PERTO DEMAIS DE DEUS
Chico César
Tem gente perto demais de Deus
Tem gente que não deixa Deus sozinho
E diz Deus ilumine seu caminho
E guarda Deus na cristaleira
Cristo perto dos cristais
Cristo assim perto demais
Cristo já é um de nós
Carne e osso pão e vinho
Tem gente que não deixa Deus em paz
Tem gente incapaz de viver sem Deus
E o trata como um funcionário seu
Deus me livre Deus me guarde Deus me faça a feira
Cristo dentro da carteira dez por cento rei dos reis
Cristo um conto de réis
O garçom não à videira
Essa gente é o diabo e faz da vida de Deus um inferno
CD: Chico César, Beleza Mano, MZA Music 011245-2, São Paulo, 1997.
FUNDAMENTALISTAS
Zeca Baleiro
Todo fundamentalismo é perigoso, seja quando se trata de religião, política, economia, nacionalismo ou até em temas "prosaicos" como futebol e música.
Não creio em Deus. Pelo menos não da mesma forma que um cristão ou um muçulmano. Tenho apreço pelos ritos católicos e curiosidade por vidas de santos, isso por ser um amor aprendido na infância – e amores da infância são (quase) eternos. O “Deus” que me interessa é um Deus mais “filosófico” (ou mesmo “teológico”) que um Deus santíssimo. Aí está a grande questão. A filosofia é, grosso modo, a possibilidade de relativizar as coisas, e para as religiões não há relativização possível. Ou é céu ou inferno, ou pecado ou virtude, ou Deus ou diabo, bem ou mal.
Seja como for, religião é um assunto que me interessa. E que ultimamente me preocupa. Porque noto que as religiões estão todas se tornando um tanto fundamentalistas (e não só o islamismo, como já é sabido). Todo fundamentalismo é perigoso, seja quando se trata de religião, política, economia, nacionalismo ou até em temas “prosaicos” como futebol e música (conheço alguns “fundamentalistas de mesa de bar”, aqueles sujeitos de opinião irredutível que têm a convicção dos crentes e a falta de humor dos fanáticos).
Os fundamentalistas querem a volta à barbárie, querem subtrair da humanidade todas as suas conquistas, quando o único futuro possível do mundo – se é que há um – parece ser o culto à civilidade, a busca da democracia (mesmo que esta seja uma busca utópica) e o respeito e a tolerância às escolhas dos outros. Um mundo próximo do ideal seria um mundo onde todos pudessem vivenciar seus credos e convicções sem o barulho insano e cego das urbas, sem a sanha fundamentalista dos grupos e doutrinas. Mas isso parece cada vez mais longe.
Entre os anos 60 e 70, muitos americanos se converteram ao islamismo, entre eles personalidades pop como o lutador Classius Clay e o cantor Cat Stevens. Isso ajudou bastante a difundir a doutrina islâmica mundo afora. Era charmoso, com uma certa tinta contracultural até. Naquela altura, ninguém imaginaria que a religião islâmica seria a máquina de morte em que se transformou hoje. Hoje também evangélicos às pencas, dispostos a carregar mais ovelhas para seu rebanho, invadem a internet como pragas no Egito para difundir seu pensamento moral totalitário em comentários nem sempre felizes ao pé de blogs e sites de notícias. E os católicos buscam, com a Renovação Carismática e sob o comando de um papa sem carisma, a volta dos fiéis pela espetacularização da fé através da missa-show e do sermão-palestra motivacional.
A falência das liturgias e o avanço de uma visão fundamentalista do mundo são sintomas do que Nietzsche, não por acaso um filósofo, decretou bem antes de nós, com a certeza de um crente: “Deus está morto.” Com esses questionamentos acerca da fé, me indago: estarei eu sendo um fundamentalista também?
Zeca Baleiro é cantor e compositor
Fonte: ISTOÉ (16 NOV/2011, ano 35, n 2192)