sábado, 14 de março de 2015

GERAÇÃO SEM AFETO


PAIS E FILHOS
Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá

Estátuas e cofres
E paredes pintadas
Ninguém sabe o que aconteceu
Ela se jogou da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender.

Dorme agora:
É só o vento lá fora.

Quero colo
Vou fugir de casa
Posso dormir aqui com vocês?
Estou com medo
Tive um pesadelo
Só vou voltar depois das três.
Meu filho vai ter nome de santo
Quero o nome mais bonito.

É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã
Porque se você parar pra pensar, na verdade não há.

Me diz por que é que o céu é azul
Me explica a grande fúria do mundo
São meus filhos que tomam conta de mim
Eu moro com a minha mãe,
Mas meu pai vem me visitar
Eu moro na rua, não tenho ninguém
Eu moro em qualquer lugar
Já morei em tanta casa
Que nem me lembro mais
Eu moro com os meus pais.

É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã
Porque se você parar pra pensar, na verdade não há.

Sou uma gota d'água
Sou um grão de areia
Você diz que seus pais naõ entendem,
Mas você não entende seus pais.

Você culpa seus pais por tudo
E isso é absurdo
São crianças como você.
O que você vai ser
Quando você crescer?

Fontes: CD "As quatro estações", Legião Urbana, 8358362, EMI, 1989.
CD "Meu segredo mais sincero", Leila Pinheiro, BF-332, Biscoito Fino, 2010.


GERAÇÃO SEM AFETO
Por Fábio Brito
Houve uma época em que os romances Pollyanna e Pollyana moça, de Eleanor Hodgman Porter, fizeram muito sucesso aqui no Brasil. Foram, em verdade, uma febre! Lembro que, na década de setenta, por exemplo, muitos professores, encantados com história da menina órfã cujo mundo é sempre cor de rosa, porque aprendera o “jogo do contente”, adotaram-nos como leitura obrigatória nas escolas. Eu mesmo li os dois e deles fiz prova. Não estou, obviamente, condenando esses professores. A época era outra, havia outros direcionamentos. Talvez esses professores tenham querido que, durante a vida, nunca ficássemos tristes, que fôssemos “Pollyannas” para sempre, a despeito de quaisquer tristezas ou aborrecimentos. Não deu! As tristezas vieram e os aborrecimentos também. Não houve “jogo do contente”, que consiste em encontrar alegria até mesmo em momentos de sofrimento, que desse jeito, que pudesse detê-los. O jeito foi enfrentá-los e com muita coragem.  
 É muito bom que os tempos tenham mudado. Nós, professores (não todos!), procuramos acompanhar as mudanças. Assim, criamos outros jogos com regras bem diferentes das do “jogo do contente”. Todavia, muitos pais, diante de situações difíceis, em especial as que envolvem os filhos, continuam recorrendo ao tal “jogo do contente”. Em situações complicadas, correm para o sótão e, lá, ficam felizes ouvindo o canto dos pássaros. Não enfrentam certos problemas, principalmente quando os filhos têm entre quinze e vinte e cinco anos. “Eta” fase difícil! Mais difícil ainda quando os pais não querem enxergar nada.
 Quem, hoje, está nessa faixa etária pertence a uma geração catalogada por mim de “sem afeto” (há exceções, claro!). Espanto, caro leitor? Relaxe e verá que, bem perto de você, há exemplares dessa espécie. Ainda espantado? Relaxe mais um pouco: são exemplares que você criou, que você educou, que você sustenta. Assustado? Pois é, eu também. Confesso que, em pleno século XXI, eu esperava encontrar uma juventude mais afetuosa. No fundo mesmo, eu esperava, mas fui um iludido, constato hoje. Como ter mais afeto num mundo em que imperam o egoísmo e o narcisismo? Impossível!
Essa geração que está aí só pensa em três “coisinhas” nesta vida: sexo, balada e novas tecnologias. São feras nas três! O sexo, como se pode ver, é só pelo prazer da ‘transa’. Atenção! Não o prazer do outro, mas o próprio prazer, o bem mais importante, juntamente com as baladas e as novas tecnologias, repito. Dificilmente há namoro. Esses jovens simplesmente “estão”. Engraçado, não é? “Estão”. Legal esse negócio de “estar”, de “ficar”. Ah, nem é preciso dizer que se trata de um sexo totalmente sem compromisso e, não raro, irresponsável, apesar de tanta publicidade que tenta conscientizar a meninada. Não faltam avós criando netos por aí. No entanto, diferentemente dos avós de outrora, os de hoje também têm de arcar com tudo para os netos. Quando têm condições financeiras, até contratam babás; quando não, transformam-se nas próprias (babás). Assumem a responsabilidade que deveria ser dos pais das crianças. Pais que eles, os avós, criaram. Ai, meu Deus, que rolo! Mesmo quando chega a aposentadoria, esses avós têm, lógico!, de continuar trabalhando... não só para o sustento dos filhos, mas também dos filhos dos filhos. Ih, mais confusão! Saia dessa quem puder!
Engraçado que essa geração é sem afeto, mas totalmente dependente, em termos financeiros, dos pais. Infantil e insegura, não vai à vida, não vai à luta. Conheço pessoas – e não são poucas – já aposentadas há um tempo, mas que continuam trabalhando. Nem tentam disfarçar. Quando pergunto – e já perguntei a muitas – sobre o porquê de continuarem trabalhando se sabemos que há tempo para tudo nesta vida, a resposta, não raro, é uma pérola: eles ainda têm filhos na faculdade. Enquanto as “crianças” não concluírem os estudos, não podem parar de trabalhar. Será que vão parar quando os filhos concluírem os tais estudos? Aí é que vem uma “disfarçadinha”: dizem que continuam a trabalhar não só porque os filhos ainda precisam, mas porque também gostam do trabalho que desempenham, gostam da profissão, blá-blá-blá-blá-blá-blá. Dizem ainda que o trabalho faz bem, enobrece, impede que eles morram “antes da hora”. Todavia, a fisionomia é de um eterno cansaço. “Tá” bom, finjo que compreendo. Façamos, pois, o “jogo do contente”. Enfrentem!  Vamos lá? Assumam que seus filhos foram mimados (e muito!) por vocês. Assumam que vocês os “estragaram”, que não souberam criá-los. Triste, mas real. Está parecendo filosofia de banca de jornal, não está? Pois que seja!
Engraçado que, quando decidi cursar minha primeira faculdade, banquei meus estudos. A “geração sem afeto” não pode bancar seus estudos, suas roupas, suas baladas, suas futilidades, seus filhos? A “geração sem afeto” não pode trabalhar e estudar? Claro que não! Depois, os pais desses “sem afeto” ainda vão querer cobrar gratidão. Esqueçam! Na cabeça dos “sem afeto”, vocês, pais, não fizeram mais do que obrigação. Apenas cumpriram uma tarefa sem muita importância e para a qual foram designados sabe-se Deus por quem.
Querem um exemplo concreto do que chamo de “geração sem afeto”? Conheci um senhor que, com uma doença grave, ficou num hospital durante, aproximadamente, seis meses. Certo dia, numa de minhas visitas, perguntei à esposa pelos filhos. Fui direto ao assunto: quis saber se eles iam visitá-lo. Os dois mais velhos, que tinham dezoito e vinte anos, os da tribo “sem afeto”, não; os mais novos, com onze e treze anos, amáveis e carinhosos, iam sempre e sofriam muito com toda a situação. Foi exatamente nesse dia, quando perguntei à mãe pela visita dos filhos àquele pai que os amava tanto, que usei a expressão “geração sem afeto”, com a qual a mãe concordou plenamente.
Lembre aí, amigo leitor, cinco nomes dessa “geração sem afeto” que se preocupam com os pais. Não lembrou? Tudo bem. Eu não esperava que lembrasse. É estarrecedor, não é? Não vai lembrar, ainda que você tenha “todas as tardes da eternidade” pela frente. Sabe por quê? Porque simplesmente essa tal “geração sem afeto” não sabe o que é carinho (“amor”, então, é palavra banida de seu dicionário), principalmente em se tratando dos pais. Volto a frisar: há exceções. Raríssimas, mas há! Pai e mãe são, para esses meninos, umas malas que os trouxeram ao mundo. Nada mais. Depois, com o passar dos anos, as malas vão envelhecendo e perdem suas alças. Viram, inevitavelmente, “malas sem alças”. Muitas, além de perderem as alças, ficam rotas e desbotadas. Agora, o jeito é empurrá-las, mas não se trata de simplesmente empurrá-las. É imprescindível que elas sejam, sim, empurradas porta afora, vida afora, mas com requintes de crueldade: com os pés. Há "lares" e mais "lares de idosos" por aí à espera dessas "malas". Saia dessa quem puder. Saio não! Filhos: melhor não os ter tido? Não sei...

POEMA ENJOADINHO
Vinicius de Moraes

Filhos...  Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos?  Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!

MORAES, Vinicius de. Poesia completa e prosa.

                ANTES QUE ELAS CRESÇAM
Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos. É que as crianças crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.
Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente. Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade, que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.
Onde e como andou crescendo aquela danadinha, que você não percebia? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal ou escola experimental?
Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali na porta da discoteca esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins, cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno cio, lindas potrancas.
Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros ou, então, com a suéter amarrada na cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas não tem jeito, é o emblema da geração.
Pois ali estamos, depois do primeiro e do segundo casamento, com essa barba de jovem executivo ou intelectual em ascensão, as mães, às vezes, já com a primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos gerar e amar apesar dos golpes dos ventos, das colheitas das notícias e da ditadura das horas. E elas crescem, meio amestradas, vendo como redigimos nossas teses e nos doutoramos nos nossos erros.
Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.
Longe já vai o momento em que o primeiro mênstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das discotecas e festas, quando surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do balé, da cultura francesa e inglesa. Saíram do banco de trás e passaram para o volante das próprias vidas. Só nos resta dizer “bonne route, bonne route” como naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha oferece o primeiro jantar no apartamento dela.
Deveríamos ter ido mais vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir  sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, pôsteres e agendas coloridas de pilot. Não, não as levamos suficientemente ao maldito “drive-in”, ao Tablado para ver “Pluft”, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.
Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo o nosso afeto.
No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, disputa pela janela, pedidos de sorvetes e sanduíches infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de campo com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível largar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse exílio dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos. Agora é hora de os pais nas montanhas terem a solidão que queriam, mas, de repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes.
O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.
Por isto, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Fizemos bem em resistir: crônicas selecionadas.

“(...) Estou em pânico permanente desde que descobri: não gerei filhos, mas seres humanos como todo mundo. Gerar seres humanos é monstruoso porque o ser humano se parece em tudo com você, mas não te obedece e tem um pensamento diferente do seu. Só quem pode com ele é Deus, cujo amor por nós é incompreensível e vertiginoso (...)”
PRADO, Adélia. Os componentes da banda.

A ARTE PARA AS CRIANÇAS
Ela estava sentada numa cadeira alta, na frente de um prato de sopa que chegava à altura de seus olhos. Tinha o nariz enrugado e os dentes apertados e os braços cruzados. A mãe pediu ajuda:
– Conta uma história para ela, Onélio - pediu. – Conta, você que é escritor...
E Onélio Jorge Cardoso, esgrimindo a colher de sopa, fez seu conto:
– Era uma vez um passarinho que não queria comer a comidinha. O passarinho tinha o biquinho fechadinho, fechadinho, e a mamãezinha dizia: “Você vai ficar anãozinho, passarinho, se não comer a comidinha”. Mas o passarinho não ouvia a mãezinha e não abria o biquinho...
E então a menina interrompeu:
– Que passarinho de merdinha – opinou.
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços.


"(... ) A busca de uma vida mais humana deve começar pela educação. Por isso é tão grave as crianças passarem horas idiotizadas em frente à televisão, assimilando todo tipo de violência, ou se dedicando a esses jogos que premiam a destruição. A criança pode aprender a valorizar o que é bom, e não cair no que é induzido pelo ambiente e pelos meios de comunicação. (...)
 
Ernesto Sabato, "A resistência"