domingo, 26 de janeiro de 2014

NOSSO "BUDA NAGÔ"





SAUDADE DA BAHIA
Dorival Caymmi
Ai, ai que saudade que eu tenho da Bahia
Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia
“Bem, não vá deixar a sua mãe aflita
A gente faz o que o coração dita
Mas esse mundo é feito de maldade e ilusão”
Ai, se eu escutasse hoje não sofria
Ai, esta saudade dentro do meu peito
Ai, se ter saudade é ter algum defeito
Eu, pelo menos, mereço o direito
De ter alguém com quem eu possa
me confessar

Ponha-se no meu lugar
E veja como sofre um homem infeliz
Que teve que desabafar
Dizendo a todo mundo
O que ninguém diz
Vejam que situação
E vejam como sofre um pobre coração
Pobre de quem acredita
Na glória e no dinheiro
Para ser feliz

Ref.: “Eu vou pra Maracangalha”, Dorival Caymmi, ODEON, 1957 (CD 530595 2 – Caixa “Caymmi e o mar”, ODEON)


 "(...) Nessas tortuosas trilhas / A viola me redime / Creia, ilustre cavalheiro / Contra fel, moléstica, crime / Use Dorival Caymmi (...)"
                                                               (Chico Buarque, "Paratodos")
 
"Dorival Caymmi falou pra Oxum: / Com Silas tô em boa companhia / O céu abraça a terra / Deságua o Rio na Bahia (...)"
 
(João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio, "Nação")

"Todas as coisas ruins que se apresentam de modo tão estridente ao nosso redor agora mesmo estão sob o jugo de sua calma, de sua teimosa paciência, de sua doçura, de sua luminosa inspiração. (...) As coisas ruins vão ter de se virar para enfrentá-lo."

(Caetano Veloso, "O Globo", 27-04-14)
            "Quando Dorival Caymmi saiu pro mar na última jangada, me pediram depoimentos. Entre outras coisas, eu disse que o Brasil havia perdido seu Pai e que sentia a partida como se fosse uma catástrofe ecológica. De um momento pro outro, ficamos sem mar, sem vento, sem verde, perdidos numa escuridão muito pior que a da Lagoa do Abaeté. (...)"
                                   (Aldir Blanc, "O Globo, 27-04-14)
         

           NOSSO “BUDA NAGÔ”
               Uma homenagem ao centenário de Dorival Caymmi

 Por Fábio Brito

Se eu tivesse de escolher a mais bela canção do Caymmi, nosso “Buda nagô”, como bem disse Gilberto Gil, escolheria “Saudade da Bahia”. O motivo é um só: é essencial que a humanidade entenda isto: “pobre de quem acredita / na glória e no dinheiro / para ser feliz”. Assim, fica resumido, para mim, o saber viver. Não há filósofo no mundo que dê conta de uma definição mais precisa do que essa do Caymmi.
Lembro que, em 1973, numa das escolas públicas em que estudei, as professoras nos organizavam em filas antes de entrarmos para as salas de aula. Assim, cantávamos algumas canções, entre as quais, lembro perfeitamente, estava a “Marcha dos pescadores (Suíte dos pescadores)/ História de Pescadores – Canção da partida”, do Caymmi: “Minha jangada vai sair pro mar / vou trabalhar / Meu bem-querer / Se Deus quiser / Quando eu voltar do mar / Um peixe bom eu vou trazer / Meus companheiros também vão voltar / E a Deus do céu vamos agradecer // A estrela-d’alva me acompanha / Iluminando o meu caminho / E eu sei que nunca estou sozinho / Pois tenho alguém que está pensando em mim”. Jamais esqueci tal canção. Eu não sabia quem era o compositor ou quem a cantava. Nem sei se as professoras disseram-nos. Talvez sim. O fato é que essa canção, cantada com vontade pela criançada, era praticamente de “domínio público”. Entre as que “entoávamos”, essa do Caymmi era a de que eu mais gostava. Minha cabecinha de criança que imaginava muito e que, além da música, já gostava bastante de literatura, viajava: todas as imagens, e mais algumas, que a letra evocava (e evoca) estão comigo até hoje. Enquanto eu cantava, imaginava os pescadores saindo para o mar e voltando carregadinhos de peixe. Imaginava, principalmente, que eles saíam à noite, sempre “acompanhados” não só da “estrela-d’alva”, mas de muitas outras estrelas.
  Um ano depois, mais um pouquinho de Caymmi chega à minha vida. Dessa vez, trazido por Clara Nunes, que regravara “O que é que a baiana tem?”, sucesso de Carmem Miranda, em seu disco daquele já distante 1974: “O que é que a baiana tem? / Que é que a baiana tem // Tem torço de seda, tem! / Tem brincos de ouro, tem! / Corrente de ouro, tem! / Tem pano-da-costa, tem! / Tem bata rendada, tem! / Pulseira de ouro, tem! / Tem saia engomada, tem! / Sandália enfeitada, tem! // Tem graça como ninguém... / Como ela requebra bem... // Quando você se requebrar, / Caia por cima de mim... // (...) Um rosário de ouro / Uma bolota assim / Quem não tem balangandãs / Ô não vai no Bonfim / Ô não vai no Bonfim...” Mais imagética impossível! A “baiana” está toda aí, da cabeça aos pés. Eu ouvia a canção desenhando a baiana em minha cabeça. Quer exercício melhor para uma criança?  
   Em 1976, Gal Costa, em estado de graça, gravou um disco somente com canções do Caymmi: "Gal canta Caymmi". "O brilho agudo, musical", como disse Bethânia em letra musicada por Caetano, da voz espetacular de Gal entregou-se belamente a uma obra rara e deixou para a posteridade um dos momentos mais sublimes da MPB. "Vatapá", "Festa de rua", "Dois de fevereiro", "Só louco" e "Pescaria (canoeiro)" estão entre as obras-primas desse disco.   
            Tempos depois, mais canções do Caymmi me arrebatariam, como "Saudade" (parceria com Fernando Lobo, pai do Edu), da qual conheci nterpretações memoráveis e comoventes: Orlando Silva, que a gravou em  1947, e Nana Caymmi, que a registrou em 1975 e 2007: “Tudo acontece na vida / Tudo acontece a todos nós / Sempre uma dor / E de um infeliz se ouve a voz, ai // Sinto saudades, tristezas / Bem dentro de mim / Coisas passadas, já mortas / Que tiveram fim / Tenho meus olhos parados, / Perdidos, distantes / Como se a vida me fora / O que era antes / Cartas, palavras, notícias / Não vêm sequer / E a certeza me diz / Que ela era o meu bem // O que dói profundamente / É saber que infelizmente / A vida é aquilo que a gente não quer”.

Nosso mestre cantando "Sargaço mar", que, como disse Antônio Carlos Miguel, "é uma canção em tons impressionistas, carregada de sua paixão por Debussy, Ravel e companhia", em disco gravado em Montreux (1991), é inebriante. Desde que ouvi essa canção, os graves profundos do velho "Algodão" não puderam mais ser esquecidos: "Quando se for esse fim de som / Doida canção / Que não fui eu que fiz / Verde luz, verde cor de arrebentação / Sargaço mar, sargaço ar / Deusa do amor, deusa do mar / Vou me atirar, beber o mar / Alucinado, desesperar / Querer morrer para viver / com Iemanjá (...)". Nana também a registrou em 2001 ("O mar e o tempo") e com o mesmo brilho. 
“Mãe Menininha do Gantois” é, como todos sabemos, a ialorixá mais famosa do Brasil. Mesmo depois de sua morte, ela continua sendo uma lembrança muito forte, emblemática. Em 1972, Caymmi nos trouxe uma homenagem a essa senhora iluminada: a “Oração de Mãe Menininha”. No ano seguinte, Gal e Bethânia, em dueto, registraram-na(“Phono 73 – o canto de um povo"). No mesmo ano, Clementina de Jesus, a rainha Quelé, também a gravou: é a canção que abre a segunda faixa - "Cinco cantos religiosos" - do lado B do LP "Marinheiro só". Simone gravou-a em 74 (“Festa Brasil”, disco dividido com João de Aquino), D. Yvonne Lara, no vol. 2 do "Songook Dorival Caymmi",  e, há poucos anos, o português Luis Represas gravou-a com a participação de Martinho da Vila (“Navegar é preciso”). D. Canô, mãe de Caetano e Bethânia, referindo-se a essa canção, disse que ela “é comovente”. E é uma oração mesmo. Uma comovente oração: “Ai, minha mãe / Minha mãe Menininha / Ai, minha mãe / Menininha do Gantois // A estrela mais linda, hein? / Tá no Gantois / E o sol mais brilhante, hein? / Tá no Gantois / A beleza do mundo, hein? / Tá no Gantois / E a mão da doçura, hein? / Tá no Gantois / O consolo da gente, ai / Tá no Gantois / E a Oxum mais bonita, hein? / Tá no Gantois // Olorum quem mandou / Essa filha de Oxum / Tomar conta da gente / De tudo cuidar / Olorum quem mandô-ê-ô / Ora, iê-iê-ô...”
Não dá para não tecer mais comentários sobre outras canções de nosso “Buda Nagô”. Impossível não me lembrar, por exemplo, de “Adeus”, gravada pelo próprio Caymmi em 1960, e pela filha, Nana, em dois álbuns só com canções do pai: “O mar e o tempo” e “Quem inventou o amor”, de 2002 e 2007, respectivamente. Que canção extraordinária! As três gravações trazem uma dor tão profunda, que é impossível não chorar: “Adeus, vivo sempre a dizer / Adeus / Adeus, pois não posso esquecer / Adeus / Inda me lembro de um lenço, de longe, / acenando pra mim / Talvez com indiferença, sem pena / de mim / Adeus / Quando olho pro mar / Adeus / Adeus, quando vejo o luar / Adeus / Tudo o que é belo na vida, recorda / um amor que eu perdi / Tudo recorda uma vida feliz que eu vivi / (...) E a saudade pra martirizar / No meu peito já veio morar / Só pra me ver chorar”. Também de "Quem inventou o amor" e "O mar e o tempo", colho outra que, para mim, está entre as mais belas composições do mestre: "Desde ontem". Nana, como sempre, canta com a alma. A gravação do segundo disco está mais doída ainda. Nos versos "eram horas de tormento e solidãããããoooo", é possível sentir a "solidão" de forma avassaladora com a voz espetacular da primogênita de Caymmi.  

Caymmi, para mim, é o “Rubem Braga da música”. Ele é "a" simplicidade. Em sua crônica “Um sonho de simplicidade”, o mais ilustre dos cachoeirenses nos diz da felicidade que há no mais simples: “Que restaurante ou boate me deu o prazer que tive na choupana daquele velho caboclo no Acre? A gente tinha ido pescar no rio, de noite. Puxamos a rede afundando os pés na lama, na noite escura, e isso era bom. Quando ficamos bem cansados, meio molhados, com frio, subimos a barranca, no meio do mato, e chagamos à choça de um velho seringueiro. Ele acendeu um fogo, esquentamos um pouco junto do fogo, depois me deitei numa grande rede branca – foi um carinho ao longo de todos os músculos cansados. E então ele me deu um pedaço de peixe moqueado e meia caneca de cachaça. Que prazer em comer aquele peixe, que calor bom em tomar aquela cachaça e ficar algum tempo a conversar, entre grilos e vozes distantes de animais noturnos.
As canções de Caymmi são esse “pedaço de peixe moqueado e essa meia caneca de cachaça” de que nos fala o velho Braga. Só o mais simples. A roupa, por exemplo: quanto menos “enfeitada”, mais chique, não é? Nada de “oncinhas”, “jaguatiricas” e brincos parecendo um “candelabro”. Caymmi é esse requinte que está, e que mora, na simplicidade. O que muitos pensam ser sofisticação não passa de pura breguice. Não passa do mais pesado mau gosto. Caymmi é aquele tubinho preto que, com um fiozinho de pérolas no pescoço, arrasa em qualquer festa. Mais nada. No entanto, atenção! Simples, aqui, não significa simplório, como eu já disse em texto sobre o Braga. Simples é o essencial, o fundamental, como o são, na literatura, Quintana, Adélia Prado e Bandeira, por exemplo. Até as tão comentadas harmonias sofisticadas de Caymmi (ele “lançou mão de um vocabulário harmônico mais amplo que o até então utilizado na música brasileira”, como afirma Luís Antônio Giron), que, anos mais tarde, estariam na Bossa Nova, também não deixam de integrar o que chamo de “pacote de simplicidades”. À primeira vista, ou “à primeira ouvida”, sofisticação e simplicidade podem parecer palavras que se opõem. Não é bem assim. Sofisticação, aqui, não significa algo inacessível ou incompreensível, mas belo, equilibrado e exato.
E por falar em exatidão, foi o próprio Caymmi que, em entrevista à antiga “Revista da Música Popular”, disse que sua meta era a “função exata da canção”, cuja inspiração foi a leitura, entre outros, de Drummond, Neruda e Bandeira, além da música de Mozart, Fauré, Bach e do folclore da Bahia. E é essa sensação do “exato”, do pontual, do irretocável que temos ouvindo esse mestre, esse "patriarca da música popular, um obá da Bahia", como afirmou Jorge Amado no encarte do disco de Caymmi de 72. Comparando-o com outros compositores, vê-se que ele não compôs muito, mas o que está aí é “joia raríssima”. Tudo inteiro e completo. Se, como dizem, ele levava muito tempo para concluir uma canção, é porque buscava, com certeza, a exatidão. Nada sobrou, nada foi pouco em se tratando de Dorival Caymmi. Ele foi, simplesmente, exato. Caymmi é um clássico. É atemporal.
  
NEM EU
Dorival Caymmi

Não fazes favor nenhum
Em gostar de alguém
Nem eu
Nem eu
Nem eu
Quem inventou o amor
Não fui eu
  Não fui eu  
Não fui eu
Não fui eu nem ninguém

O amor acontece na vida
Estavas desprevenida
E por acaso eu também
E como o acaso é importante, querida,
De nossas vidas a vida
Fez um brinquedo também


SÓ LOUCO
Dorival Caymmi

Só louco
Amou como eu amei
Só louco
Quis o bem que eu quis

Oh! insensato coração
Por que me fizeste sofrer?
Porque de amor para entender
É preciso amar

Porque


VOCÊ NÃO SABE AMAR
 Dorival Caymmi / Carlos Guinle / Hugo Lima 

Você não sabe amar, meu bem
Não sabe o que é o amor
Nunca viveu
Nunca sofreu
E quer saber mais que eu

O nosso amor parou aqui
E foi melhor assim
Você esperava
E eu também
Que esse fosse o seu fim

O nosso amor não teve, querida,
As coisas boas da vida
E foi melhor para você
E foi também melhor pra mim

Você não sabe amar, meu bem...


O BEM DO MAR
Dorival Caymmi 

O pescador tem dois amor
Um bem na terra
Um bem no mar

O bem de terra 
É aquela que fica na beira da praia
Quando a gente sai
(O bem de terra
É aquela que chora
Mas faz que não chora
 Quando a gente sai*)
O bem do mar 
É o mar
É o mar
Que carrega com a gente
Pra gente pescar

*Gal Costa, "Água viva", 1978

JOÃO VALENTÃO
Dorival Caymmi 

João Valentão
é brigão
Pra dar bofetão
não presta atenção
e nem pensa na vida
A todos João intimida
faz coisas que até Deus duvida,
mas tem seu momento na vida

É quando o sol vai quebrando
lá pro fim do mundo
 pra noite chegar
É quando se ouve mais forte
o ronco das ondas na beira do mar
É quando o cansaço da lida da vida
obriga João se sentar
É quando a morena se encolhe
se chega pro lado querendo agradar

Se a noite é de lua
a vontade é contar mentira
é se espreguiçar
Deitar na areia da praia
que acaba onde a vista não pode alcançar
E assim adormece esse homem
que nunca precisa dormir
pra sonhar
Porque não há sonho mais lindo
do que sua terra
não há

(Fonte: caixa "Caymmi e o mar", Odeon)

Caetano Veloso, em sua coluna de "O Globo" do dia 27-04-14, contou-nos uma história excelente, que reforça mais ainda a grandeza de Caymmi. Disse-nos que, certa vez, ele e outros artistas foram à casa de veraneio de "Seu Dorival", como diz o Renato Braz, para a gravação de um encontro com o mestre. Ao chegarem, Caymmi o levou a uma sala para mostrar-lhe algo importante que ele havia feito: "Olha o que eu fiz: botei o ventilador de frente para a poltrona. Eu me sento aqui e fico só pensando coisas boas". 

                                                         Foto: Fábio Brito



domingo, 5 de janeiro de 2014

UM SABIÁ CENTENÁRIO



                                                              Fotos: Fábio Brito

UM SABIÁ CENTENÁRIO*
Por Fábio Brito
Dia 12 de janeiro de 1913, há 101 anos, Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, dava à luz o escritor Rubem Braga, o “Sabiá da crônica”, irmão do também escritor Newton Braga.
Em sua cidade natal, já adolescente, o menino Rubem (ou Rubinho, como o chamavam) fora expulso da escola Pedro Palácios, onde estudava há seis anos.  O que se sabe acerca dos motivos que o levaram a sair da escola é que, pelo fato de ser fraco em matemática, ele teria sido chamado de “burro” pelo prof. Ávila Júnior. Inexistindo outra escola secundária em Cachoeiro, decidiu-se que o jovem Braga estudaria em Icaraí, Niterói, no Rio de Janeiro.
Foi no Rio, aos 15 anos e ainda estudante do Salesiano Santa Rosa, que Braga passa a colaborar com o jornal “Correio do Sul”, de sua cidade natal. Começa a nascer aí o jornalista/escritor: publica crônicas, poemas e artigos sobre política e economia. O tempo passa e, como jornalista, trabalha em importantes jornais e revistas de algumas cidades do país, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Recife.
Reverenciado e reconhecido até mesmo por seus colegas de ofício como o melhor cronista brasileiro, Braga se destacou em um gênero que, até pouco tempo atrás, era visto como “menor”. Por que o preconceito?, muitos podem perguntar. O folhetim-variedades, que deu origem à crônica, era um espaço nos rodapés dos jornais em que havia desde romances em capítulos até matérias que comentavam fatos do dia a dia, trivialidades. E o jornal, descartado no dia seguinte, servia, como faziam questão de frisar, para embrulhar o peixe da feira. No entanto, com Braga - e com outros escritores, claro! - o gênero “crônica” ganhou “status” de grande literatura.
Em seus textos, o que se observa é, antes de tudo, a simplicidade, mas não o simplório. Em linguagem coloquial, Braga consegue ser lírico e profundo. Vai em busca de detalhes que, no corre-corre do dia a dia, a maioria das pessoas não enxerga. Com seu senso de observação bem apurado, ele nos faz meditar sobre qualquer tipo de assunto. Convida-nos para um “papo-cabeça”, como se dizia há um tempo, mas sem o peso da formalidade de uma conversa “séria”, embora seja séria. É o tal “lirismo reflexivo”, mas que se dá de forma ágil, direta, sem adjetivações. Ele não faz discursos empolados. Joaquim Ferreira dos Santos, também cronista, disse que Braga “foi o mestre de todos, roçando a poesia na observação do nada”. Pronto! Santos definiu perfeitamente o “jeito Braga de escrever crônicas”. Ele nos faz pensar, sim, mas por meio da simplicidade, o que não é tarefa para qualquer um.
Exatamente porque aborda assuntos que são comuns à maioria das pessoas, a crônica pode ser a isca para atrairmos leitores para a literatura e, quem sabe, futuros escritores. Porque não conheço um sujeito sequer que tenha ‘se’ tornado escritor sem, antes, ter sido um bom leitor, a formação de escritores, ou de bons redatores/produtores de textos, pode encontrar na crônica uma solução. Que tal? Se pudermos começar por Braga, será excelente, porque ele é um escritor bem próximo das pessoas. Não é alguém distante e difícil, que põe a literatura num pedestal. Lendo Braga, temos a certeza de que escrever não é tão difícil como falam por aí. Não há uma pessoa que, após lê-lo, não se sinta motivada a escrever suas histórias, que só assim, registradas, ficarão guardadas para sempre. Todos nós, com certeza, temos muitas histórias a serem contadas.
Seus textos discorrem, entre muitos assuntos, sobre a infância, sobre o “paraíso perdido”. Quer assunto mais empolgante que falar de infância? Em sua obra, vamos encontrar tudo o que agrada às crianças e aos adultos. Vamos encontrar tudo o que agrada a pessoas sensíveis: textos envolventes, histórias da cidade, da família, dos vizinhos, das brincadeiras...  Basta começarmos a ler “Os trovões de antigamente”, “A vingança de uma Teixeira”, “Histórias de Zig”, “O cajueiro”, “As Teixeiras moravam em frente”, “A minha glória literária”, “Negócio de menino” ou “Passeio à infância”, por exemplo, e constataremos a riqueza e o fascínio da narrativa do velho “Braga”, um clássico da literatura brasileira da melhor qualidade. 
Texto publicado (com alterações) no jornal “Mundo Jovem” (ano 51, nº 442, novembro/13)
UM SONHO DE SIMPLICIDADE
Então, de repente, no meio dessa desarrumação feroz da vida urbana, dá na gente um sonho de simplicidade. Será um sonho vão? Detenho-me um instante, entre duas providencias a tomar, para me fazer essa pergunta. Por que fumar tantos cigarros? Eles não me dão prazer algum; apenas me fazem falta. São uma necessidade que inventei. Por que beber uísque, por que procurar a voz de mulher na penumbra ou amigos no bar para dizer coisas vãs, brilhar um pouco, saber intrigas?
Uma vez, entrando numa loja para comprar uma gravata, tive de repente um ataque de pudor, me surpreendendo assim, a escolher um pano colorido para amarrar ao pescoço.
A vida poderia ser mais simples. Precisamos de uma casa, comida, uma simples mulher, que mais? Que se possa andar limpo e não ter fome, nem sede, nem frio. Para que beber tanta coisa gelada? Antes eu tomava água fresca da talha, e a água era boa. E quando precisava de um pouco de evasão, meu trago de cachaça.
Que restaurante ou boate me deu o prazer que tive na choupana daquele velho caboclo no Acre? A gente tinha ido pescar no rio, de noite. Puxamos a rede afundando os pés na lama, na noite escura, e isso era bom. Quando ficamos bem cansados, meio molhados, com frio, subimos a barranca, no meio do mato, e chagamos à choça de um velho seringueiro. Ele acendeu um fogo, esquentamos um pouco junto do fogo, depois me deitei numa grande rede branca – foi um carinho ao longo de todos os músculos cansados. E então ele me deu um pedaço de peixe moqueado e meia caneca de cachaça. Que prazer em comer aquele peixe, que calor bom em tomar aquela cachaça e ficar algum tempo a conversar, entre grilos e vozes distantes de animais noturnos.
Seria possível deixar essa eterna inquietação das madrugadas urbanas, inaugurar de repente uma vida de acordar bem cedo? Outro dia vi uma linda mulher, e senti um entusiasmo grande, uma vontade de conhecer mais aquela bela estrangeira: conversamos muito, essa primeira conversa longa em que a gente vai jogando um baralho meio marcado, e anda devagar, como a patrulha que faz um reconhecimento. Mas por que, para que, essa eterna curiosidade, essa fome de outros corpos e outras almas?
Mas para instaurar uma vida mais simples e sábia, então seria preciso ganhar a vida de outro jeito, não assim, nesse comércio de pequenas pilhas de palavras, esse ofício absurdo e vão de dizer coisas, dizer coisas… Seria preciso fazer algo de sólido e de singelo; tirar areia do rio, cortar lenha, lavrar a terra, algo de útil e concreto, que me fatigasse o corpo, mas deixasse a alma sossegada e limpa.
Todo mundo, com certeza, tem de repente um sonho assim. É apenas um instante. O telefone toca. Um momento! Tiramos um lápis do bolso para tomar nota de um nome, um número… Para que tomar nota? Não precisamos tomar nota de nada, precisamos apenas viver – sem nome, nem número, fortes, doces, distraídos, bons, como os bois, as mangueiras e o ribeirão.
A VINGANÇA DE UMA TEIXEIRA
A troca da bola de meia para a bola de borracha foi uma importante evolução técnica do association em nossa rua. Nossa primeira bola de borracha era branca e pequena; um dia, entretanto, apareceu um menino com uma bola maior, de várias cores, belíssima, uma grande bola que seus pais haviam trazido do Rio de Janeiro. Um deslumbramento; dava até pena de chutar. Admiramo-la em silêncio; ela passou de mão em mão; jamais nenhum de nós tinha visto coisa tão linda.
Era natural que as Teixeiras não gostassem quando essa bola partiu uma vidraça. Nós todos sentimos que acontecera algo de terrível. Alguns meninos correram; outros ficaram a certa distância da janela, olhando, trêmulos, mas apesar de tudo dispostos a enfrentar a catástrofe. Apareceu logo uma das Teixeiras, e gritou várias descomposturas. Ficamos todos imóveis, calados, ouvindo, sucumbidos. Ela apanhou a bola e sumiu para dentro de casa. Voltou logo depois e, em nossa frente, executou o castigo terrível: com um canivete preto furou a bola, depois cortou-a em duas metades e jogou-a à rua. Nunca nenhum de nós teria podido imaginar um ato de maldade tão revoltante. Choramos de raiva; apareceram mais duas Teixeiras que davam gritos e ameaçavam descer para nos puxar as orelhas. Fugimos.
A reunião foi junto do cajueiro do morro. Nossa primeira idéia de vingança foi quebrar outras vidraças a pedradas. Alguém teve um plano mais engenhoso: dali mesmo, do alto do morro, podíamos quebrar as vidraças com atiradeiras, e assim ninguém nos veria. – Mas elas vão logo dizer que fomos nós!
Alguém informou que as Teixeiras iam todas no dia seguinte para uma festa na fazenda, um casamento ou coisa que o valha. O plano de assalto à casa foi traçado por mim. A casa das Teixeiras dava os fundos para um rio e uma vez, em que passeava de canoa, pescando aqui e ali, eu entrara em seu quintal para roubar carambolas. Havia um cachorro, mas era nosso conhecido, fácil de enganar.
Falou-se muito tempo dos ladrões que tinham arrombado a porta da cozinha da casa das Teixeiras. Um cabo de polícia esteve lá, mas não chegou a nenhuma conclusão. Os ladrões tinham roubado um anel sem muito valor, mas de grande estimação, com monograma, e tinham feito uma desordem tremenda na casa; havia vestidos espalhados pelo chão, um tinteiro e uma caixa de pó-de-arroz entornados em um quarto, sobre uma cama. Falou-se que tinha desaparecido dinheiro, mas era mentira; lembro-me vagamente de uma faca de cozinha, um martelo, uma lata de goiabada; isso foi todo nosso butim.
O anel foi enterrado em algum lugar no alto do morro; mas alguns dias depois caiu um temporal e houve forte enxurrada; jamais conseguimos encontrar nosso tesouro secretíssimo, e rasgamos o mapa que havíamos desenhado.
Durante algum tempo as famílias da rua fecharam com mais cuidado as portas e janelas, alguns pais de família saltaram assustados da cama a qualquer ruído, com medo dos ladrões, mas eles não apareceram mais.
Nosso terrível segredo nos deu um grande sentimento de importância, mas nunca mais jogamos futebol diante da casa das Teixeiras. Deixamos de cumprimentar a que abrira a bola com o canivete; mesmo anos depois, já grandes, não lhe dávamos sequer bom-dia. Não sei se foi feliz na existência, e espero que não; se foi, é porque praga de menino não tem força nenhuma.
O PAVÃO
Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.
Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
HISTÓRIA TRISTE DE TUIM 
João-de-barro é um bicho bobo que ninguém pega, embora goste de ficar perto da gente, mas de dentro daquela casa de João-de-barro vinha uma espécie de choro, um chorinho fazendo tuim, tuim, tuim....
A casa estava num galho alto, mas um menino subiu até perto, depois com uma vara de bambu conseguiu tirar a casa sem quebrar e veio baixando até o outro menino apanhar. Dentro, naquele quartinho que fica bem escondido depois do corredor de entrada para o vento não incomodar, havia três filhotes, não de João-de-barro, mas de tuim.
Você conhece, não? De todos esses periquitinhos que tem no Brasil, tuim é capaz de ser menor. Tem bico redondo e rabo curto e é todo verde, mas o macho tem umas penas azuis para enfeitar. Três filhotes, um mais feio que o outro, ainda sem penas, os três chorando.
O menino levou-os para casa, inventou comidinhas para eles, um morreu, outro morreu, ficou um. Geralmente se cria em casa é casal de tuim, especialmente para se apreciar o namorinho deles.
Mas aquele tuim macho foi criado sozinho e, como se diz na roça, criado no dedo. Passava o dia solto, esvoaçando em volta da casa da fazenda, comendo sementinhas de imbaúba. Se aperecia uma visita fazia-se aquela demonstração: era o menino chegar na varanda e gritar para o arvoredo: tuim, tuim, tuim! Às vezes demorava, então a visita achava que aquilo era brincadeira do menino, de repente surgia a ave, vinha certinho pousar no dedo do garoto.
Mas o pai disse: "menino, você está criando muito amor a esse bicho, quero avisar: tuim é acostumado a viver em bando. Esse bichinho se acostuma assim, toda tarde vem procurar sua gaiola para dormir, mas no dia que passar pela fazenda um bando de tuins, adeus. Ou você prende o tuim ou ele vai embora com os outros, mesmo ele estando preso e ouvindo o bando passar, esta arriscado ele morrer de tristeza".
E o menino vivia de ouvido no ar com medo de ouvir bando de tuim.
Foi de manhã, ele estava cantando minhoca para pescar quando viu o bando chegar, não tinha engano: era tuim, tuim, tuim... Todos desceram ali mesmo em mangueiras, mamonas e num bambuzal, dividido em partes. E o seu? Já tinha sumido, estava no meio deles, logo depois todos sumiram para uma roça de arroz, o menino gritava com o dedinho esticado para o tuim voltar, mas nada dele vir.
Só parou de chorar quando o pai chegou a cavalo, soube da coisa e disse: " venha cá". E disse: " o senhor é um homem, estava avisado do que ia acontecer, portanto, não chore mais".
O menino parou de chorar, pois seu pai o havia consolado, mas como doía seu coração! De repente, olhe o tuim na varanda! Foi uma alegria na casa que foi uma beleza, até o pai confessou que ele também estivera muito infeliz com o sumiço do tuim.
Houve quase um conselho de família, quando acabaram as férias: deixar o tuim, levar o tuim para São Paulo? Voltaram para a cidade com o tuim, o menino toda hora dando comidinha a ele na viagem. O pai avisou: "aqui na cidade ele não pode andar solto, é um bicho da roça e se perde, o senhor está avisado".
Aquilo encheu de medo o coração do menino. Fechava as janelas para soltar o tuim dentro de casa, andava com ele no dedo, ele voava pela sala, a mãe e a irmã não aprovavam, o tuim sujava dentro de casa.
Soltar um pouquinho no quintal não devia ser perigo, desde que ficasse perto, se ele quisesse voar para longe era só chamar, que voltava, mas uma vez não voltou.
De casa em casa, o menino foi indagando pelo tuim: "que é tuim?" perguntavam pessoas ignorantes. "Tuim?" Que raiva! Pedia licença para olhar no quintal de cada casa, perdeu a hora de almoçar e ir para a escola, foi para outra rua, para outra.
Teve uma idéia, foi ao armazém de "seu" Perrota: "tem gaiola para vender?" Disseram que tinha. "Venderam alguma gaiola hoje?" Tinham vendido uma para uma casa ali perto.
Foi lá, chorando, disse ao dono da casa: "se não prenderam o meu tuim então por que o senhor comprou gaiola hoje?"
O homem acabou confessando que tinha aparecido um periquitinho verde sim, de rabo curto, não sabia que chamava tuim. Ofereceu comprar, o filho dele gostara tanto, ia ficar desapontado quando voltasse da escola e não achasse mais o bichinho. "Não senhor, o tuim é meu, foi criado por mim".
Voltou para casa com o tuim no dedo.
Pegou uma tesoura: era triste, era uma judiação, mas era preciso, cortou as asinhas, assim o bichinho poderia andar solto no quintal, e nunca mais fugiria.
Depois foi dentro de casa para fazer uma coisa que estava precisando fazer, e, quando voltou para dar comida a seu tuim, viu só algumas penas verdes e as manchas de sangue no cimento. Subiu num caixote para olhar por cima do muro, e ainda viu o vulto de um gato ruivo que sumia.
Acabou-se a triste história do tuim.
LOUVAÇÃO
Já escrevi sobre isso: mas a coisa me impressionou, e além do mais ainda não recebi os jornais, são seis e quarenta, e Chico Brito combinou de passar às 8 horas para irmos às enxovas. Se começar a procurar assunto, acabo perdendo  a pescaria. E acontece que há pouco , quando acordei,eu estava sonhando com isso. Via um homem de avental e touca, como se fosse um sacerdote, mas um sacerdote em paramentos brancos de padeiro. E ele erguia à luz um pequeno pão branco. A luz era a mesma de meu quarto, um raio de sol fraco e louro: e o pequeno pão brilhava  como hóstia e o homem dizia: “É puro, é puro.”
      O jornal deu esse caso do padeiro de Brás de Pina que foi autuado por estar fabricando pão com farinha de trigo pura. Entende-se que a Prefeitura tem razão. Temos pouco trigo – precisamos misturá-lo. O padeiro será punido, mas que ele ouça esse canto matinal em seu favor.
     Glória a ti, padeiro de Brás de Pina, padeiro do pão puro.
     Entre o falso leite, a falsa arte, a falsa crítica de arte, o falso dinheiro do governo, a falsa palavra do político; entre a falsa mulher, a falsa meia de nylon, a falsa campanha e a falsa democracia – glória a ti.  Mergulhamos no frenesi das falsificações; nossos panos são de falsos tecidos, os sapatos de falso couro, as garrafas de falsa bebida, as palavras de falsa moral. Há orquestras tocando falsas músicas e oradores com voz embargada, pela falsa emoção; e o chefe da Polícia resolve punir falsos crimes. Os partidos fazem falsa coalizão ou se colocam em falsa oposição ou hipotecam falso apoio; e todos comem a falsa manteiga, bebem água de falsa pureza e tomam falsos banhos sem água. De tudo nos queixamos aos falsos amigos; e todos nos fazem falsas promessas, e nos oferecemos falsos banquetes; quando tudo piora, o povo nas ruas promove falsos distúrbios, quebrando falsos artigos de falsos comerciantes.
Tu, só tu, fazes o puro pão. Às escondidas, nesta cidade pecaminosa; contra as posturas municipais e contra os costumes; é aí, na penumbra de Brás de Pina, que formas a tua massa pura e a levas ao forno de verdadeiro fogo do ideal, ao fogo do teu coração. Glória a ti, verdadeiro padeiro, último preparador da branca hóstia da verdade eterna e terrena do pão dos homens: glória a ti.
Sim, glória ao padeiro que acredita no pão. Não acreditam na paz os homens que a fazem; até a guerra a fizeram sem acreditar. Glória a ti, padeiro que fazes pão.
PASSEIO À INFÂNCIA
Primeiro vamos lá embaixo no córrego; pegamos dois pequenos carás dourados. E como faz calor, veja, os lagostins saem da toca. Quer ir de batelão, na ilha, comer ingá? Ou vamos ficar bestando nessa areia onde o sol dourado atravessa a água rasa? Não catemos pedrinhas redondas para a atiradeira, porque é urgente subir no morro; os sanhaços estão bicando os cajus maduros. É janeiro, grande mês de janeiro!
Podemos cortar folhas de pita, ir para o outro lado do morro e descer escorregando no capim até a beira do açude. Com dois paus de pita, faremos uma balsa, e, como o carnaval é no mês que vem, vamos apanhar tabatinga para fazer fôrmas de máscaras. Ou então vamos jogar bola-preta: do outro lado do jardim tem pé de saboneteira. Se quiser, vamos. Converta-se, bela mulher estranha, numa simples menina de pernas magras e vamos passear nessa infância de uma terra longe. É verdade que jamais comeu angu de fundo de panela?
Bem pouca coisa eu sei: mas tudo que sei lhe ensino. Estaremos debaixo da goiabeira; eu cortarei uma forquilha com o canivete. Mas não consigo imaginá-la assim; talvez se na praia ainda houver pitangueiras... Havia pitangueiras na praia? Tenho uma idéia vaga de pitangueiras junto à praia. Iremos catar conchas cor-de-rosa e búzios crespos, ou armar o alçapão junto do brejo para pegar papa-capim. Quer? Agora devem ser três horas da tarde, as galinhas lá fora estão cacarejando de sono, você gosta de fruta-pão amassada com manteiga? Eu lhe dou aipim ainda quente com melado. Talvez você fosse como aquela menina rica, de fora, que achou horroroso o nosso pobre doce de abóbora e coco.
Mas eu a levarei para a beira do ribeirão, na sombra fria do bambual; ali pescarei piaus. Há rolinhas. Ou então ir descendo o rio numa canoa bem devagar e de repete dar um galope na correnteza, passando rente à pedras, como se a canoa fosse um cavalo solto. Ou nadar mar afora até não poder mais e depois virar e ficar olhando as nuvens brancas. Bem pouca coisa eu sei; os outros meninos riram de mim porque cortei uma iba de assa-peixe. Lembro-me que vi o ladrão morrer afogado com os soldados de canoa dando tiros, e havia uma mulher do outro lado do rio gritando.
Mas como eu poderia, mulher estranha, convertê-la em menina para subir comigo pela capoeira? Uma vez vi uma urutu junto de um tronco queimado; e me lembro de muitas meninas. Tinha que era para mim uma adoração. Ah, paixão de infância, paixão que não amarga. Assim eu queria gostar de você, mulher estranha que ora venho conhecer, homem maduro. Homem maduro, ido e vivido; mas quando a olhei, você estava distraída, meus olhos eram outra vez os encantados olhos daquele menino feio do segundo ano primário que quase não tinha coragem de olhar a menina um pouco mais alta da ponta direita do banco.
Adoração de infância. Ao menos você conhece um passarinho chamado saíra? É um passarinho miúdo: imagine uma saíra grande que de súbito aparecesse a um menino que só tivesse visto coleiros e curiós, ou pobres cambaxirras. Imagine um arco-íres visto na mais remota infância, sobre os morros e o rio. O menino da roça que pela primeira vez vê as algas do mar se balançando sob a onda clara, junto a pedra.
Ardente da mais pura paixão de beleza é a adoração de infância. Na minha adolescência você seria uma tortura. Quero levá-la para a meninice. Bem pouca coisa eu sei; uma vez na fazenda riram: ele não sabe nem passar um barbicacho! Mas o que eu sei lhe ensino; são pequenas coisas de mato e de água, são humildes coisas, e você é tão bela e estranha! Inutilmente tento convertê-la em menina de pernas magras, o joelho ralado, um pouco de lama seca do brejo no meio dos dedos dos pés.
Linda como a areia que a onda ondeou. Saíra grande! Na adolescência me torturaria; mas sou um homem maduro. Ainda assim às vezes é como um bando de sanhaços bicando cajus de meu cajueiro, um cardume de peixes dourados avançando, saltando ao sol, na piracema; um bambual com sombra fria, onde ouvi silvo de cobra e eu quisera tanto dormir. tanto dormir! preciso de um sossego na beira do rio, com remanso, com cigarras. Mas você é como se houvesse demasiadas cigarras cantando numa pobre tarde de homem.
EM CACHOEIRO
Chego à janela de minha casa e vejo que umas coisas mudaram. Ainda está ali a longa casa das Martins, a casa surpreendente de Dona Branquinha. Relembro os bigodes do coronel, e as moças que estavam sempre brigando porque nossa bola batia nas vidraças. Jogávamos descalços n rua de pedras irregulares e tínhamos os dedos e unhas dos pés escalavrados e fortes. Vista de fora, aquela casa podia parecer quente; mas ainda sinto na planta dos pés o frio bom de ladrilhos da ampla sala toda aberta para a sombra doce do pomar de romãs e carambolas; atrás do pomar o rio chorando. Ali está ainda a casa de meus tios onde antes moraram os Leões e os Medeiros. Agora até meu tio morreu, e no lugar do pé de cajá-manga há uma mangueira; e um renque de acácias espanholas, amarelas e vermelhas, corre sob as janelas do lado. Vão construir no terreno em frente, onde havia aquela interminável família de negros e depois os cachorros de caça do Nilo Nobre.
Estou cercado de lembranças - sombras, murmúrios, vozes da infância, preás, mandis e sanhaços; gosto de ingá na ilha do rio, fruta-pão assada com manteiga, fumegante no café da tarde, lagostins saindo das. locas e passeando na areia nas tardes quentes, piaus vermelhos, lua atrás : do Itabira, nomes que esquecera, aquela menina lourinha, filha de Seu Duarte, que morreu, enterro alegre de meu irmão, acho que Francisquinho, com nós todos esperando debaixo do caramanchão; e meu pai na cadeira de balanço, Zina guiando o Ford, bois passando para o matadouro, mulheres de lenço na cabeça descendo do Amarelo, vendendo ovos a um “florim" a dúzia; e escorregamos em folha de pita pelo morro abaixo até o açude... Mergulho nesse mundo misterioso e doce e passeio nele como um pequeno rei arbitrário que desconhece o tempo; ainda existe o colégio de Tia Gracinha, ainda existe o coqueiro junto da ponte do córrego; esfregamos nossos braços com urucu, e, para evitar frieira, temos sempre um barbante amarrado no tornozelo. São dezenas, centenas de lembranças graves e pueris que desfilam sem ordem, como se eu sonhasse. Entretanto uma parte desse mundo perdido ainda existe e de modo tão natural e sereno que parece eterno; agora mesmo chupei um caju de 25 anos atrás. É extraordinário que eu esteja aqui, nesta casa, nesta janela, e ao mesmo tempo é completamente natural e parece que toda minha vida fora daqui foi apenas uma excursão confusa e longa; moro aqui. Na verdade onde posso morar senão em minha casa?
Abre-se uma janela do Centro Operário. Será a aula de Dona Palmira em 1920 ou há reunião para discutir os estatutos? Durante toda a minha infância eles discutiram os estatutos. Eu não podia entender nada, mais havia pontos terrivelmente sérios. Era “Centro Operário de Proteção “. E de “Proteção Mútua"? Pela noite afora, após ano, um mulato meio velho e magro, de óculos, o dedo em a voz rascante, atacava com extraordinária ferocidade aquele E. Não conseguiu derrubá-lo; os operários talvez se sentissem fracos sozinhos, precisavam daquele e que os conjugava com outras camadas sociais. Ficou meu pai foi diretor, e quando morreu teve auxílio no enterro, tudo , ser operário, tudo graças àquele E. Sem o E eu talvez não tivesse dado ali, não me sentaria no comprido banco, onde o último da esquerda era o preto Bernardino e à direita o rosto lindo de Lélia, com seus cabelos doces e uma covinha quando sorria. Quando não estavam discutindo os estatutos, ou providenciando um enterro de sócio, com a bandeira do Centro em cima do caixão, os operários e todos que queriam proteção mútua estavam dançando; sons de pistom atravessam seu sono infantil: eu achava estranho e ao mesmo tempo alegre e feliz haver baile mesma sala onde eu tinha aulas.
Bem, tenho de sair. Mas no momento em que vou deixar a janela, vejo um homem que passa para baixo; é um velho com seu andar lento. É Chico Sapo. Inútil querer lembrar-lhe o nome. Talvez ele se zangue com esse; mas eu nunca soube de outro, e esse nome que a um estranho e parecer engraçado, a verdade é que ele tem para nós alguma coisa de nobre. Sim, é Chico Sapo, o ferreiro, pai de Manuel Sapo e também de Pio Sapo, que agora me contam que morreu. É o velho Chico Sapo, e nenhum rei da Inglaterra tem um nome mais nobre. Lá vai ele, no seu lento andar de sempre, mais velho e útil que o pé de fruta-pão, da idade talvez das águas do rio, e tão antigo e tão laborioso e tão Cachoeiro de Itapemirim como as águas do rio. Passa agora como passava na minha mais remota infância; trabalha através dos séculos, sério, calado e obscuro, velho Chico Sapo; e é sólido, respeitável e eterno.
Quando volto ao centro, e olho de baixo para a Câmara Municipal, Pio é um trabalhador do tempo de minha infância que vejo. Mas é também um trabalhador que está ali, de pé, junto àquela porta, de componedor na mão, com o mesmo assobio de 18 anos atrás. Lá está o Hélio amos diante de sua caixa de tipos. Eu estou longe daquele menino de i anos metido a fazer artigos, e meus amigos também envelhecem, João Madureira se lamenta da careca; sentimo-nos passar e estragar. Mas vemos em cima Hélio Ramos no seu posto. Sou informado de que agora e tem seis filhos e não apenas toca na banda como é maestro. Mas ali, de componedor na mão, é o mesmo Hélio Ramos, grave e eterno, acumulando uma estranha nobreza no melhor valor dessa palavra, nobreza igual de Lorde Chico Sapo e Sir Orlando Sapateiro, nobreza de Cachoeiro de Itapemirim.
In: BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. Record: Rio de Janeiro, 2001.