)

Hoje eu estou
Entre onde andei
E pra onde vou
Eu sou meio o que fui
E o que serei
E se perguntarem
O que sei de mim
Eu não sei
Nunca sei

Meu amanhã
Já vi passar
Por entre as horas
De um ontem que se foi
E vai voltar
Por favor, alguém me diga
Mil caminhos, uma vida
Tanta coisa
Que eu (a)inda não fiz
E hoje eu estou
Entre onde andei
E pra onde vou
Não sei

Fontes:
CD “Rio vermelho”, Ithamara Koorax, Imagem, MCD 2012, 1995.
CD “Maysa (último disco)”, Maysa, EMI, 837822 2, 1996 (P 1974)


TERNURA ANTIGA
Dolores Duran / Ribamar

Ai, a rua escura, o vento frio
Esta saudade , este vazio
Esta vontade de chorar

Ai (ah), tua distância tão amiga
Esta ternura tão antiga
E o desencanto de esperar

Sim, eu não te amo porque quero
Ah, se eu pudesse esqueceria!
Vivo e vivo só porque te espero
Ai, esta amargura, esta agonia.

Fontes:
CD “Rio vermelho”, Ithamara Koorax, Imagem, MCD 2012, 1995.
CD “Dolores – a música de Dolores Duran”, Lua, 236, 2007.


É PRECISO DIZER ADEUS
Tom Jobim / Vinicius de Moraes

É inútil fingir
Não te quero enganar
É preciso dizer adeus
É melhor esquecer
Sei que devo partir
Só me resta dizer adeus

Ah, eu te peço perdão
Mas te quero lembrar
Como foi lindo
O que morreu

E essa beleza do amor
Que foi tão nossa
E me deixa tão só
Eu não quero perder
Eu não quero chorar
Eu não quero trair
Porque tu foste pra mim
Meu amor
Como um dia de sol

Fonte: MORAES, Vinicius de. 

RETRATO EM BRANCO E PRETO
Tom Jobim / Chico Buarque

Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seus segredos sei de cor
Já conheço as pedras do caminho
E sei também que ali sozinho
Eu vou ficar, tanto pior
O que é que eu posso contra o encanto
Desse amor que eu nego tanto
Evito tanto
E que no entanto
Volta sempre a enfeitiçar
Com seus mesmos tristes velhos fatos
Que num álbum de retratos
Eu teimo em colecionar

Lá vou eu de novo como um tolo
Procurar o desconsolo
Que cansei de conhecer
Novos dias tristes, noites claras
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever
Pra lhe dizer que isso é pecado
Eu trago o peito tão marcado
De lembranças do passado
E você sabe a razão
Vou colecionar mais um soneto
Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração

Fonte: HOLLANDA, Chico Buarque de. 

sexta-feira, 4 de julho de 2014

SOPA DE "LETRAS"



SOPA DE "LETRAS"
Para as pessoas que gostam de detalhes
Por Fábio Brito
Recentemente, andei conversando com um amigo sobre algumas “trocas” nas letras de nossas canções. Há cerca de três meses, outro amigo já havia pedido que eu escrevesse sobre esse assunto. Na coluna Outros sons, do jornal A Gazeta (Vitória, ES) de 28 de junho de 2014, Tarcísio Faustini também escreveu sobre isso: “Pátria amada, goiabada”. Ou seja, está na hora de eu escrever sobre isso, pensei. Aproveitemos, pois, a ideia, antes que ela fuja!
Pois bem, vou começar contestando um comentário de Faustini, que aborda um tropeço, segundo ele, de Gal na letra de “Força estranha”, uma das mais belas canções – se não a mais - de Caetano Veloso: “(...) Caetano é autor de ‘Força estranha’, em homenagem a Roberto Carlos, gravada pelo homenageado e por Gal Costa em 1978 e 79, (sic) as duas gravações fizeram muito sucesso. Em 2001, Gal fez outra gravação em que o menino continuou correndo, mas a cantora escorrega numa palavra que altera todo o significado de um verso. Em vez de cantar “eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista”, Gal Costa mudou para “fonte do artista”, (sic) fica difícil imaginar por que a fonte do artista teria cabelos brancos (...)”.
Vamos aos fatos! Primeiro: Roberto Carlos, em 78, também gravou “fonte do artista”, que é o correto (mais tarde, discorreremos sobre a diferença entre “fonte” e “fronte”). De fato, Gal cantou “fronte” na primeira gravação, a de 79 (“Gal Tropical”), e ela não fez apenas uma regravação dessa canção - a de 2001 - como afirma Faustini. Em verdade, incluindo a de 79, Gal visitou “Força estranha” quatro vezes: em 2004, a BMG lançou “Gal canta Caetano”, que inclui uma gravação de “Força estranha” que não chegou a fazer parte do projeto “Acústico MTV”, lançado de 1997; em 2001, em “Gal de tantos amores”, há outra regravação; recentemente, em 2013, em “Recanto ao vivo”, “Força estranha” voltou. Nas três regravações, corrigindo (não sei se propositadamente) a gravação de 79, Gal registrou “fonte do artista”. Detalhe: no YouTube, localizei um vídeo (deve haver mais) em que o próprio Caetano, num 'show' em Salvador, também diz "fonte". Vamos ao pai das pessoas sensatas e inteligentes, como chamo o dicionário.
No “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa”, edição da Objetiva de 2009, consta o seguinte: “fronte s.f. 1 ANAT parte da face anterior do crânio formada pelo osso frontal e situada entre as sobrancelhas e o couro cabeludo; testa 3 p.ext. (da acp 1), a face, o rosto de uma pessoa”. No mesmo dicionário, localizamos fonte: “s.f. 7 ANAT parte lateral da cabeça, entre os olhos e as orelhas”. Mais: o mesmo dicionário traz “têmpora como sinônimo, variante de fonte”. No "Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa" (4. ed., Curitiba: Ed. Positivo, 2009), encontramos: Fonte. 10. "Anat. Cada um dos lados da cabeça que formam a região temporal: "a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe" (Machado de Assis, Várias Histórias, p. 14) e fronte. 1. Testa. 2. Anat. Porção da face que vai da área de origem dos cabelos aos supercílios e de uma a outra têmpora". Ou seja, nas regravações, Gal acertou. Fonte é têmpora; fronte é testa. “Tá” combinado? No livro Letra só (Companhia das Letras, 2003), organizado por Eucanaã Ferraz e que traz as letras que são só do Caetano, consta “fonte do artista”; no volume de “Literatura Comentada”, de 1988, dedicado ao artista, consta, equivocadamente, “fronte”. Pois é, Faustini, nas regravações de “Força estranha”, Gal não alterou “todo o significado de um verso”. Ela disse exatamente o que o verso deve significar. Fonte não é só “nascente, local onde brota água do solo”: é têmpora também. Assim, contrariando o que você diz, não fica nada difícil imaginar a fonte do artista com cabelos brancos. Até mesmo a fronte do artista pode ter cabelos brancos, basta que ele, o artista, deixe-os caírem sobre ela, a fronte. Aliás, não só a fronte e a fonte do artista têm cabelos brancos: as minhas também... e faz muito tempo. Porque ainda (graças a Deus!) tenho bastantes cabelos, continuo deixando-os sobre a testa... e na fonte, claro!, que foi onde os insistentes cabelos brancos começaram a aparecer.   
E por falar em Gal, vamos a outra de suas gravações em que, talvez, tenha havido “troca de letra”: “Índia” (José Assunción Flores / Manuel Ortiz Guerrero – versão: José Fortuna), a famosa guarânia imortalizada pela dupla Cascatinha e Inhana em 1952 e regravada não só por Gal, mas por vários outros intérpretes. Às fontes (taí outra acepção para o termo “fonte”)! Ouvindo várias gravações, pude constatar o seguinte: Cascatinha e Inhana, por exemplo, cantam “Índia, a tua imagem / sempre comigo vai / dentro do meu coração / flor do meu Paraguai (...)”; Gal, em 73, 79 e 2001, registrou, em lugar de “flor do meu Paraguai”, “todo meu Paraguai”. Para mim, vale o seguinte: o eu poético diz que a imagem da “índia” vai sempre com ele... e refere-se a ela como a “flor” do seu Paraguai. Se analisarmos com vagar, constataremos que a metáfora da flor é bem recorrente – na literatura e na música, por exemplo - quando a intenção é referir-se à mulher. Portanto, não faz sentido, em lugar de “flor do meu Paraguai”, “todo meu Paraguai”. Depois de Cascatinha e Inhana, houve intérpretes que, assim como Gal, optaram por “todo meu Paraguai”, mas houve também os que preferiram “flor do meu Paraguai”.  
Bom, e a confusão não para por aí. Continuando nossa busca, lembro-me de “Pérola negra”, de Luiz Melodia, gravada pelo próprio Negro Gato (“Pérola negra”, de 73) e por Gal dois anos antes: no registro ao vivo do antológico ‘show’ “Fa-tal - Gal a todo vapor”. Aliás, foi com essa canção, belíssima por sinal, que Gal impulsionou a carreira de Melodia. Pois bem, em 72, um ano depois de Gal e um antes de Melodia, Angela Maria, nossa eterna Sapoti e uma das cantoras mais importantes e amadas da MPB, de quem Elis era fã incondicional, também registrou essa canção. No entanto, ela o fez alterando significativamente uns versos, que ficaram assim: “Traço meu livro / querendo te empresto / se deve dar coisas / sem americano”. Com Gal e Melodia, a letra é assim: “Peça meu livro / querendo te empresto / se inteire da coisa / sem haver engano”. Como se vê, na gravação da Sapoti, parte da letra ficou totalmente sem sentido. Podem argumentar que, em 72, e até bem depois, não havia os recursos que há hoje e coisa e tal. Tudo bem. Vou tentar compreender. No entanto, como afirma Faustini, nas gravações em estúdio, “teria dado tempo para consertar”. Será que ninguém notou o estranhamento? Falta de cuidado? Até mesmo nas gravações “ao vivo”, há como acertar, porque, voltando a Faustini, “os shows são gravados em vários dias”. Assim, “dá para escolher a melhor gravação”. Vou além: em último caso, se possível, ligue para o autor. Qual o problema? Lembro-me de que, certa vez, ouvi Leila Pinheiro dizer que, quando ela decidiu gravar “Serra do luar”, ligou para o Walter Franco, o autor, que cantou (ou apenas disse toda a letra, não lembro) a canção ao telefone. Tenho certeza de que, assim, várias dúvidas foram sanadas. Gostei da atitude.   
Na época dos tais vinis, ou "bolachões", havia ainda mais um recurso bem prático: muitos discos vinham com um encarte que, não raro, trazia, além de fotos do artista,  as letras impressas (às vezes, com algumas incorreções!). Eu adorava esses encartes! Lia-os com bastante atenção. Minha primeira audição desses discos era junto com a leitura das letras (continuo fazendo o mesmo com os CDs). Quando, em alguns casos, o disco não trazia esse tal encarte, eu ficava bastante chateado. Ainda assim, quando surgiam dúvidas acerca de alguma palavra, eu ouvia a faixa várias vezes até entender a "palavrinha encrencada". Às vezes, para evitar arranhar o disco de tanto repetir uma faixa, eu gravava a canção em uma fita e voltava inúmeras vezes ao “ponto” em que havia a dúvida. Era mais prático. Mais: eu não lia apenas as letras das canções. Lia tudo, tanto que fiquei conhecendo muitos músicos e os instrumentos que eles tocavam por meio da leitura desses encartes, como ocorreu com Tomás Improta. Certa vez, ao encontrá-lo, disse-lhe que eu “já o conhecia" dos encartes dos discos do Caetano, da Gal e da Nara, por exemplo.
Outro caso que sempre chamou minha atenção sobre “troca de letras” envolve uma das mais belas canções de todos os tempos, “As rosas não falam”, do mestre Cartola. Diversos intérpretes registraram essa obra-prima. Entre eles, Emílio Santiago (“O canto crescente de Emílio Santiago”, 1979), que, infelizmente, tropeçou na letra: em lugar de “queixo-me às rosas, / mas que bobagem / as rosas não falam / simplesmente as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai”, Emílio diz “queixam-me as rosas”. Como?! Mas é o eu lírico que se queixa às rosas, Emílio! Sinto muito, mas não dava para errar uma letra tão conhecida. O tropeço poderia ter sido evitado. Assim como ocorre com “Carinhoso” (Pixinguinha / João de Barro), dez entre dez pessoas sabem cantarolar essa canção imortal e conhecem praticamente toda a letra, que é até pequena. Poderiam ter consertado, não poderiam? Por que não o fizeram?   
Em gravações da Cláudya, a grande intérprete de Evita, também encontramos troca de letras, como em alguns versos de “Apenas um rapaz latino-americano” (Belchior), “Muito romântico” (Caetano Veloso) e “Coração de estudante” (Wagner Tiso / Milton Nascimento). Na primeira, em lugar de “eu sou apenas um rapaz latino-americano / sem dinheiro no bolso”, ela diz “eu sou apenas um alguém latino-americano”. Faz o mesmo em "Muito romântico": "Noutras palavras sou muito romântica". Por que não dizer “rapaz” e "romântico", se as palavras, inclusive, estão nos títulos das canções? Por que é uma mulher cantando? Não vejo problema algum. Aliás, acho até chique quando um intérprete homem, por exemplo, canta uma letra no feminino. É lindo, por exemplo, ouvir Buarque cantando “quando você me quiser rever / já vai me encontrar refeita, pode crer”. Melhor ainda é quando ele diz “quantos homens me amaram / bem mais e melhor que você”. Sinceramente, não gosto quando os intérpretes – sabe Deus por que motivos! – trocam o gênero de algumas palavras. E muitos fazem isso. Acho que a letra deve ser respeitada. Sempre achei.
Voltando à canção “Muito romântico, Cláudya não diz “eu não douro pílula”, mas “eu não dou ouvido lá”. “Dourar a pílula” é uma expressão bem conhecida. “Não dar ouvido lá” fica sem sentido, como também ficou sem sentido o que Elis registrou em “Oriente”, do Gilberto Gil: em lugar de “pela constatação de que a aranha / vive do que tece”, a Pimentinha cantou “pela constatação de que a aranha duvida o que tece”. “A aranha vive do que tece” também é outra expressão conhecidíssima. Será que, nos dois casos, a troca foi em decorrência do desconhecimento das expressões? Pode ser. Ninguém é obrigado a conhecer todas as expressões, é claro!, mas vamos combinar que o acerto poderia ter sido providenciado. É preferível refazer um trabalho a deixar para a posteridade um registro com erro. Penso assim.
Em “Coração de estudante” (Wagner Tiso / Milton Nascimento), um registro ao vivo da Cláudya, também houve troca de letra: “E há que se cuidar do broto / já que a vida nos deu flor (...) Fere planta, sentimento”.  Na gravação do Milton, ficou assim: “E há que se cuidar do broto / pra que a vida nos dê flor e fruto (...) Verdes, planta e sentimento”. O broto não vem antes da flor? Então, cuidemos, pois, "dele", do broto, para que “a vida nos dê flor”, não é mesmo? E muitos frutos! Se não cuidarmos do broto, a planta nem chega a crescer... e muito menos a flor e o fruto. Dizer “fere planta, sentimento” também não tem nada a ver com o campo semântico da letra, que fala em amizade, em juventude: planta e sentimento verdes. Ah, “meus verdes anos”! Inevitável não lembrar José Lins do Rego!
Em uma gravação da Fafá de Belém, também localizei uma "troca" na letra. Trata-se de “Nos bailes da vida” (Milton e Brant), gravada por ela em 1982 (“Essencial”), e que já havia sido gravada pelo próprio Milton (“Caçador de mim”, 1981) e pela Joanna (“Chama”, também em 1981). Vamos à letra: “Foi nos bailes da vida ou num bar em troca de pão / que muita gente pôs o pé na profissão / de tocar um instrumento e de cantar (...)”. Fafá, alterando o sentido, gravou: “Foi nos bailes da vida ou num bar em troca de pão / que muita gente deu à coisa o pé na profissão”. “Dar à coisa (objeto indireto) o pé na profissão (objeto direto)”? Ficou sem sentido. “Pôr o pé na profissão” é dar início à carreira. Se bem que, hoje, o início da profissão é bem fácil, principalmente para quem não tem talento. Não há sacrifício algum. Nada dessa história de cantar em bares "em troca de pão". É, mas houve um tempo em que os verdadeiros artistas, “nos bailes da vida”, davam início a suas carreiras. Dura caminhada! Muitos, que não se venderam ao sucesso fácil, estão aí até hoje, labutando, labutando. E não está fácil levar a carreira com dignidade. Não raro, o sucesso está devendo – e muito! – ao talento desses artistas. São inúmeros os casos.  
Em 2000, Simone regravou “Anunciação”, do Alceu Valença, um dos maiores sucessos da carreira do compositor. No encarte do CD (“Fica comigo esta noite”), consta “No teu cavalo / peito nu, cabelo ao vento / e o sol quarando nossas roupas no varal”, como canta Valença. No entanto, Simone canta “feito nu, cabelo ao vento”. Por quê? Será que, para a intérprete, o “feito nu” tem o sentido de “como nu”, “semelhante a nu”? Por exemplo: “Hoje, saí de casa feito um louco”. Ou seja, como um louco. Não faz sentido. Porque Simone sempre mastiga as palavras quando canta, uma troca de letra em sua voz fica bem evidente, como ocorreu em “Anunciação”. Volto a frisar: dava para corrigir, não dava?
“Doce de coco”, um dos belos choros do extraordinário Jacob do Bandolim, um dos músicos mais importantes do mundo e de todos os tempos, recebeu uma letra primorosa de Hermínio Bello de Carvalho em 1980. Muitos intérpretes gravaram essa canção, entre os quais a “Divina” Elizeth Cardoso (1981) e Zezé Gonzaga (“Ao Jacob, seus bandolins”, 2003). Luciana Souza, excelente intérprete mais conhecida fora do Brasil do que em sua terra natal, gravou-a em 2001 (“Brazilian duos”). A letra tem uma palavrinha que, “vira e mexe”, pega algum intérprete pelo pé: “Sabes que a língua do povo é contumaz, traiçoeira”. Contumaz é a tal palavrinha. Luciana, no entanto, gravou “muito mais traiçoeira”. No encarte, também consta “muito mais”. Se, na letra, houvesse a expressão “muito mais”, deveria haver outro elemento para estabelecermos uma comparação. Por exemplo: “A língua do povo é muito mais traiçoeira do que a da classe média”. Oh! Será? Em se tratando de “língua traiçoeira”, sei não! Novamente a pergunta: por que não corrigiram no encarte e na gravação? Vai saber!
Ainda no mesmo CD da Luciana, encontramos outro probleminha na letra de “Romance (Laranjinha)”, do Djavan: em vez de “pitomba jura / amargura no caroço”, como nas gravações do próprio Djavan (“Meu lado”, 1986) e da Gal (“Bim bom”, 1985), Luciana canta “armadura no caroço”. Se o caroço da pitomba, que não conheço, tem alguma “amargura”, não sei, como também não sei se ele lembra uma “armadura”. O que Luciana deve ter pensado? Também não sei.
Entre todos os casos de “troca” de letras, um que me intriga até hoje diz respeito à letra de “Na batucada da vida”, de Ary Barroso e Luiz Peixoto. Vamos a algumas gravações: Elis (“Elis”, 1974): "E hoje, que eu sou mesmo da virada / e que eu não tenho nada, nada / que por Deus fui esquecida"; Ná Ozzetti  em dois momentos: “E agora, que eu sou mesmo é da virada / e que eu não tenho nada, nada / que por Deus fui esquecida”, do CD “Show”, de 2001, e a gravação que está em "Balangandãs",  de 2009: "E agora, que eu sou mesmo da virada / que não tenho nada, nada (...)"; Tom Jobim (“Songbook Ary Barroso vol. 1”): "E hoje, que eu sou mesmo da virada / E topo qualquer parada / Por um prato de comida"; Elizeth Cardoso (“Ary amoroso”, 1990): “E agora, que eu sou mesmo da virada / e topo qualquer parada / por um prato de comida”; Joyce ("Astronauta: canções de Elis", 1998): "E hoje, que eu sou mesmo da virada / que topo qualquer parada / por um prato de comida"; Carmen Miranda, em 1934: "Agora, que eu sou mesmo da virada / e que não tenho nada, nada / e de Deus fui esquecida (...)". Opa! Não houve apenas a troca de uma palavra, mas de versos inteiros (há, ainda, outras "trocas" na mesma letra). Relacionei sete gravações... sete gravações diferentes. E aí? Qual a letra original? No encarte do CD da Elizeth, Hermínio Bello de Carvalho tece comentários sobre essa “troca”, mas não diz qual a versão correta. Apenas aborda os tais “percalços melódico-literários”, a cargo “dos intérpretes”. Ainda vou atrás da letra original! Ah, se vou!
Pois é, há muitas outras trocas de letras sobre as quais poderíamos tecer alguns comentários. Quem sabe não vem aí um “Sopa de letras II”? Esperemos. No entanto, eu também gostaria de deixar registrado que essas trocas - ou outros pequenos deslizes - não invalidam as gravações ou tiram o brilho dos intérpretes. Até!   


FORÇA ESTRANHA

Caetano Veloso

Eu vi um menino correndo
Eu vi o tempo
Brincando ao redor do caminho daquele menino
Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei
O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei

Eu vi a mulher preparando outra pessoa
O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga
A vida é amiga da arte
É a parte que o sol me ensinou
O sol que atravessa essa estrada que nunca passou

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

Eu vi muitos cabelos brancos na fonte do artista
O tempo não para e no entanto ele nunca envelhece
Aquele que conhece o jogo
Do fogo das coisas que são
É o sol, é a estrada, é o tempo, é o pé e é o chão

Eu vi muitos homens brigando
Ouvi seus gritos
Estive no fundo de cada vontade encoberta
E a coisa mais certa de todas as coisas
Não vale um caminho sob o sol
E o sol sobre a estrada é o sol sobre a estrada é o sol

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

Fonte: VELOSO, Caetano. Letra só. Organização Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

            NOS BAILES DA VIDA
            Milton Nascimento / Fernando Brant

            Foi nos bailes da vida ou num bar em troca de pão
            que muita gente boa pôs o pé na profissão
            de tocar um instrumento e de cantar
            não importando se quem pagou quis ouvir
            foi assim
            Cantar era buscar o caminho que vai dar no sol
            tenho comigo as lembranças do que eu era
            para cantar nada era longe, tudo tão bom
            ‘té a estrada de terra na boleia de caminhão           
            era assim
            com a roupa encharcada, a alma repleta de chão
            todo artista tem de ir aonde o povo está
            se foi assim, assim será
            cantando me desfaço e não me canso de viver
            nem de cantar
            Fonte: CD "Caçador de mim", Milton Nascimento, PolyGram, 837258-2, 1997. LP lançado em 1981.

                    
CORAÇÃO DE ESTUDANTE
Wagner Tiso / Fernando Brant

Quero falar de uma coisa
adivinha onde ela anda?
deve estar dentro do peito
ou caminha pelo ar
pode estar aqui do lado
bem mais perto que pensamos
a folha da juventude
é o nome certo desse amor

já podaram seus momentos
desviaram seu destino
seu sorriso de menino
quantas vezes se escondeu
mas renova-se a esperança
nova aurora a cada dia
e há que se cuidar do broto
pra que a vida nos dê flor e fruto

Coração de estudante
há que se cuidar da vida
há que se cuidar do mundo
tomar conta da amizade
alegria em muito sonho
espalhados no caminho
verdes, planta e sentimento
folhas, coração, juventude e fé

                  Fonte: CD “Milton Nascimento ao vivo”, PolyGram, 817307-2, 1997. LP lançado em 1983.

APENAS UM RAPAZ LATINO-AMERICANO
Belchior

Eu sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco,
sem parentes importantes e vindo do interior.
Mas trago de cabeça uma canção do rádio
em que um antigo compositor baiano me dizia:
“Tudo é divino. Tudo é maravilhoso!”

Tenho ouvido muitos discos,
conversado com pessoas,
caminhado o meu caminho...
Papo, o som dentro da noite
e não tenho um amigo sequer que ainda acredite nisso, não.
(Tudo muda. E com toda razão).

Eu sou apenas um rapaz latino-americano,
sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior
Mas sei que tudo é proibido.
Aliás, eu queria dizer que tudo é permitodo.
Até beijar você no escuro do cinema (quando ninguém nos vê...)

Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve:
correta, branca, suave, muito limpa, muito leve.
Sons palavras são navalhas.
E eu posso cantar como convém,
Sem querer ferir ninguém:

Mas não se preocupe, meu amigo,
com os horrores que eu lhe digo.
Isto é somente uma canção.
A vida, realmente, é diferente
Quer dizer: ao vivo é muito pior!

Eu sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco
Por favor, não saque a arma no sallon. Eu sou apenas o cantor.
Mas se depois de cantar você ainda quiser me atirar,
mate-me logo à tarde, às três,
que à noite eu tenho compromisso
e não posso faltar por causa de vocês.

Eu sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco,
sem parentes importantes e vindo do interior.
Mas sei que nada é divino
Nada é maravilhoso
Nada é secreto.
Nada é misterioso. Não.  

Fonte: CD “Auto-retrato (autorretrato)”, Belchior, BMG, 7432169316-2, 1999.


MUITO ROMÂNTICO
Caetano Veloso

Não tenho nada com isso, nem vem falar
Eu não consigo entender sua lógica
Minha palavra cantada pode espantar
E as seus ouvidos parecer exótica

Mas acontece que eu não posso me deixar
Levar por um papo que já não deu
Acho que nada restou pra guardar ou lembrar
Do muito ou pouco que houve entre você e eu

Nenhuma força virá me fazer calar
Faço no tempo soar minha sílaba
Canto somente o que pede pra se cantar
Sou o que soa, eu não douro pílula

Tudo que eu quero é um acorde perfeito maior
Com todo mundo podendo brilhar num cântico
Canto somente o que não pode mais se calar
Noutras palavras, sou muito romântico

Fonte: VELOSO, Caetano. Letra só. Organização Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.



AS ROSAS NÃO FALAM
Cartola

Bate outra vez
Com esperanças o meu coração
Pois já vai terminando o verão,
Enfim
Volto ao jardim
Com a certeza que devo chorar
Pois bem sei que não queres voltar
Para mim
Queixo-me às rosas
Mas que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai
Devias vir
Para ver os meus olhos tristonhos
E, quem sabe, sonhavas meus sonhos
Por fim

Fontes:
MONTEIRO, Denilson. Divino Cartola: uma vida em verde e rosa. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2013. P. 119. 
LP  "Cartola: Bate outra vez...", Som Livre, 406.0034, 1988.