AOS NOSSOS FILHOS
Ivan Lins - Vitor Martins
Perdoem a cara amarrada
Perdoem a falta de abraço
Perdoem a falta de espaço
Os dias eram assim
Perdoem por tantos perigos
Perdoem a falta de abrigo
Perdoem a falta de amigos
Os dias eram assim
Perdoem a falta de folhas
Perdoem a falta de ar
Perdoem a falta de escolha
Os dias eram assim
E quando passarem a limpo
E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos
Façam a festa por mim
Quando lavarem a mágoa
Quando lavarem a alma
Quando lavarem a água
Lavem os olhos por mim
Quando brotarem as flores
Quando crescerem as matas
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim
"PÁGINA INFELIZ DA NOSSA HISTÓRIA"
Por Fábio Brito
Tendo o apoio de muitos, como boa parte do empresariado e dos meios de comunicação, a ditadura enfrentou resistência – e que resistência! – de escritores, dramaturgos, músicos, cineastas e atores, entre outros, que, como ninguém, souberam “usar as armas mais bonitas”¹ no combate às atrocidades do período ditatorial. Pagaram, é claro!, um preço alto porque souberam resistir e denunciaram, por meio da arte, o sofrimento por que todos passaram e os desmandos cometidos. Não faltaram atos de brutalidade explícita dos ditadores, mas nossos artistas – bravos artistas! – resistiram e deixaram para a posteridade um legado riquíssimo, entre poemas, canções, filmes e peças teatrais, por exemplo. Foram fortes! Parafraseando Hiroshi, citado por Eugenio Mussak, nossos artistas puderam mostrar que a brutalidade não é forte, como pensam muitos. A delicadeza, sim, requer muita força. Mostraram ainda que tudo é mais real quando é mais poético.
E, para mostrar, por meio da arte, a realidade de um “Brasil sob as botas da ditadura”, o curso de Letras do Centro Universitário São Camilo/ES organizou e apresentou, dia 14 de março, o sarau “’É melhor morrer do que perder a vida’: a literatura, a música, o golpe de 64 e a repressão”. O evento marcou a terceira edição do “Dia da Poesia”: nos anos anteriores, as homenagens voltaram-se à mulher e ao centenário de nascimento do poeta Vinicius de Moraes’, nosso “Poetinha”.
“Cantando” a liberdade de forma sutil, irônica, poética e delicada, alunos e professores, por meio da prosa, da poesia e da música, passearam – numa praça e numa redação de jornal, o cenário do evento - por diversos textos que não só fizeram história, mas estão gravados, de forma indelével, na alma de todos nós. Thiago de Mello, Regina Zappa, Zuzu Angel, Miltinho, Chico Buarque, Gonzaguinha, Nara Leão, Milton Nascimento, Ronaldo Bastos, Affonso Romano de Sant'Anna, Sidney Miller, Ferreira Gullar, João Bosco, Aldir Blanc, Paulinho da Viola, Frei Betto, Gilberto Gil, Alex Polari, Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Lins, Vitor Martins, Cacaso, Torquato Neto, Maurício Tapajós, Paulo César Pinheiro, Sophia de Mello e Geraldo Vandré foram, em verdade, os condutores do sarau. “Receberam” os convidados oferecendo o que de melhor eles têm: sua arte. Os versos de “Os estatutos do homem”, do grande poeta Thiago de Mello, deram o mote: “A partir deste instante / a liberdade será algo vivo e transparente / como um fogo ou um rio, / e a sua morada será sempre / o coração do homem”. Ao fim do encontro, todos tiveram a certeza de que a arte liberta.
Normalmente, na correria louca do dia a dia, não damos ao outro, como disse a poeta Adélia Prado, o que de mais precioso temos: o tempo. No sarau, ao contrário, o curso de Letras ofertou ao público que compareceu ao auditório Pe. Ângelo Brusco um tempo preciosíssimo para a troca de delicadezas e sensibilidades. Ofertou arte, que nos espiritualiza, que nos torna humanos, que nos leva a Deus.
OS ESTATUTOS DO HOMEM
(Ato Institucional Permanente)
Thiago de Mello
A Carlos Heitor Cony
Fica decretado que agora vale a verdade.
Agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que, sobretudo, tenha
sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.
Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida
amar sem amor.
Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
ANGÉLICA
Miltinho - Chico Buarque
Quem é essa
mulher
Que canta
sempre esse estribilho
Só queria
embalar meu filho
Que mora na
escuridão do mar
Quem é essa
mulher
Que canta
sempre esse lamento
Só queria
lembrar o tormento
Que fez o meu
filho suspirar
Quem é essa mulher
Que canta
sempre o mesmo arranjo
Só queria
agasalhar meu anjo
E deixar seu
corpo descansar
Quem é essa
mulher
Que canta como
dobra um sino
Queria cantar
por meu menino
Que ele já não
pode mais cantar
“Um estudante de
16 anos morreu porque queria instalações sanitárias e comida para melhor
cumprir suas funções de estudante. Não se trata nem mesmo de uma manifestação
político-ideológica. Mas o governo (...) não podia concluir as obras do
Calabouço, porque tinha tido muitas despesas com o carnaval para fantasiar a
miséria, a falta de hospitais, a chacina de índios, os excedentes
universitários (...)
Fizemos
uma greve de teatro contra a censura. E voltamos a cantar. Mas é impossível
cantar, sabendo que os estudantes estão sendo assassinados nas ruas. ‘As providências serão tomadas nas horas
devidas’, e ninguém sabe que hora será essa. ‘Os culpados serão punidos’, mas acontece que os que dizem que vão
punir são os verdadeiros culpados. Por isso, é preciso não cantar. A desesperança, o desespero, a falta de
perspectiva de todos nós neste momento, tudo isso é impossível ser dito em
música. O canto, mesmo triste, sempre celebra e é bonito. Mas a realidade está
feia demais para ser cantada e celebrada.”
Nara
Leão
(Fragmento de “É preciso não cantar”, texto publicado na coluna ‘Rodaviva’,
assinada por Nelson Motta no jornal “Última Hora, 1968)
Fonte: CABRAL, Sérgio. Nara Leão: uma biografia. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 2001.
MENINO
Milton Nascimento / Ronaldo
Bastos
Quem cala
sobre teu corpo
Consente na
tua morte
Talhada a
ferro e fogo
Nas
profundezas do corte
Que a bala
riscou no peito
Quem cala
morre contigo
Mais morto que
estás agora
Relógio no
chão da praça
Batendo,
avisando a hora
Que a raiva
traçou no tempo
No incêndio
repetindo
O brilho de
teu cabelo
Quem grita
vive contigo
OS DESAPARECIDOS
Affonso
Romano de Sant’Anna
De
repente, naqueles dias, começaram
a
desaparecer pessoas, estranhamente.
Desaparecia-se.
Desaparecia-se muito
naqueles
dias.
Ia-se
colher a flor oferta
e
se esvanecia.
Eclipsava-se
entre um endereço e outro
ou
no táxi que se ia.
Culpado
ou não, sumia-se
ao
regressar do escritório ou da orgia.
Entre
um trago de conhaque
e
um aceno de mão, o bebedor sumia.
Evaporava
o pai
ao
encontro da filha que não via.
Mães
segurando filhos e compras,
gestantes
com tricots ou grupos de estudantes
desapareciam.
Desapareciam
amantes em pleno beijo
e
médicos em meio à cirurgia.
Mecânicos
se diluíam
mal
ligavam o torno do dia.
Desaparecia-se.
Desaparecia-se muito
naqueles
dias.
Desaparecia-se
a olhos vistos
e
não era miopia. Desaparecia-se
até
à primeira vista. Bastava
que
alguém visse um desaparecido
e
o desaparecido desaparecia.
Desaparecia
o mais conspícuo
e
o mais obscuro sumia.
Até
deputados e presidentes evanesciam.
Sacerdotes,
igualmente, levitando
iam,
aerefeitos, constatar no além,
como
os pescadores partiam.
Desaparecia-se.
Desaparecia-se muito
naqueles
dias.
Os
atores no palco
entre
um gesto e outro, e os da plateia
enquanto
riam.
Não,
não era fácil ser poeta naqueles dias.
Porque
os poetas, sobretudo
desapareciam.
Se
fosse ao tempo da Bíblia, eu diria
que
carros de fogo arrebatavam os mais puros
em
mística euforia. Não era. É ironia.
E
os que estavam perto, em pânico, fingiam
que
não viam. Se abstraíam.
Continuavam
seu baralho a conversar demências
com
o ausente, como se ele estivesse ali
sorrindo
com
suas roupas e dentes.
Em
toda família à mesa havia
uma
cadeira vazia, a qual se dirigiam.
Servia-se
comida fria ao extinguido parente
e
isto alimentava ficções
- nas
salas e mentes
enquanto
no palácio, remorsos vivos
boiavam
- na sopa do
presidente.
As
flores, olhando a cena, não compreendiam.
Indagavam
dos pássaros, que emudeciam.
As
janelas das casas, mal podiam crer
-
no que viam.
As pedras,
no entanto,
gravavam
os nomes dos fantasmas,
pois
sabiam que quando chegasse a hora
por
serem pedras, falariam.
O
desaparecido é como um rio:
-
se tem nascente, tem foz.
Se
teve corpo, tem ou terá voz.
Não
há verme que em sua fome
roa
totalmente um nome. O nome
habita
as vísceras da fera
Como
a vítima corrói o algoz.
E
surgiam sinais precisos
de
que os desaparecidos, cansados
de
desaparecerem vivos
iam
aparecer mesmo mortos
florescendo
com seus corpos
a
primavera de ossos.
Brotavam
troncos de árvores,
rios,
insetos e nuvens em cujo porte se viam
vestígios
dos que sumiam.
Os
desaparecidos, enfim,
amadureciam
sua morte.
Desponta
um dia uma tíbia
na
crosta fria dos dias
e
no subsolo da história
-
coberto por duras botas,
faz-se
amarga arqueologia.
A
natureza, como a história,
segrega
memória e vida
e
cedo ou tarde desova
a
verdade sobre a aurora.
Não
há cova funda
que
sepulte
-
a rasa covardia.
Não
há túmulo que oculte
os
frutos da rebeldia.
Cai
um dia em desgraça
a
mais torpe ditadura
quando
os vivos saem à praça
e
os mortos da sepultura.
MEIOS DE COMUNICAÇÃO
Ignácio
de Loyola Brandão
Às 23, 04, o Presidente bom-magnânimo-liberal
ergueu a mão direita e abençoou o seu povo, o povo de todo o país (ame-O).
“Durma bem, minha boa gente”. A população fez o sinal-da-cruz, e agradeceu.
Sidney
Miller
O
automóvel corre, a lembrança morre
O
suor escorre e molha a calçada
A
verdade na rua, a verdade no povo
A
mulher toda nua, mas nada de novo
A
revolta latente que ninguém vê
E
nem sabe se sente, pois é, pra quê?
O
imposto, a conta, o bazar barato
O
relógio aponta o momento exato
da
morte incerta, a gravata enforca
O
sapato aperta, o país exporta
E
na minha porta ninguém quer ver
Uma
sombra morta, pois é, pra quê?
Que
rapaz é esse? Que estranho canto
Seu
rosto é santo, seu canto é tudo
Saiu
do nada, da dor fingida
Desceu
a estrada, subiu na vida
A
menina aflita ele não quer ver
A
guitarra excita, pois é, pra quê?
A
fome, a doença, o esporte, a gincana
A
praia compensa o trabalho, a semana
O
chopp, o cinema, o amor que atenua
O
tiro no peito e o sangue na rua
A
fome, a doença, não sei mais por quê
Que
noite, que lua, meu bem, pra quê?
O
patrão sustenta o café, o almoço
O
jornal comenta: um rapaz tão moço!
O
calor aumenta, a família cresce
O
cientista inventa uma flor que parece
A
razão mais segura pra ninguém saber
De
outra flor que tortura, pois é, pra quê?
No
fim do mundo tem um tesouro
Quem
for primeiro carrega o ouro
A
vida passa no meu cigarro
Quem
tem mais pressa que arranje um carro
Pra
andar ligeiro, sem ter por quê
Sem
ter pra onde, pois é, pra quê?
MAIO 1964
Ferreira
Gullar
Na
leiteria a tarde se reparte
em
iogurtes, coalhadas, copos
de
leite
e
no espelho meu rosto. São
quatro
horas da tarde, em maio.
Tenho
33 anos e uma gastrite. Amo
a
vida
que
é cheia de crianças, de flores
e
mulheres, a vida,
esse
direito de estar no mundo,
ter
dois pés e mãos, uma cara
e
a fome de tudo, a esperança.
Esse
direito de todos
que
nenhum ato
institucional
ou constitucional
pode
cassar ou legar.
Mas
quantos amigos presos!
quantos
em cárceres escuros
onde
a tarde fede a urina e terror.
Há
muitas famílias sem rumo esta tarde
nos
subúrbios de ferro e gás
onde
brinca irremida a infância da classe operária.
Estou
aqui. O espelho
não
guardará a marca desse rosto,
se
simplesmente saio do lugar
ou
se morro
se
me matam.
Estou
aqui e não estarei, um dia,
em
parte alguma.
Que
importa, pois?
A
luta comum me acende o sangue
e
me bate no peito
como
o coice de uma lembrança.
FREI TITO
Frei
Betto (texto musicado por Madan em 1997)
Frei
Tito de Alencar Lima
Foi
preso em novembro de 1969, acusado de oferecer infraestrutura a Carlos
Marighella. Tito é submetido a palmatória e choques elétricos, no Deops, em
companhia de seus confrades.
Em
fevereiro do ano seguinte, quando já se encontra em mãos da Justiça Militar, é
retirado do presídio Tiradentes e levado para Operação Bandeirantes, mais tarde
conhecida como DOI-Codi, ‘na’ Rua Tutóia.
Durante
três dias, batem sua cabeça na parece, queimam sua pele com brasa de cigarros e
dão-lhe choques por todo o corpo, em especial na boca, “para receber a hóstia”,
gritam os algozes.
Fernando
Gabeira, preso ao lado, tudo percebe. Querem que Tito denuncie quem o ajudou a
conseguir o sítio de Ibiúna para o congresso da UNE (União Nacional dos
Estudantes), em 1968, e assine depoimento atestando que dominicanos
participaram de assalto a bancos.
No
limite de sua resistência, Tito corta com a gilete que lhe emprestam para fazer
a barba a artéria interna do cotovelo esquerdo. É socorrido a tempo no hospital
militar, no Cambuci.
As
incessantes torturas não abrem a boca do frade de 28 anos, mas lhe cindem a
alma. Cumpre-se a profecia do capitão Albernaz, da Oban: “Se não falar, será
quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis.
Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia”.
Em
dezembro de 1970, incluído na lista de presos políticos trocados pelo
embaixador suíço Giovanni Bucher, sequestrado pelo VPR de Lamarca, Tito é
banido do Brasil pelo governo Médici.
De
Santiago do Chile ruma para Paris, sem jamais recuperar sua harmonia interior.
Nas
ruas da capital francesa ele “vê” o espectro de seus torturadores.
...
contorce-se em calafrios sob o fantasma do delegado Fleury. Sua mente naufraga
em delírios.
No
dia 10 de agosto de 1974, um estranho silêncio paira sob o céu azul do verão
francês, envolvendo folhas, ventos, flores e pássaros. Nada se move. Entre o
céu e a terra, sob a copa de um álamo, balança o corpo de Frei Tito,
dependurado numa corda.
Do
outro lado da vida ele encontrara a unidade perdida. Deixa registrado em seus
papéis que “é melhor morrer do que perder a vida”.
CÁLICE
Gilberto
Gil - Chico Buarque
Pai,
afasta de mim esse cálice
Pai,
afasta de mim esse cálice
Pai,
afasta de mim esse cálice
De
vinho tinto de sangue
Como
beber dessa bebida amarga
Tragar
a dor, engolir a labuta
Mesmo
calada a boca, resta o peito
Silêncio
na cidade não se escuta
De
que me vale ser filho da santa
Melhor
seria ser filho da outra
Outra
realidade menos morta
Tanta
mentira, tanta força bruta
Como
é difícil acordar calado
Se
na calada da noite eu me dano
Quero
lançar um grito desumano
NESTA HORA
Que
é uma maneira de ser escutado
Esse
silêncio todo me atordoa
Atordoado
eu permaneço atento
Na
arquibancada pra a qualquer momento
Ver
emergir o monstro da lagoa
De
muito gorda a porca já não anda
De
muito usada a faca já não corta
Como
é difícil, pai, abrir a porta
Essa
palavra presa na garganta
Esse
pileque homérico no mundo
De
que adianta ter boa vontade
Mesmo
calado o peito, resta a cuca
Dos
bêbados do centro da cidade
Talvez
o mundo não seja pequeno
Nem
seja a vida um fato consumado
Quero
inventar o meu próprio pecado
Quero
morrer do meu próprio veneno
Quero
perder de vez tua cabeça
Minha
cabeça perder teu juízo
Quero
cheirar fumaça de óleo diesel
Me
embriagar até que alguém me esqueça
12.207
Alex
Polari
Desembarcamos
os
ferros foram lançados
no
porto e nos pulsos
enquanto
fomos expulsos
da
vida e do continente
estando
sujeitos ao pulsar
de
incríveis sentimentos
e
ao sabor
das
ondas e das contingências
rondamos
em redor
das
continências dos guardas.
Depois
da viagem
da
travessia e do enjoo
nos
colocaram em uma sala
tiraram
nossa roupa
nos
revistaram, nos vestiram
nos
revestiram de oco
e
fizeram a chamada.
Ganhei
um número de registro
e
por um instante
perdi
as esperanças.
PESADELO
Maurício
Tapajós – Paulo César Pinheiro
Quando
o muro separa
Uma
ponte une
Se
a vingança encara
O
remorso pune
Você
vem, me agarra
Alguém
vem, me solta
Você
vai na marra
Ela
um dia volta
E
se a força é sua, ela um dia é nossa
Olha
o muro, olha a ponte
Olha
o dia de ontem chegando
Que
medo você tem de nós
Olha
aí
Você
corta um verso, eu escrevo outro
Você
me prende vivo, eu escapo morto
De
repente, olha eu de novo
Perturbando
a paz, exigindo o troco
Vamos
por aí
Eu
e meu cachorro
Olha
um verso, olha o outro
Olha
o velho, olha o moço chegando
Que
medo você tem de nós
Olha
aí
O
muro caiu, olha a ponte
Da
liberdade guardiã
O
braço do Cristo horizonte
Abraça
o dia de amanhã
Olha
aí
DEPOIMENTO
Ignácio
de Loyola Brandão
/
tomando a lápis, apressadamente /
“Puseram um fio em minha língua e
minha boca explodiu e se encheu de uma coisa de gosto muito ruim e essa coisa
queria descer pela minha garganta e me sufocar e era um fogo só e cinza e merda
e sangue e terra e dentes partidos tudo de uma vez. Você vai conhecer o
inferno, me disse o tenente, sargento, capitão, não sei o quê. E não pense que
sai vivo, porque nós vamos te arrebentar, não vai ficar um osso inteiro, pode
se preparar. Era de noite, me deixaram numa cela fria, de tijolos, cheia de
baratas e formigas, não sei de onde vinham aquelas formigas. Dormi no chão,
quer dizer, não dormi, porque fiquei pensando no que ia me acontecer no dia
seguinte. (...) “
JOGOS FLORAIS
Cacaso
Minha
terra tem palmeiras
onde
canta o tico-tico.
Enquanto
isso o sabiá
vive
comendo o meu fubá.
Ficou
moderno o Brasil
ficou
moderno o milagre:
a
água já não vira vinho,
vira
direto vinagre.
(...)
Sophia
de Mello Breyner Andresen
Nesta
hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo
aquela que é importante neste dia em que se invoca o povo
Pois
é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E
lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade
Meia
verdade é como habitar meio quarto
Ganhar
meio salário
Como
só ter direito
A
metade da vida
O
demagogo diz da verdade a metade
E
o resto joga com habilidade
Porque
pensa que o povo só pensa metade
Porque
pensa que o povo não percebe nem sabe
A
verdade não é uma especialidade
Para
especializados clérigos letrados
Não
basta gritar povo é preciso expor
Partir
do olhar da mão e da razão
Partir
da limpidez do elementar
Como
quem parte do sol do mar do ar
Como
quem parte da terra onde os homens estão
Para
construir o canto do terrestre
—
Sob o ausente olhar silente de atenção —
Para
construir a festa do terrestre
Na
nudez de alegria que nos veste
PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI
DAS FLORES
(Caminhando)
Geraldo
Vandré
Caminhando
e cantando e seguindo a canção
Somos
todos iguais braços dados ou não
Nas
escolas nas ruas, campos, construções
Caminhando
e cantando e seguindo a canção
Vem,
vamos embora, que esperar não é saber
Quem
sabe faz a hora, não espera acontecer
Pelos
campos há fome em grandes plantações
Pelas
ruas marchando indecisos cordões
Ainda
fazem da flor seu mais forte refrão
E
acreditam nas flores vencendo o canhão
Vem,
vamos embora, que esperar não é saber
Quem
sabe faz a hora, não espera acontecer.
Há
soldados armados, amados ou não
Quase
todos perdidos de armas na mão
Nos
quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De
morrer pela pátria e viver sem razão
Vem,
vamos embora, que esperar não é saber,
Quem
sabe faz a hora, não espera acontecer.
Nas
escolas, nas ruas, campos, construções
Somos
todos soldados, armados ou não
Caminhando
e cantando e seguindo a canção
Somos
todos iguais braços dados ou não
Os
amores na mente, as flores no chão
A
certeza na frente, a história na mão
Caminhando
e cantando e seguindo a canção
Aprendendo
e ensinando uma nova lição
Vem,
vamos embora, que esperar não é saber
Quem
sabe faz a hora, não espera acontecer
O BÊBADO E A EQUILIBRISTA
João
Bosco / Aldir Blanc
Caía
a tarde feito um viaduto
E
um bêbado trajando luto
Me
lembrou Carlitos
A
lua
Tal
qual a dona do bordel
Pedia
a cada estrela fria
Um
brilho de aluguel
E
nuvens
Lá
no mata-borrão do céu
Chupavam
manchas torturadas
Que
sufoco
Louco
O
bêbado com chapéu-coco
Fazia
irreverências mil
Pra
noite do Brasil, meu Brasil
Que
sonha
Com
a volta do irmão do Henfil
Com
tanta gente que partiu
Num
rabo de foguete
Chora
A
nossa pátria, mãe gentil
Choram
Marias e Clarisses
No
solo do Brasil
Mas
sei
Que
uma dor assim pungente
Não
há de ser inutilmente
A
esperança dança
Na
corda bamba de sombrinha
E
em cada passo dessa linha
Pode
se machucar
Azar
A
esperança equilibrista
Sabe
que o show de todo artista
Tem
que continuar
Fábio, meu querido...fiquei muito comovido com sua lucidez, seu talento, sua sensibilidade em tratar de forma tão artística este horror, esta vergonha que já completou 50 anos e não amenizou, ainda, as atrocidades ou os crimes indeléveis praticados naqueles doentios anos de chumbo...nos porões da estúpida ditadura. Irretocável, como sempre e com muito brilhantismo.
ResponderExcluirMas, à guisa de compartilhamento e colaboração, não posso deixar de recordar desta postura emblemática, a seguir, até porque, trata-se de uma divindade do cancioneiro popular, que amamos com todo merecimento.
Elis Regina era uma grande pedra no sapato da ditadura. Este aspecto na história da Elis foi lembrado num trecho do “Falso Brilhante”, quando ela fica “presa” a uma barra e ajoelhada (como que sendo torturada) e canta “Agnus Sei” de maneira incisiva: “ah, como é difícil tornar-se herói / só quem tentou sabe como dói / vencer satã só com orações…” Satã era a ditadura. Vencê-la só com orações (representando as canções, livros, peças da época) não era tão fácil como poderiam imaginar aqueles que pegaram em armas e partiram para a clandestinidade.
O documento do Ministério do Exército, datado de 01.12.1971, com o assunto: Elis Regina, consiste em duas folhas de informações sobre a cantora e duas folhas anexas, na verdade, uma carta escrita à mão pela Elis, em que afirma não ter ligações com grupos de oposição política.
Esta carta decorre de uma entrevista concedida na Holanda onde teria afirmado que o Brasil, em 1969, era “governado por gorilas”. A Embaixada brasileira teria emitido uma cópia desta declaração ao SNI, o que levou Elis a um interrogatório quando de seu retorno ao Brasil. De acordo com a própria Elis, em depoimento a Regina Echeverria , em razão deste caso ela teria sido obrigada a cantar nas Olimpíadas do Exército de 1972, o que de fato fez.
O documento mostra , também, um pouco da perseguição absurda que os artistas sofriam na época, como se fossem criminosos.
Reafirmo que seu texto está primoroso, e o recado bem dadíssimo.
Beijos.
Marino, meu querido, obrigadíssimo pela visita. Pois é, Elis, além de uma cantora/intérprete perfeita, tinha uma lucidez incrível. Que mulher! Que personalidade! Valeu, meu amigo! Pois é, em "Furacão Elis", de Echeverria, há histórias interessantíssimas da nossa "Pimentinha".
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