sábado, 11 de abril de 2015

IMPÁVIDA, INTRÉPIDA E GENIAL ELIS NA VISÃO DE MARIA



ATRÁS DA PORTA
Chico Buarque

Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito (Nos teus pelos)*
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho

Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
e me entregar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua...

* Verso original, vetado pela censura, entre parênteses.
  

IMPÁVIDA, INTRÉPIDA E GENIAL ELIS NA VISÃO DE MARIA
Por Fábio Brito

Com requintes de literariedade. Foi assim que Julio Maria, jornalista de O Estado de S. Paulo, conseguiu escrever a melhor biografia – ao lado de Um homem chamado Maria, de Joaquim Ferreira dos Santos – que já li nos últimos 10 anos: Elis Regina: nada será como antes, publicada pela Master Books e lançada dia 17 de março de 2015, dia em que Elis completaria 70 anos de vida. Ou melhor, dia em que ela completou 70 anos de vida e de uma vida muito intensa! Desconheço outro artista tão vivo quanto ela.
Para conhecer outros ângulos da trajetória de uma das melhores cantoras/intérpretes do mundo e de todos os tempos, roubei, nos últimos dias, boas horas de sono. Valeu a pena! Sempre vale a pena se a causa é nobre e a alma não é medíocre, não é mesmo? O que são algumas míseras horas de sono diante de um livro que nos prende, que nos paralisa e que nos deixa de olhos bem arregalados? Nada! Recupera-se o sono mais tarde.
Pois bem, logo de saída, somos surpreendidos com o fato de Maria começar pela despedida, ou seja, pelo fim. “Nada será como antes” é também o título de uma ‘introdução’ à obra, que narra – com alguns detalhes que, até então, desconhecíamos - os momentos finais de Elis. E é exatamente aí que nos vem à mente uma constatação aterradora: se ela tivesse sido socorrida um pouco antes, tudo não teria passado de um susto. Um grande susto, mas um susto. A própria médica que a atendeu no pronto-socorro sentiu que faltou pouco para trazer Elis de volta. Como dói ler isso...
Se a biografia traz uma Elis em variadas leituras, é porque o faz mostrando, além da cantora/intérprete excepcional que ela continua sendo, um ser humano que, como todos nós, tem lá suas certezas, suas dúvidas, suas inseguranças e suas muitas contradições. Elis sabia exatamente qual era o seu tamanho: nem mais... nem menos. Por causa disso, teve de encarar, é óbvio, muitos embates. Teve de brigar muito, esbravejar bastante e dizer a todo o mundo quem era ela. Num mundo em que impera o jogo “polianesco” do contente, não é fácil ser autêntico.
Por causa de sua impetuosidade, enfrentou encrencas das quais nem sempre conseguiu sair ilesa, como o episódio em que Maria narra sua participação nas Olimpíadas do Exército. Na imprensa internacional, resolveu chamar os militares que governavam o país de “gorilas”. Encrenca na certa! De volta ao Brasil, não só teve de dar explicações – e bem longas! - acerca do que havia declarado, como também precisou prestar alguns “serviços” para “limpar sua barra” com o povo da farda. Um desses “serviços’ foi cantar nas tais “Olimpíadas do Exército”. E lá vem pedrada! Depois de cantar, além do desdém de velhos companheiros e de muitos olhares enviesados, teve de suportar o “enterro” em cova funda no cemitério dos mortos-vivos de “O Pasquim”: Henfil não a deixaria escapar. Mais tarde, porém, com “O bêbado e a equilibrista”, elevada a hino da anistia e que Elis cantou como ninguém, a baixinha, de certa forma, pedia desculpas com roupa de gala. Quando Betinho, o tal do “irmão do Henfil” de que nos fala a letra, chegou do exílio, foi recepcionado, ainda no aeroporto, pela voz da Elis: alguém levara um gravador com a fita da canção. Comoção geral.
Há muitos outros episódios na biografia que mostram uma Elis brigona e vencendo as quedas de braço que tinha de enfrentar, independentemente do adversário. Fizesse a cara feia que quisesse fazer o tal adversário, ela o enfrentava sem pensar no que viria depois. Ainda em início de carreira, levando consigo os músicos do conjunto Copa Trio, surrupiados do Beco das Garrafas, Elis aceitou um convite para cantar no “1º Denti-Samba”, apresentação agenciada pela Faculdade de Odontologia da USP. Até aí tudo bem. Ao chegarem a São Paulo, os recepcionistas do hotel em que ficariam hospedados disseram que “não havia vagas” para Dom Um Romão e Dom Salvador, negros que integravam o grupo. Depois de palavrões e ameaças, como bem conta Maria, os quartos, como num passe de mágica, apareceram. Os recepcionistas, imediatamente, “deram um jeito” para o problema da ausência de vagas. O pó de pirlimpimpim de D. Elis Regina funcionou direitinho. Os dois excelentes músicos voaram tranquilos para seus quartos. Diante de uma injustiça, a baixinha virava um gigante. E põe gigante nisso!
A “Pimentinha” sabia arder e brigar não só contra injustiças cometidas com outras pessoas. Sabia, e como!, brigar também por seu reconhecimento. Assim, não aceitou, por exemplo, na 10ª edição do Fico (Festival Interno do Colégio Objetivo) abrir o ‘show’ de Ney Matogrosso. Ela sabia, como disse Maria, que ter atitude é também um dos caminhos para que conquistemos nosso valor. Como pouquíssimas pessoas no meio artístico, não tinha medo das gravadoras, das quais ela mesma censurava o “esquema feudal”, e de seus poderosos chefões. Porque sabia de sua importância e de seu peso, dava “de ombros” a ameaças, chantagens e outras “cositas mais”. “Era uma mercadoria” cara, dizia. Não tinha dúvidas quanto a seu valor e, portanto, protestava contra o que ela chamava de “grande equívoco da indústria” fonográfica, que acabava valorizando mais o disco do que o artista.  Quando, certa vez, teve de gravar um clipe para um programa de TV, conta-nos Maria, um dos produtores quis saber, noutras palavras, se ela ‘apenas’ cantaria. A resposta, como já era de ‘se’ esperar, veio na lata: ela ia cantar como só ela sabia fazer. 
E o preço da mercadoria em questão estava associado, claro, às incontáveis qualidades do produto, sempre reconhecidas pelo público e, principalmente, pelos colegas de ofício, fossem cantores/intérpretes ou músicos. Elis era – e continua sendo - uma unanimidade e uma referência. Em várias passagens da biografia, fica bem claro esse reconhecimento. Em Montreux, por exemplo, no festival de jazz, quando, improvisadamente, teve de cantar algumas canções com o “bruxo” Hermeto Pascoal, Elis provou, mais uma vez, que era, além da cantora/intérprete de exceção, um inquestionável músico. O próprio Hermeto, rebatendo algumas maledicências que insistiam na tecla de que ele teria querido derrubar Elis naquela noite memorável de 1979, disse, com outras palavras, que só ‘se’ jogou sem rede de proteção porque quem o acompanhava era Elis Regina. Ou seja, era ninguém menos do que Elis Regina. Fosse outra a acompanhá-lo, a derrocada seria certa.     
Outro episódio que atesta a genialidade de Elis e que também é narrado por Maria diz respeito ao programa O Fino da Bossa. Chiquinho de Moraes, um dos maestros do programa, sabia que tinha a seu lado, como diz o texto, uma “cantora com poderes sobrenaturais”, tanto que não precisavam passar as músicas duas vezes. Se não houvesse tempo, dispensavam os ensaios. Em certos arranjos, só para conferir a genialidade de Elis, Moraes passou a lançar mão de “pegadinhas”. Em certas introduções - “arriscadas”, como relata o biógrafo - que não davam pistas sobre o início das canções, a baixinha não tropeçava: entrava no momento exato. Inteligência e intuição amalgamadas. Diversas vezes, Edu Lobo declarou que Elis tinha “cabeça de músico”.  Tinha o tal “senso harmônico de instrumentista”, a tal “percepção harmônica instintiva”. Dependendo da canção, ela sabia, assim como os músicos, que acordes deveriam ser usados. Eis uma atitude rara para a época. E o que dizer, então, dos cantores de hoje? Que a maioria não sabe cantar? Nada de novo! Os autotunes da vida seguram a onda. Às vezes, eles são até autoeróticos.
Mais uma de gênio: quando foi gravar o Elis in London, disco gravado em 1969 e lançado no Brasil bem depois, em 1982, Elis não repetiu nada. Não gravaram bases para que ela, depois, ‘colocasse’ a voz. Ou seja, gravou “ao mesmo tempo em que se gravava a banda toda”, como atesta Menescal na contracapa da edição brasileira do LP (e no encarte do CD). Foi um milagre só possível, voltando a Menescal, “por ter sido Elis Regina”. Finda a gravação, ou, como diz Maria, “quando a última nota silenciou”, todos os músicos aplaudiram Elis, a cantora que eles, até então, não conheciam.
Não só de relatos que comprovam a genialidade de Elis Regina vive a biografia de Julio Maria. Há momentos engraçadíssimos, tristes, comoventes, ligados ao pessoal ou ao profissional. Só não há nada que seja banal e que não seja notado por qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade. Seja quem for o leitor, não há como ficar indiferente à escrita soberana de Maria. Assim, posso confessar que li (e releio) a obra com choro, emoção e boas gargalhadas. Os relatos que envolvem os filhos, por exemplo, são extremamente tocantes, sensíveis ao extremo. Uma carta de amor para o filho João Marcello, o mais velho, escrita um ano depois de seu nascimento e que só poderia ser aberta quando ele completasse 18 anos, é carregada de uma ternura e de uma profundidade incríveis. Lendo-a, foi impossível não chorar. De repente, veio aquele nó que antecede o choro. Como não chorar? Antes da carta, o menino havia ficado internado, tendo sido salvo, segundo o “diagnóstico” do médico, pelo amor da mãe, que havia “conversado” muito com ele na noite anterior ao início de sua recuperação. “Sua voz salvou o seu filho”, disse a Elis o médico, como conta Maria.
Ao falar sobre o que ela queria para a Maria Rita, que, hoje, é uma das mais respeitadas cantoras da MPB, Elis também ‘nos’ comove. O que Maria narra, entre outros episódios, é o depoimento que Elis concedeu ao programa Mulher 80, produzido na esteira do seriado Malu Mulher e apresentado pela atriz Regina Duarte. O programa reuniu diversas cantoras em evidência naquele fim da década de 70 e início da de 80, como Bethânia, Gal e Rita Lee, por exemplo. Para sua filha, que veio depois de dois meninos, Elis desejava que ela não “ficasse pesada nunca”. Disse, antes, que não choraria durante o depoimento, mas chorou... e choramos com ela. O outro filho, o do meio, Pedro, adorava ouvir a “música do pirapora”. Trata-se de Romaria, de Renato Teixeira, um dos grandes sucessos de Elis. Ao fim da narrativa, Maria volta a falar dos filhos de Elis e dos enfrentamentos após a partida da mãe.  
Entre os momentos engraçados, há dois, em especial, que são ótimos. Um é quando Elis e Ronaldo Bôscoli, seu primeiro marido, recebem jornalistas para uma entrevista, depois da qual haveria um almoço. Durante o bate-papo, tudo bem. Porque os ânimos ainda estavam tranquilos, os dois não deixaram de responder a quaisquer perguntas, foram gentilíssimos e comportaram-se bem. Quando o almoço teve início, o ‘pau quebrou’. Ou seja, armaram um ‘barraco’ e tanto. A troca de insultos, conforme Maria relata em detalhes, fez os jornalistas olharem para o prato e invejarem “a existência dos feijões”. É o tal negócio: se alguém chegasse quente, era certo que Elis já estaria fervendo, quase evaporando.  O outro relato mostra mais um ‘quebra pau’: depois de uma das muitas brigas, Ronaldo disse que se casaria com outra pessoa. Não só: pediria à nova mulher para buscar “suas coisas”. Ao chegar, a moça, antes de sair do carro, só teve tempo de ouvir o barulho do arremesso de uma das malas de Bôscoli – recheada com todos os discos do Sinatra - no capô do carro. A baixinha não deixava “pedra sobre pedra”, como dizem. Antes de alguém levantar a voz, ela dava seu grito. Acho que o pavio curto da Elis resgata o significado primeiro de “daemon” (demônio): a força, a energia de cada um, que atormentava, sim, outras pessoas, mas somente as que não tinham essa força. Ou seja, as invejosas. Assim, não suportavam quem a tinha. “Elis não era para os fracos”, como pensava Menescal, conforme relato de Maria. Difícil imaginar que Elis, tendo feito tudo o que fez, viveu somente 37 anos incompletos. A vontade de viver muito e com urgência talvez decorresse de alguma “certeza” (ela era espírita) de que sua estada aqui não seria longa. Posso dizer, parafraseando Álvaro de Campos (heterônimo de Pessoa), que, para ‘se’ sentir, Elis multiplicou-se. Transbordou, extravasou-se, despiu-se, entregou-se e, em cada canto de sua alma, ergueu um altar a um deus diferente.
Além de todas as qualidades dessa biografia excelente, é interessante notar que fatos ou acontecimentos já narrados noutras obras ressurgem, aqui, como se fossem novos, tamanho é o frescor da narrativa. Comparando algumas obras, pude constatar relatos repetidos, que não apresentavam nem ao menos uma “vírgula” de diferente. Cheiravam a prato “requentado”, claro. Com “Elis Regina: nada será como antes”, não. Tudo é novo, mesmo o que não é. Tudo é cuidadosamente pensando antes de ser escrito. As metáforas, ricas, poéticas e originais, levam-nos a confidenciar aos amigos: leiam urgentemente. Bebam num gole só. É literatura, sim, e da mais alta qualidade.  
Nos capítulos finais, eu me comportei mais ou menos como a narradora de Felicidade clandestina, um dos mais belos contos da Clarice: só para não me despedir do livro, passei a lê-lo com bastante calma, quase parando e saboreando palavra por palavra. Seria uma sacanagem cortar o prazer da leitura tão cedo! Só não entrei na brincadeira de fingir que o perdia só para, depois, ter a sensação de encontrá-lo novamente. O que sei é que fui, durante uns dias, um menino com seu amante.  
Julio Maria, devo confessar que sua arma é o que a memória guarda dos tempos de Elis Regina. A sensação que temos, ao ler sua obra sensacional, irretocável, é que você viveu tudo aquilo. Testemunhou mesmo, tamanha é a verdade de sua narrativa, verdade essa que também está no canto único e atemporal de Elis Regina. Cá entre nós, Maria: quando Elis se foi, você não tinha somente 9 anos de idade, tinha? Confesse aí! 
UPA, NEGUINHO
Edu Lobo / Gianfrancesco Guarnieri

Upa, neguinho na estrada
Upa, pra lá e pra cá
Vixe, que coisa mais linda
Upa, neguinho começando a andar
Começando a andar, começando a andar
E já começa a apanhar

Cresce, neguinho, me abraça
Cresce, me ensina a cantar
Eu vim de tanta desgraça
Mas muito eu te posso ensinar
Mas muito eu te posso ensinar

Capoeira posso ensinar
Ziquizira posso tirar
Valentia posso emprestar
Liberdade só posso esperar


CARTA AO MAR
Roberto Menescal / Ronaldo Bôscoli

Me multiplicando em sol
Tento uma canção pra você
Trago flores, girassóis
Não me importa mal me querer

O que vai de mim
Vem de um desejo imenso de ser outra vez
Um barco, um azul
Outra vez, de tarde, morrer

Céu sem naves espaciais
Flores, só naturais
Só nos dois e as coisas banais
Mais não, pra quê?

Pra que o mundo
Segue o mundo
Sem o mar
Sem amar

De que vale o som sideral
Ou uma rima mais genial
Se o amor está aqui, neste sal
Nesse encontro franco e frontal

Nesse barco longe do mundo
Toda a nossa vida e um segundo
Pra dizer ao mar que voltei
Que sou do mar, sou do mar, do mar  

DE ONDE VENS
Dori Caymmi / Nelson Motta

Ah, quanta dor vejo em teus olhos
Tanto pranto em teu sorriso
Tão vazias as tuas mãos
De onde vens assim cansado
De que dor, de qual distância
De que terras, de que mar

Só quem partiu pode voltar
E eu voltei pra te contar
Dos caminhos onde andei
Fiz do riso amargo pranto
No olhar sempre os teus olhos
No peito aberto uma canção

Se eu pudesse de repente
Te mostrar meu coração
Saberias num momento
Quanta dor há dentro dele
Dor de amor quando não passa
É porque o amor valeu  


BOA PALAVRA
Caetano Veloso

Aprendeu sozinho
Na areia, no chão
A brincar sozinho
Sem a mão de um irmão

Aprendeu com o vento
Que o sono passou
E acordou sozinho
No sol, sem amor

Tava dormindo, acordei
Para acertar o namoro
Me deram o que de beber
Numa caneca de ouro

Não lhe deram nada
Não é seu este chão
Deita, olhando o céu
Que o céu não tem dono, não

Como um passarinho
Aprende a voar
Solta o pensamento
Num braço de mar

Voou pra beira do rio
Pousou no poço dourado
Moça com seu namorado
Rico com seu empregado

Aprendeu sozinho
Deitado no chão
A esperar sozinho
Tempo de encontrar irmão

Inda a madrugada
Espera nascer
Não lhe deram nada
Mas não quer morrer

Boa palavra, rapaz
Boa palavra, rapaz
Boa palavra, rapaz
É assim que um homem faz

CAÇA À RAPOSA
João Bosco / Aldir Blanc

O olhar dos cães, a mão nas rédeas e o verde da floresta
Dentes brancos, cães, a trompa ao longe, o riso
Os cães, a mão na testa
O olhar procura, antecipa
A dor no coração vermelho
Senhorita e seus anéis
Corcéis e a dor no coração vermelho
O rebenque estala, um leque aponta
Foi por lá...

Um olhar de cão, as mãos são pernas
E o verde da floresta
Oh, manhã entre manhãs
A trompa em cima, os cães, nenhuma fresta
O olhar se fecha, uma lembrança afaga o
Coração vermelho
Uma cabeleira sobre o feno afoga o coração vermelho
Montarias freiam, dentes brancos
Terminou...

Línguas rubras dos amantes
Sonhos sempre incandescentes
Recomeçam desde instantes
Que os julgamos mais ausentes
Ah! Recomeçar como as colheitas
Como a lua e a covardia
Ah! Recomeçar como a paixão e o fogo
E o fogo, e o fogo...





“(...) desde 1966 as pessoas que fazem música, que interpretam música, que executam música, são sempre as mesmas. É o circo do elefantinho que está armado. E em processo de antropofagia. Alas se entredevorando, numa flagrante e evidente e palpável luta pelo poder. Só.”

“Quando descobrirem que estou verde, já estarei amarela. Eu sou do contra. Não vão me dirigir nunca.”

Fonte: Folha de S.Paulo/Folhetim, junho, 1979


“Eu estava enganada a respeito de algumas coisas, como participação de tevê e rádio, até resistindo a uma série de pressões. Como se a gente acreditasse, com isso, poder mudar o mundo, quando, na verdade, a gente não vai mudar porcaria nenhuma, muito menos se a gente não estiver dentro do mundo. Sendo um ermitão, por exemplo, é muito mais difícil poder fazer alguma coisa do que estando enfiado ali no inferno. E uma vez no inferno, é muito melhor estar no centro do inferno.”

Fonte: revista Música, 1979

quarta-feira, 1 de abril de 2015

HÁ FRALDAS, MAS SÃO GERIÁTRICAS


ONDE ESTÁ A HONESTIDADE?
Noel Rosa / Francisco Alves

Você tem palacete reluzente
Tem joias e criados à vontade
Sem ter nenhuma herança nem parente,
Só anda de automóvel na cidade...

E o povo já pergunta com maldade:
“Onde está a honestidade?
Onde está a honestidade?”

O seu dinheiro nasce de repente,
E embora não se saiba se é verdade,
Você acha nas ruas diariamente
Anéis, dinheiro e até felicidade...

Vassoura de salões da sociedade
Que varre o que encontrar em sua frente,
Promove festivais de caridade
Em nome de qualquer defunto ausente...

 HÁ FRALDAS, MAS SÃO GERIÁTRICAS
Por Fábio Brito
Opa! Disseram (?), dias atrás, que "certo tipo de corrupção", aqui no Brasil, é um bebê. Antes, porém, a presidenta Dilma Rousseff havia declarado que a corrupção, em nosso país, é uma “velha senhora”. A mim, não importa o tipo. O fato é que a corrupção é, sim, uma senhora bem velhinha. 
É sabido que muitos idosos atingidos por doenças como “Alzheimer” ou “aterosclerose”, por exemplo, voltam a ser bebês e, não raro, têm de usar fraldas novamente. Eu mesmo convivi com idosos nessa situação, o que é uma experiência aterradora e pela qual não quero passar novamente.
Talvez tenha origem exatamente aí o que declararam acerca da “pouca idade” de determinado tipo de corrupção, que deve, sim, ser um bebê, mas não um recém-nascido. Trata-se de uma senhora com mais de quinhentos anos, que, em decorrência de muitas doenças degenerativas, voltou às fraldas, aos tais fraldões geriátricos. Voltou a ser um “bebê idoso”. Se, independentemente do tipo, a corrupção, aqui no Brasil, for um bebê, alguém esqueceu que a história, como bem disse Pablo Milanés, “é um carro alegre que atropela indiferente todo aquele que a nega”¹. Não me refiro à história oficial, pintada com as cores mais alegres, mas à história real, que nos mostra, sem véus, as trapaças, as vilanias e as patifarias por que passamos desde que fomos “achados”.
Em minhas “viagens” como professor de literatura, tive – e tenho – de passar, necessariamente, pela história. Algumas vezes, deparei, por exemplo, com Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama, Bartolomeu Dias, a histórica viagem à Índia e o Descobrimento (ou “achamento”) do Brasil. A Vasco da Gama, por exemplo, atribuiu-se a tal “volta ao mar”, relatada por Eduardo Bueno em “A Viagem do Descobrimento: a verdadeira história da expedição de Cabral”?² Como negar essa tal “volta ao mar”, se um detalhe interessante, e muito pouco divulgado do tal “Descobrimento do Brasil”, mora aí? Diz-se que, seguindo indicações de Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, passando pelas ilhas do Cabo Verde, decidiu seguir para sudoeste, configurando-se, assim, a tal manobra, a “volta ao mar”. Gama teria dado instruções ao futuro “descobridor” do Brasil, o que confirma a tese dos que defendem a intencionalidade da descoberta desta “Terra de Santa Cruz”. A mim, por exemplo, foi passada, ainda nos tempos do ensino fundamental, a clássica história do acaso quanto à “descoberta” do Brasil. Contaram-me que ninguém sabia da existência destas terras, daí o espanto quando viram terra tão linda. No entanto, a história “não oficial” seguiu outro caminho. Tudo perfeito até aí, não é mesmo?
Pois bem, quando o colonizar português aqui chegou, os primeiros textos, que deram origem à formação da literatura brasileira, eram, sob forma de relatos descritivos ou de crônicas, bastante informativos. Eram relatos de bordo de navegantes, textos de divulgação geográfica e etnográfica, crônicas históricas, textos de informação religiosa. Tais textos relatam, com riqueza de detalhes, as belezas da terra que acabava de ser “descoberta” (ou “achada”). Assim, com tais textos, facilitavam a exploração colonialista ou a dominação religiosa, que também não deixava de ser decorrente de razões políticas. Trata-se de material bem descritivo cuja intenção era a “venda” do paraíso recém-descoberto (ou “recém-achado”). É o olhar de fora, do colonizador, sobre o paraíso de que ele, o dominador, acabava de ter a posse. É uma literatura “sobre” o Brasil, não “do” Brasil. Tudo perfeito até aí, não é mesmo?
No quesito “índios”, o que a história registra? Ou melhor, o que as histórias, a oficial e não oficial, registram? Sem “jogo do contente”: quando aqui chegou, o que fez o colonizador? Deu-lhes espelhos e outras quinquilharias e, em troca, tomou suas terras, como dizem. Necessidades práticas, utilitaristas, econômicas exigiam que o índio, visto como animal bárbaro e primitivo, fosse escravizado. Até mesmo os jesuítas, que os ‘defenderam’ da escravidão, não deixaram de ver seus hábitos e costumes como algo pernicioso. Vamos atualizar a questão? Como estão, hoje, os índios? Há índios?! Tudo perfeito até aí, não é mesmo?
Para muitos, parece que tudo só começou a ficar imperfeito de uns meses para cá. Antes, porém, desde que fomos descobertos (ou “achados), tudo correu muito bem, em perfeita harmonia, sem roubos ou quaisquer desvios... de dinheiro ou de caráter. Hoje, o que mais se ouve é gente bradando contra a corrupção na Petrobras e noutras instituições. E corrupção é sinal de que há, sim, imperfeições e aberrações. E deve-se bradar, vociferar. Deve-se protestar com todas as forças! Ótimos tempos estes em que se tem liberdade, em que se pode gritar e dizer que não é aceitável qualquer sacanagem ser encarada como algo comum. E tem de haver, sim, punição. Para tanto, juntem as provas e condenem. Se está havendo supuração, é ótimo! Depois, vem a cura. Enquanto há pus, a inflamação persiste. Espremam todo o pus. Força! Coragem! É libertador e catártico que casos e mais casos de corrupção venham à tona. O que não vale é dizer que tudo começou hoje, ontem ou anteontem. Pelos relatos dos parágrafos anteriores, a história é mais antiga. É bem mais antiga. Desde que me “entendo por gente”, tenho lido sobre casos e mais casos de corrupção não só aqui, nesta “terra papagalli”, mas no mundo todo. Às vezes, tenho a sensação - um pouco pessimista, admito - de que a corrupção está no DNA de muitas pessoas, o que é algo acachapante.  
            Em se tratando de “denúncia à corrupção”, o papel desempenhado pela imprensa é fundamental. No entanto, não me refiro a uma imprensa tacanha, marrom e apinhada de jornalistas despreparados, sem leitura, principalmente de história, e adeptos do “oba-oba” (todos deveriam trabalhar somente em revistas de fofocas). É altamente democrático que uma imprensa séria denuncie e traga à luz o que muitos insistem em esconder sob tapetes e mais tapetes persas. Se ainda lembro, o caso-escândalo Watergate, por exemplo, que acarretou a renúncia do presidente Nixon, nos EUA, deve boa parte de seu êxito à seriedade dos jornalistas do Washington Post, que não encheram balões, sopraram velinhas e cantaram parabéns, mas investigaram com seriedade. Sabiam que o assunto era grave e que, portanto, exigiria... seriedade nas investigações. Não deram ouvidos ao “diz-que-diz” (ou às mágoas de adversários políticos inconformados com alguma derrota).
            Aqui, as pessoas se indignam, sim, e é excelente que não aceitem tanta trapaça. Todavia, o problema é quando elas se indignam com denúncias desprovidas de quaisquer provas, como ocorre em alguns casos. Aí é que “mora o perigo”, como se dizia há um tempo. Em certas situações, a que “provas” o povo está tendo acesso? Não valem as que são ventiladas por “certos” jornais (de TV e impressos). Todos conhecem a “isenção” desses veículos. Manipulam à beça! Com a manipulação, grande parte da população “vai na onda”. Pronto! Estão instauradas a insanidade e a tirania, tanto que muitos têm pedido a volta da ditadura militar. Mais absurdo impossível. Também estou à espera de muitas provas e quero que a punição seja rigorosa. Algumas já apareceram. Ótimo!
            E você, caro colega, que está indignado, já viu sua ficha hoje? É facílimo sair por aí vociferando contra a corrupção na esfera política, uma vez que a imprensa a divulga a todo o instante, não é mesmo? Pois é, mas, antes de empunhar bandeira, peça para “puxarem sua ficha”. Será que ela está limpa? Limpa mesmo, sem quaisquer máculas? É muito cômodo bater no peito, sair por aí arrotando, em alguns casos, verbo sem conteúdo e dizer que é um absurdo a corrupção que grassa por aí. É sempre louvável fazer isso. É exercício de cidadania. Entretanto, a ficha de quem grita deve estar limpíssima. Quando a corrupção bater à sua porta, por favor, não a faça entrar e, ainda por cima, sirva-lhe cafezinho. Ponha essa infeliz senhora para correr. Se possível, com vassourada e tudo. Para completar, plante pimenteira no portão, bata na madeira com os dedos cruzados, ponha uma figa em seu cordão e espalhe vasos e mais vasos de arruda pela casa. Se ela, a “senhora corrupção”, insistir e pular o muro de seu quintal, por favor, não lhe dê abrigo. Não construa uma puxadinha em sua área de serviço para abrigá-la. Sabe por quê? Depois de um algum tempo de convivência, numa noite em que ambos não tiverem “nada” para fazer e depois de algumas doses de um bom vinho, um tórrido caso de amor poderá ter início e, quiçá, durar a vida inteira. Não vacile, companheiro. Sem remorso, sem dó ou piedade, expulse essa “senhora”! Não ceda a seus encantos.  
Também acho um absurdo esse número assustador de escândalos envolvendo o dinheiro público. É muita patifaria! Tenho asco, ojeriza a tudo isso que está aí. Não devemos considerar nada disso “normal”. Antes, porém, cabe a cada um verificar suas corrupções de todo dia. Porque são diárias, tornam-se, para muitos, imperceptíveis. Olhe para dentro de si, caro colega, e observe se você não tem sido corrupto diariamente. Já viu se não furou fila hoje? Já viu se não se esqueceu de devolver o troco que o caixa da padaria deu-lhe a mais? Já viu se, para fugir de uma punição, não tentou subornar alguém? Já viu se, no trânsito, não foi “enfiando” seu carro à frente de outros que tinham “a preferência” só porque dizem que, se a farinha for pouca, seu pirão deve ser o primeiro? Já viu se, ao conversar com seu chefe, você não titubeou no momento de defender um companheiro acusado injustamente só porque quem estava falando era o poderoso “chefe”? Já viu se não lavou calçada à noite e, assim, fugiu aos olhares que estão vigiando pessoas que, em tempos de escassez, não economizam água? Já viu se, quando constatou que seu carro estava prestes a “bater o motor”, você não tratou logo de jogar a bomba no colo de alguém? Já viu se, ao encontrar uma carteira com dinheiro e documentos, você não se esqueceu de devolver, além dos documentos, o dinheiro? Já viu se você não devolveu à loja o produto que ‘você mesmo’ estragou, mas fez questão de pôr a culpa na fábrica só para não arcar com o prejuízo?
E não me diga que só ‘se’ configuram como corrupção os atos que envolvem quantias vultosas ou os bem visíveis! Nada disso, companheiro! “As pessoas têm seus preços tabelados por seus atos”, como disse o compositor Paulinho Soares na letra do samba “Antes ele do que eu”, de 76. Ato desonesto é ato desonesto e pronto. Independe de valor. Roubou cem milhões? É ladrão. Roubou um real? É ladrão do mesmo jeito. Se você não enxergar isso, vai tentar escapar por meio da desculpa “do menor valor” ou do “ato menos visível”. Ou seja, para você, só será ladrão quem roubar muito e só será canalha e patife quem praticar um ato visivelmente desonesto.
Se você pratica suas pequenas corrupções do dia a dia, caro colega, seu preço é zero. Você também é um tipo zero e já está ‘pra’ lá da xepa! Nem o povo “que cata o que sobrou” o quererá mais. Você, assim como os políticos que desviam “lhões, lhões, lhões”, também não vale nada. Por que, em vez de sair por aí pregando sobre o que não sabe (nas redes sociais, principalmente) e com a ficha enlameada, você não faz o que propõe a escritora Elisa Lucinda em seu texto “Só de sacanagem”? “Então agora eu vou sacanear: mais honesta ainda vou ficar”. Tente! Claro que, em seu caso, não se trata de ficar “mais honesto”, mas, simplesmente, de ‘ficar honesto’. Só! Talvez você consiga, um dia, ser simplesmente honesto. Faça algo que você possa contar à sua mãe sem que ela tenha vergonha do filho que teve e tentou educar da melhor maneira. É, companheiro, ser repudiado pela pessoa que o pariu é sinal de que tudo está perdido. Não envergonhe sua mãe. Tente ser honesto. Não dói. Não é difícil... e faz um bem danado, principalmente à nação que o abriga.

¹ “Cancion por la unidad de Latino América” (Pablo Milanés – adapt.: Chico Buarque de Hollanda)
² BUENO, Eduardo. A Viagem do Descobrimento: a verdadeira história da expedição de Cabral. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

SÓ DE SACANAGEM
Elisa Lucinda

Meu coração está aos pulos!
Quantas vezes minha esperança será posta à prova?
Por quantas provas terá ela que passar?
Tudo isso que está aí no ar, malas, cuecas que voam
entupidas de dinheiro, do meu dinheiro, que reservo
duramente para educar os meninos mais pobres que eu,
para cuidar gratuitamente da saúde deles e dos seus
pais, esse dinheiro viaja na bagagem da impunidade e
eu não posso mais.
Quantas vezes, meu amigo, meu rapaz, minha confiança
vai ser posta à prova? Quantas vezes minha esperança
vai esperar no cais?
É certo que tempos difíceis existem para aperfeiçoar o
aprendiz, mas não é certo que a mentira dos maus
brasileiros venha quebrar no nosso nariz.
Meu coração está no escuro, a luz é simples, regada ao
conselho simples de meu pai, minha mãe, minha avó e
dos justos que os precederam: "Não roubarás", "Devolva
o lápis do coleguinha",
" Esse apontador não é seu, minha filhinha".
Ao invés disso, tanta coisa nojenta e torpe tenho tido
que escutar.
Até habeas corpus preventivo, coisa da qual nunca
tinha visto falar e sobre a qual minha pobre lógica
ainda insiste: esse é o tipo de benefício que só ao
culpado interessará.
Pois bem, se mexeram comigo, com a velha e fiel fé do
meu povo sofrido, então agora eu vou sacanear:
mais honesta ainda vou ficar.
Só de sacanagem!
Dirão: "Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo
o mundo rouba" e eu vou dizer: Não importa, será esse
o meu carnaval, vou confiar mais e outra vez. Eu, meu
irmão, meu filho e meus amigos, vamos pagar limpo a
quem a gente deve e receber limpo do nosso freguês.
Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o
escambau.
Dirão: "É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde
o primeiro homem que veio de Portugal".
Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal.
Eu repito, ouviram? IMORTAL!
Sei que não dá para mudar o começo, mas, se a gente
quiser, vai dar para mudar o final!

http://letras.mus.br/elisa-lucinda/835673/


O “achamento”
A terra é tão fermosa
e de tanto arvoredo
tamanho e tão basto
que o homem não dá conta.

No clarão matutino
os tucanos rombudos
eram como figuras
a lápis encarnado
e que houvessem fugido
do caderno escolar
em que Deus aprendia
desenho, em menino.

Tupis em alvoroço,
tribos guerreiras, mansas,
troféus verdes na ponta
dos chuços e das lanças.
Jequitiranaboias.
Colar de osso ao pescoço,
vermelhas araçoias,
cocares multicores.
Cada qual com o seu sol
de plumas à cabeça.
Guerreiros da manhã
que haviam já descido
dos Andes à procura
da Noite, que estaria
para os lados do Atlântico.
Agora se debruçam,
reunidos, ombro a ombro,
sobre a Serra do Mar,
e espiam, com assombro,
o dia português
que saltara das ondas
qual pássaro marinho
ruflando a asa enorme
das velas redondas
por errar o caminho,
e os homens cor do dia
que saíram de dentro
do pássaro marinho!
E em nome de seu povo,
sem saber se quem chega
é fidalgo, ou plebeu;
anjo de cor bronzeada,
cabelo corredio,
nu, listado em xadrez,
tal como Deus o fez,
vem o dono da casa
e oferece o que é seu:
águas, cobras e flores!

Nisto a manhã louca
grita: “bem-te-vi”!
E o Marinheiro branco,
coração já confuso,
ouve, maravilhado,
no gorjeio de um pássaro,
o idioma que, com pouca
corrupção, crê que é luso.
Como explicar que uma ave
de país tão agreste,
diga que bem me viu,
se tu, ó Pai celeste,
não houvesses previsto
que a terra dadivosa
seria descoberta
por quem a descobriu?
Parece que dois povos
tinham marcado encontro
à sombra de tal Serra,
nessa manhã sem par.

Um, que vinha do Mar
seguindo a lei do Sol,
em busca de um tesouro
chamado Sol da Terra
(um novo Tosão de Ouro);

Outro vindo da Terra
para os lados do Atlântico
à procura da Noite
como se adivinhasse,
por estranha magia,
que havia o Mar da Noite.
Pois no fundo das águas
é que a Noite estaria.

RICARDO, Cassiano. Martim Cererê.


A CASA É SUA, PODE ENTRAR (G – 21º)
Então o morubixaba
que era o dono da taba
e que trazia, logo atrás
todo um exército aguerrido
e empenachado que desceu
dos araxás:
tapuios, caetés, poriguaras,
tupinambás, carijós, guaianazes,
formando uma vasta coluna
que vinha desde o mistério
verde-escuro da grande floresta
de onde haviam descido
até aos muros violentos da Serra
do Mar;

Então o morubixaba
fez um terrível nheengaçu
em nome do seu povo todo nu
e ofereceu-lhe a terra cheia de onças
e tudo o mais que havia: águas, cobras e flores!
- A casa é sua, pode entrar!

A madrugada tinha um cheiro de pitanga.
O currupira a rir com os dentes verdes
era um tapuio anão enfeitado de tanga
que andava atropelando os caminheiros
com o relho em flor de japecanga.

A floresta soltou um gripo de araponga
diante do mar!

RICARDO, Cassiano. Martim Cererê.


ÍNDIOS
Renato Russo

Quem me dera, ao menos uma vez,
Ter de volta todo o ouro que entreguei
A quem conseguiu me convencer
Que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Esquecer que acreditei que era por brincadeira
Que se cortava sempre um pano-de-chão
De linho nobre e pura seda.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Explicar o que ninguém consegue entender:
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Provar que quem tem mais do que precisa ter
Quase sempre se convence que não tem o bastante
E fala demais por não ter nada a dizer.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Que o mais simples fosse visto como o mais importante,
Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês -
É só maldade então, deixar um Deus tão triste.

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho.
Entenda - assim pude trazer você de volta para mim,
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim
E é só você que tem a cura para o meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Acreditar por um instante em tudo que existe
E acreditar que o mundo é perfeito
E que todas as pessoas são felizes.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Fazer com que o mundo saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz ao menos obrigado.

Quem me dera, ao menos uma vez,
Como a mais bela tribo, dos mais belos índios,
Não ser atacado por ser inocente.

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho.
Entenda - assim pude trazer você de volta prá mim,
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim
E é só você que tem a cura para o meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui.

Fonte: CD “Dois”, Legião Urbana, EMI, 748147 2, 1986.



COMO ALGUÉM QUE ENCONTROU UM POVO EM RUÍNAS
Cecília Meireles


Como alguém que encontrou um povo em ruínas
e sua casa incendiada
e seu mundo vencido
e se recusou a morrer de dor
e levantou muros
e ressuscitou mortos
e abriu janelas
e acendeu luzes
e semeou campos
e pregou no céu novas estrelas
e trabalhou cheio de lágrimas
e amou o que tinha feito
e desejou cantar,
- assim me encarou o rosto de olhos líquidos
no alto da noite.
Como alguém que recebeu  a morte
daqueles que ressuscitou,
entre muros erguidos
e as janelas abertas,
e as luzes acesas
e os campos ondeantes
e as estrelas gloriosas,
e desejou sorrir
 - assim me encarou o rosto de olhos líquidos
no alto da noite.