ESQUADROS
Adriana Calcanhotto
Eu ando pelo mundo prestando atenção
Em cores que eu não sei o nome
Cores de Almodovar
Cores de Frida Kahlo, cores
Passeio pelo escuro,
eu presto muita atenção no que meu irmão ouve
E como uma segunda pele, um calo, uma casca,
uma cápsula protetora
eu quero chegar antes
pra sinalizar o estar de cada coisa,
filtrar seus graus…
Eu ando pelo mundo divertindo gente
chorando ao telefone
E vendo doer a fome dos meninos que têm fome
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle…
Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm para quê?
As crianças correm para onde?
Transito entre dois lados de um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo, me mostro
Eu canto para quem?
Pela janela do quarto...
Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?
minha alegria, meu cansaço?
Meu amor, cadê você?
Eu acordei
não tem ninguém ao lado
Pela janela do quarto...
Ref.: “Esquadros”, Adriana Calcanhotto, Senhas, Columbia, 850.161/2-464280, Rio de Janeiro, 1992.
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http://www.arquitetonico.ufsc.br/fridakhalo
EM COYOACÁN, DUAS CASAS CONTAM A HISTÓRIA
Marina Colasanti
Que prazeroso é estar de manhã cedo em Coyoacán, quando o dia não tomou plena posse das suas horas, e os turistas se atardam nos hotéis. Há na praça um frescor de aldeia, um úmido luzir de buganvílias. As barraquinhas ainda estão fechadas nos seus plásticos, negras como conchas. Um velho varre a porta da igreja antiga. Alguém tira uma foto. Então a gente senta em um banquinho alto no mercado da esquina e pede ao homem atrás do balcão uma quesadilla com cuitlacoche, que vai preparar e fritar na nossa frente, para tragédia do colesterol e alegria do paladar.
Quesadilla é uma tortilla recheada; cuitlacoche é um cogumelo escuro e perfumado que cresce no milho. E Coyoacán é um bairro de Cidade do México, povoado indígena ao tempo da chegada dos espanhóis, que Hernás Cortés escolheu para se estabelecer. Se você for ao México (...), certamente irá a Coyoacán. O programa clássico pode se prolongar por um dia e dá direito a praça, quesadilla e mercado, seguidos de passeio vadio a pé pelas ruas arborizadas e serenas, até a casa de Frida Khalo. Visita-se a casa de Frida, toma-se um café no jardim. E parte-se para visitar a casa de Trotski.
Se você for, aceite meu conselho, inverta o programa. Deixe a casa de Frida para o fim.
A casa de Frida é azul cobalto-pavão-azulérrimo, aquele incrível azul mexicano que só encontra semelhança com certos azuis marroquinos. E tem frisos vermelhos, e paredes amarelo-sol, e móveis coloridos, e enfeites nas paredes, e um jardim todo cercado como um jardim secreto, onde gatos dormem ao sol.
A casa de Frida escancara o amor à vida, embora contendo tantos sinais de sofrimento. Ali está, junto ao cavalete, a cadeira de rodas à qual se viu confinada nos últimos cinco anos de vida. Ali está a cama estreita, com espelho no dossel para expandir sua visão. E ali estão oito instrumentos de tortura, os coletes ortopédicos e de gesso com os quais os médicos tentaram remediar sua coluna destroçada. Em um deles, Frida colou entre os seios a imagem de uma tartaruga, como ela, resistente na prisão da carapaça. Acima colou uma águia, dos lados um leão e um tigre, seus símbolos de coragem.
Como o colete, tudo naquela casa fala. Há uma escrita por baixo do retrato do pai, há escritas em todos os ex-votos da sua grande coleção, o nome dela e de Diego - Diego Rivera, seu amado, seu marido - aparecem por toda parte, bordados em almofadas, escritos em cartas, desenhados. A casa que foi de dois apaixonados dialoga com os outros e se abre à luz.
Em seguida, vai-se andando até a casa de Trotski.
Chegando ao México, exilados, Trotski e Natália, sua mulher, hospedaram-se inicialmente em casa de Frida e Diego, que haviam se empenhado para conseguir-lhes o asilo. Frida e Trotski tornaram-se amantes. Dois anos mais tarde, depois de um desentendimento com Rivera, o casal Trotski se mudou para a casa que agora se visita, onde Trotski sofreria um atentado, e seria assassinado.
Por questões de segurança, murou-se o portão principal de entrada. Os muros foram levantados. Ergueram-se duas torres para vigia. Construiu-se uma casa para os guardas e o pessoal de apoio. A porta envidraçada do quarto, que dava para o jardim, foi parcialmente murada. Depois do primeiro atentado, os acessos ao quarto do casal e ao do neto foram blindados.
Naquela casa, tudo está à espera da morte. As paredes são cinzentas, as lâmpadas pendem do fio, os poucos móveis pintados estão descascados. Tudo está nu, no osso. Não há uma nota de cor, um toque de alegria ou de calor, nenhuma concessão. Nas paredes do quarto, o casal deixou as marcas das balas do atentado.
Pesado é o hálito da casa em que traição e assassinato perduram, sem que baste a constante presença de visitantes para apagá-los. Andando por aqueles cômodos, a alma se retrai, doída, e ao sair em pleno sol quase nos surpreendemos com os ruídos e a vitalidade da cidade.
Fonte: Jornal do Brasil, domingo, 7 de maio de 2006.
Quesadilla é uma tortilla recheada; cuitlacoche é um cogumelo escuro e perfumado que cresce no milho. E Coyoacán é um bairro de Cidade do México, povoado indígena ao tempo da chegada dos espanhóis, que Hernás Cortés escolheu para se estabelecer. Se você for ao México (...), certamente irá a Coyoacán. O programa clássico pode se prolongar por um dia e dá direito a praça, quesadilla e mercado, seguidos de passeio vadio a pé pelas ruas arborizadas e serenas, até a casa de Frida Khalo. Visita-se a casa de Frida, toma-se um café no jardim. E parte-se para visitar a casa de Trotski.
Se você for, aceite meu conselho, inverta o programa. Deixe a casa de Frida para o fim.
A casa de Frida é azul cobalto-pavão-azulérrimo, aquele incrível azul mexicano que só encontra semelhança com certos azuis marroquinos. E tem frisos vermelhos, e paredes amarelo-sol, e móveis coloridos, e enfeites nas paredes, e um jardim todo cercado como um jardim secreto, onde gatos dormem ao sol.
A casa de Frida escancara o amor à vida, embora contendo tantos sinais de sofrimento. Ali está, junto ao cavalete, a cadeira de rodas à qual se viu confinada nos últimos cinco anos de vida. Ali está a cama estreita, com espelho no dossel para expandir sua visão. E ali estão oito instrumentos de tortura, os coletes ortopédicos e de gesso com os quais os médicos tentaram remediar sua coluna destroçada. Em um deles, Frida colou entre os seios a imagem de uma tartaruga, como ela, resistente na prisão da carapaça. Acima colou uma águia, dos lados um leão e um tigre, seus símbolos de coragem.
Como o colete, tudo naquela casa fala. Há uma escrita por baixo do retrato do pai, há escritas em todos os ex-votos da sua grande coleção, o nome dela e de Diego - Diego Rivera, seu amado, seu marido - aparecem por toda parte, bordados em almofadas, escritos em cartas, desenhados. A casa que foi de dois apaixonados dialoga com os outros e se abre à luz.
Em seguida, vai-se andando até a casa de Trotski.
Chegando ao México, exilados, Trotski e Natália, sua mulher, hospedaram-se inicialmente em casa de Frida e Diego, que haviam se empenhado para conseguir-lhes o asilo. Frida e Trotski tornaram-se amantes. Dois anos mais tarde, depois de um desentendimento com Rivera, o casal Trotski se mudou para a casa que agora se visita, onde Trotski sofreria um atentado, e seria assassinado.
Por questões de segurança, murou-se o portão principal de entrada. Os muros foram levantados. Ergueram-se duas torres para vigia. Construiu-se uma casa para os guardas e o pessoal de apoio. A porta envidraçada do quarto, que dava para o jardim, foi parcialmente murada. Depois do primeiro atentado, os acessos ao quarto do casal e ao do neto foram blindados.
Naquela casa, tudo está à espera da morte. As paredes são cinzentas, as lâmpadas pendem do fio, os poucos móveis pintados estão descascados. Tudo está nu, no osso. Não há uma nota de cor, um toque de alegria ou de calor, nenhuma concessão. Nas paredes do quarto, o casal deixou as marcas das balas do atentado.
Pesado é o hálito da casa em que traição e assassinato perduram, sem que baste a constante presença de visitantes para apagá-los. Andando por aqueles cômodos, a alma se retrai, doída, e ao sair em pleno sol quase nos surpreendemos com os ruídos e a vitalidade da cidade.
Fonte: Jornal do Brasil, domingo, 7 de maio de 2006.
Essa música da adriana é maravilhosa!
ResponderExcluirTambém adoro, Gabriela. Ouço-a sempre. Bjs,
ExcluirE esse texto sobre a casa de Frida é denso, quase posso sentir o peso e as tensões do momento da visita.
ResponderExcluirDá uma vontade danada de visitar essas casas, não dá? Bjs,
ExcluirAdoro Calcanhotto, Gabriela! Marina Colasanti também é paixão antiga. E que texto, não é? O bom escritor, ao narrar sobre algum lugar, por exemplo, consegue a proeza de 'nos' levar a esse lugar. Um beijo e obrigado pela visita, sempre honrosa para mim. Fábio
ResponderExcluirValeu amigo, pelas visitas, pelos abraços, pelas palavras... Feliz 2012 pra você e boas festas!
ResponderExcluirAmo Frida. Ótimo post Fábio
ResponderExcluirMuito obrigado, Julio. Também adoro Frida. Abração,
ExcluirObrigado, Julio. Também amo Frida. Abração, Fábio
ResponderExcluirFábio, Adriana é uma das minhas preferidas: adoro seu trabalho. O texto é excelente: "bem literário!". Ótima postagem, meu amigo!
ResponderExcluirAbração,
Rodrigo Davel
Muito obrigado, Rodrigo. Como sempre, você é sempre muito bem-vindo a este 'blog'. Abração,
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