MINHA VOZ, MINHA VIDA
Caetano Veloso
Minha voz, minha vida
Meu segredo e minha revelação
Minha luz escondida
Minha bússola e minha desorientação
Se o amor escraviza
Mas é a única libertação
Minha voz é precisa
Vida que não é menos minha que da canção
Por ser feliz, por sofrer, por esperar
Eu canto
Pra ser feliz, pra sofrer, para esperar
Eu canto
Meu amor, acredite
Que se pode crescer assim pra nós
Uma flor sem limite
É somente porque eu trago a vida aqui na voz
DE
‘EU VIM DA BAHIA’ ATÉ ‘JABITACÁ’: GAL E A PASSAGEM DO TEMPO
Por Fábio
Brito
De 1965, quando lançou um compacto simples com “Sim, foi você” (Caetano Veloso) e
“Eu vim da Bahia” (Gilberto Gil), até hoje, Gal Costa é
aclamada como uma das melhores cantoras brasileiras de todos os tempos. A MPB, nos últimos 50 anos, deve muito de seu
brilho, e de sua intensidade, ao cristal da voz dessa diva baiana, ainda que,
em algum dia de domingo, nossa musa tenha cometido equívocos – pequenos, mas
equívocos – na escolha do repertório. Mesmo com alguns descuidos, sua
contribuição para o que chamo de “grande MPB” é simplesmente monumental. Se
alguém quiser conferir, basta mergulhar na discografia de nossa estrela. Está
tudo lá: os melhores compositores do Brasil e muitas das melhores canções
passaram, e passam, por sua voz.
No início da carreira, influenciada pelo canto minimalista de
João Gilberto, de quem é discípula, Maria da Graça, a baianinha tímida do
bairro da Graça, em Salvador, ainda não explorava muito as alturas e, consequentemente,
não chegava à estridência. Assim, o cantar baixinho, bem “bossa nova”, era, no
início, o que preponderava. É só conferir, por exemplo, o primeiro disco,
lançado em 67 e dividido com o amigo Caetano Veloso. Lá estão, entre outras
preciosidades, “Candeias” (Edu Lobo), “Minha senhora” (Gilberto Gil e Torquato
Neto) e “Coração vagabundo” (Caetano Veloso).
A partir da década de 70, sua voz vai às alturas, o que pode ser
comprovado em muitos discos, como no registro ao vivo do ‘show’ “Fatal: Gal a
todo vapor”, de 71, em que também há momentos de “voz e violão”. A partir dos
anos 70, Gal passa a explorar notas altíssimas e ‘o’ faz com competência ímpar.
Brinda-nos, então, com momentos de puro êxtase, como a interpretação de “Meu
nome é Gal”* (Roberto Carlos e Erasmo Carlos), do disco “Gal Tropical” (de 79),
em que há um duelo (fantástico!) entre a voz da diva baiana e a guitarra de
Robertinho de Recife: há momentos em que não se sabe o que é voz e o que é
guitarra. Puro deleite! Em “Olhos do coração” (Tunai e Sérgio Natureza), que
está em “Baby Gal”, de 83, nossa estrela também chega a agudos inacreditáveis,
assim como em “Nada mais” (“Profana”, 1984), versão de Ronaldo Bastos para o sucesso
“Lately”, de Stevie Wonder. Estão aí, mais uma vez, os agudos cristalinos de
nossa diva. Tais canções, entre muitas outras, comprovam o “brilho agudo
musical”, como registrou Bethânia na letra de “Caras e bocas” (1977), da voz de
Gal.
Há dias, revendo, no YouTube, o especial “Baby Gal”, que a Rede
Globo apresentou em dezembro de 83, pude constatar que nossa musa estava no
esplendor não só da voz, mas da beleza e do carisma também. Com um charme fora
do comum, ela era a dona do palco, tanto nas baladas quanto nos frevos
saltitantes. Lembro-me, claramente, de ter assistido a esse ‘show’ com um
prazer inenarrável. Eu não desgrudava os olhos da TV, tamanho era o magnetismo
da estrela e o poder encantatório da voz. Com a morte de Elis Regina, em 82,
Gal assume – indisputavelmente, para muitos críticos – o posto de melhor
cantora do Brasil. O especial “Baby Gal”, para muitos, comprova isso.
Pois bem, observando os comentários acerca desse vídeo, um, em
especial, deixou-me um pouco pensativo: “Belos momentos de uma cantora que não
soube envelhecer”. Será? É possível que, em certos momentos, Gal não tenha, de
fato, sabido envelhecer, por mais que dizer isso seja bem doído para mim.
Se a voz também envelhece, quando, então, a
de Gal começou a sentir os efeitos da passagem do tempo? Para mim, seu auge
vocal foi entre 70 e 95. Em 97, ao lançar o “Acústico MTV”, percebi que a voz
já sinalizava as transformações que, inevitavelmente, o tempo traz. Ao regravar
a canção “O amor”¹ (Caetano Veloso e Ney Costa Santos – sobre versos de Maiakóvski),
por exemplo, é nítido que nossa estrela já não o faz com o mesmo brilho de 81,
quando a lançou no disco “Fantasia”. Às notas mais altas, quando chega, é com
certo esforço. Em 2001, ela insiste em “O amor”, que conseguiu, inclusive,
ficar devendo à gravação do “Acústico”: gravou-a novamente em “Gal de tantos
amores”, um disco equivocado em que ela revisita algumas canções de seu repertório,
mas tais regravações ficam devendo – e muito! - às originais. Em
“Índia”, por exemplo, extirpa os agudos que havia nas gravações de 73 e 79, o
que acaba suscitando maldosas comparações em muitas pessoas. Como se não
bastasse, em 2013, em “Recanto ao vivo”, “O amor” se faz presente outra vez. Para
quê?
Ao lançar o disco “Hoje”³, em 2005, às
vésperas de completar 60 anos, Gal foi capa da revista “Bravo!”². Na matéria, quando
interrogada se existia alguma verdade em comentários sobre mudanças físicas (decorrentes
da idade) que poderiam ter influenciado seu trabalho de forma negativa, nossa
estrela deu esta resposta:
“Nenhuma
verdade. Estou em plena forma. Vou fazer 60 anos com uma voz... Às vezes, o Cesar
(Camargo Mariano) comentava no estúdio: ‘Olha que voz! Parece uma criança
cantando’. Eu não me sinto com a idade que tenho. O meu espírito é mais jovem
do que minha idade real”.
Por um lado, se levarmos em conta o vigor
de Gal e a vontade de continuar cantando (a vida pulsa!), a resposta à revista
é deveras importante e merece nosso apreço; por outro, se pensarmos no
“lugar-comum” da expressão “espírito jovem” (não gosto dessa história de
‘espírito jovem’), a resposta pode ser entendida como certa dificuldade em
encarar a passagem do tempo.
E por falar em passagem do tempo,
lembrei-me de uma entrevista que Maria Bethânia concedeu, por ocasião do
lançamento do disco “Olho d’água”, em 1992, ao programa “Cara a Cara”,
apresentado por Marília Gabriela na TV Bandeirantes. Nossa outra diva baiana disse
que, enquanto a voz permanecesse firme e ela gostasse de ‘se’ ouvir cantar,
continuaria cantando. Na entrevista, com firmeza e determinação, mostrou-se
consciente das inevitáveis mudanças trazidas pelo tempo. Não estou dizendo que
Gal não tenha essa consciência ou que é chegada a hora de parar de cantar. Não
se trata disso. Pode ser impressão, mas o que sinto é que ela anda resistindo
bastante às transformações, tanto que insiste em canções que não têm nada a ver
com sua voz de hoje. Será que estou enganado?
Em “Estratosférica”, lançado recentemente,
há canções que estão perfeitas, como “Jabitacá” (Júnior Barreto, Lira e
Bactéria) e “Quando você olha pra ela” (Mallu), por exemplo. No entanto, em
“Dez anjos” (Milton Nascimento e Criolo) e “Espelho d’água” (Marcelo Camelo e
Thiago Camelo), que também são lindas, a voz já não mostra o mesmo esplendor:
em algumas notas, a voz “deixou a desejar”, como se diz. Seria o caso de Gal voltar
ao canto delicado e baixinho, como no início da carreira? Talvez seja o momento
de reconhecer que ela não deve insistir em certas canções e compreender, como
eu já disse, que os tempos – e a voz – são outros. Seu fraseado continua lindo,
sua voz continua maravilhosa, mas é preciso adequá-los às mudanças trazidas
pelo tempo, que é implacável, até com as vozes.
Se o tempo passa (e passa mesmo!), é bom
fazer ‘dele’ um belo aliado, como ‘o’ fez Ademilde Fonseca. Num programa de TV,
quando o apresentador perguntou se seria possível cantar “Apanhei-te, cavaquinho”,
nossa “Rainha do chorinho”, já com 90 anos e pouco antes de falecer, disse, com
serenidade, que não dava mais. Ou seja, estava reconhecendo as limitações que a
idade sempre traz. Nesse mesmo programa, cantou acompanhada da filha, que
“substituiu” a mãe quando foi necessário chegar às notas mais altas (se eu não
estiver enganado, usavam o mesmo recurso nos “shows”). Perfeito!
No caso de Gal, acho um luxo que ela esteja
cantando aos 70 anos. É uma dádiva, mas é preciso fazer certos ajustes. Elizeth
Cardoso, a “Divina”, que faleceu poucos dias antes de completar 70, ganhou um
veludo na voz que a tornou ainda mais bonita. Nossa “Faxineira das canções”
soube, perfeitamente, fazer a transição. Quero ouvir Gal cantando até os 90,
100 anos, se possível, mas sem que eu fique imaginando a Gal de décadas
passadas e ‘dela’ sentindo saudades. Se o tempo é implacável, negociemos
dignamente com ele.
¹ “O amor”, assim
como “Vaca profana” e “Força estranha”, também eram faixas do projeto “Acústico
MTV”, mas ficaram fora do disco lançado em 97. Em 2004, porém, as três
integraram a coletânea “Gal canta Caetano”, lançada pela BMG.
² Revista “Bravo!”,
setembro de 2005, ano 8.
³ “Hoje” é um
trabalho inovador, em que Gal reúne novos compositores, feito repetido no
arrojado e pouco acessível “Recanto”, de 2011, e em “Estrosférica”, de 2015.
Este, segundo a própria Gal, é mais “palatável” que o anterior.
*”Meu nome é Gal” foi
gravada pela primeira vez em 1969 (disco “Gal”, com direção musical do maestro
Rogério Duprat).
ZABELÊ
Gilberto Gil / Torquato Neto
Minha sabiá
Minha zabelê
Toda meia-noite eu sonho com você
Se você duvida, eu vou sonhar pra você ver
Minha sabiá,
Vem me dizer,
por favor,
O quanto eu devo amar
Pra nunca
morrer de amor
Minha zabelê
Vem correndo
me dizer
Por que sonho
toda noite
E sonho só com
você
Se você não me
acredita
Vem pra cá,
vou lhe mostrar
Que riso largo
é o meu sonho
Quando eu
sonho com você
Mas anda logo
Vem que a
noite já não tarda a chegar
Vem correndo
pro meu sono escutar
Que eu sonho
falando alto
Com você no
meu sonhar
Vitor Ramil
Estrela,
estrela
Como ser assim
Tão só, tão só
E nunca
sofrer?
Brilhar,
brilhar
Quase sem
querer
Deixar, deixar
Ser o que se é
É bom saber
Que és parte
de mim
Assim como és
Parte das
manhãs
Eu canto, eu
canto
Por poder te
ver
No céu, no céu
Como um balão
Eu canto e sei
Que também me
vês
Aqui, aqui
Como essa
canção
FALTANDO UM PEDAÇO
Djavan
O amor é um
grande laço
Um passo pr’uma armadilha
Um lobo correndo em círculo
Pra alimentar a matilha
Comparo sua chegada
Com a fuga de uma ilha
Tanto engorda quanto mata
Feito desgosto de filha
O amor é como um raio
Galopando em desafio
Abre fendas, cobre vales
Revolta as águas dos rios
Quem tentar seguir seu rastro
Se perderá no caminho
Na pureza de um limão
Ou na solidão do espinho
O amor e a agonia
Cerraram fogo no espaço
Brigando horas a fio
O cio vence o cansaço
E o coração de quem ama
Fica faltando um pedaço
Que nem a lua minguando
Que nem o meu nos seus braços
LUZ DO SOL
Caetano Veloso
Luz do sol
Que a folha
traga e traduz
Em verde de
novo
Em folha, em
graça, em vida em força, em luz
Céu azul que
venha
Até onde os
pés tocam a terra
E a terra
inspira e exala seus azuis
Reza, reza o
rio
Córrego pro
rio e o rio pro mar
Reza a correnteza
, roça a beira, doura a areia
Marcha um
homem sobre o chão
Leva no
coração uma ferida acesa
Dono do sim e
do não
Diante da
visão da infinita beleza
Finda por
ferir com a mão essa delicadeza
A coisa mais
querida, a glória da vida
Luz do sol
Que a folha
traga e traduz
Em verde de
novo
Em folha, em
graça, em vida, em força, em luz
CARAS E BOCAS
Caetano Veloso / Maria
Bethânia
Quando canto
um segredo
Quando mostro
algum medo
Ou mais
Quando falo de
amor ou desejo
Minha boca se
mostra macia
Vermelha
Mas se dessa
garganta
Das cordas
escondidas
Desse peito
sufocado
Desse coração
atrapalhado
Surge uma nota
brilhante de cristal transparente
Minha cara
invade a cena
Rasga a vida
Mostra o
brilho agudo musical
HOJE
Moreno Veloso
Eu posso
esquecer,
Para ser mais
feliz,
Mas não vou
mudar nada
De tudo que eu
fiz.
É só não
pensar em nós
Como a melhor
parte de mim.
E eu quero
chegar
A um dia
dizer:
De tanto ficar
só,
Vivo bem sem
você.
JABITACÁ
Junio Barreto / Lira /
Bactéria
Mesmo com
todas as coisas esquecidas entre nós
Até o apagar
das velhas rendas coloridas eu te
amo
Nos nomes
escritos no chão
Nos riscos de
vidro na pedra
Acontece nas
manhãs
Que eu não
vejo seu caminho
Acontece nos
caminhos em que ando só
Sopro as
nuvens que escondem
As estrelas de
guiar
Mas não me
deixe navegar
Se já não crê
no encanto deste mar
Se nossas
manhãs se perderam nas ruas sem
jardins
Enfeitou a
nossa casa
Com a rosa da
mais bela cor
Encontrada nas
montanhas do Jabitacá
Quando nada
for mais longe
E acontecer de
ser você no meu caminho
Mas meu amor
Mesmo com
todas as coisas escondidas
Até o pôr do
sol da madrugada
E as placas
baleadas pela estrada
MÃE DA MANHÃ
Gilberto Gil
Meu canto na
escuridão
Minha voz, meu
amparo
Aro de luz
nascente do dia
Brota na gruta
da dor
Mãe da manhã,
de tudo eu faria
Pra conservar
vosso amor
A cada ano,
uma romaria
Uma oferenda,
uma prenda, uma flor
A cada
instante, um grão de alegria
Lembranças do
vosso amor
Santa Virgem
Maria
Vós que sois
Mãe do Filho do Pai do Nascer do Dia
Abençoai minha
voz, meu cantar
Na escuridão
dessa nostalgia