segunda-feira, 21 de novembro de 2011

MUITO PERTO!



PERTO DEMAIS DE DEUS
Chico César

Tem  gente perto demais de Deus
Tem gente que não deixa Deus sozinho
E diz Deus ilumine seu caminho
E guarda Deus na cristaleira
Cristo perto dos cristais
Cristo assim perto demais
Cristo já é um de nós
Carne e osso pão e vinho
Tem gente que não deixa Deus em paz
Tem gente incapaz de viver sem Deus
E o trata como um funcionário seu
Deus me livre Deus me guarde Deus me faça a feira
Cristo dentro da carteira dez por cento rei dos reis
Cristo um conto de réis
O garçom não à videira
Essa gente é o diabo e faz da vida de Deus um inferno

CD: Chico César, Beleza Mano, MZA Music 011245-2, São Paulo, 1997.


FUNDAMENTALISTAS
Zeca Baleiro
Todo fundamentalismo é perigoso, seja quando se trata de religião, política, economia, nacionalismo ou até em temas "prosaicos" como futebol e música.
Não creio em Deus. Pelo menos não da mesma forma que um cristão ou um muçulmano. Tenho apreço pelos ritos católicos e curiosidade por vidas de santos, isso por ser um amor aprendido na infância – e amores da infância são (quase) eternos. O “Deus” que me interessa é um Deus mais “filosófico” (ou mesmo “teológico”) que um Deus santíssimo. Aí está a grande questão. A filosofia é, grosso modo, a possibilidade de relativizar as coisas, e para as religiões não há relativização possível. Ou é céu ou inferno, ou pecado ou virtude, ou Deus ou diabo, bem ou mal.
Seja como for, religião é um assunto que me interessa. E que ultimamente me preocupa. Porque noto que as religiões estão todas se tornando um tanto fundamentalistas (e não só o islamismo, como já é sabido). Todo fundamentalismo é perigoso, seja quando se trata de religião, política, economia, nacionalismo ou até em temas “prosaicos” como futebol e música (conheço alguns “fundamentalistas de mesa de bar”, aqueles sujeitos de opinião irredutível que têm a convicção dos crentes e a falta de humor dos fanáticos).
Os fundamentalistas querem a volta à barbárie, querem subtrair da humanidade todas as suas conquistas, quando o único futuro possível do mundo – se é que há um – parece ser o culto à civilidade, a busca da democracia (mesmo que esta seja uma busca utópica) e o respeito e a tolerância às escolhas dos outros. Um mundo próximo do ideal seria um mundo onde todos pudessem vivenciar seus credos e convicções sem o barulho insano e cego das urbas, sem a sanha fundamentalista dos grupos e doutrinas. Mas isso parece cada vez mais longe.
Entre os anos 60 e 70, muitos americanos se converteram ao islamismo, entre eles personalidades pop como o lutador Classius Clay e o cantor Cat Stevens. Isso ajudou bastante a difundir a doutrina islâmica mundo afora. Era charmoso, com uma certa tinta contracultural até. Naquela altura, ninguém imaginaria que a religião islâmica seria a máquina de morte em que se transformou hoje. Hoje também evangélicos às pencas, dispostos a carregar mais ovelhas para seu rebanho, invadem a internet como pragas no Egito para difundir seu pensamento moral totalitário em comentários nem sempre felizes ao pé de blogs e sites de notícias. E os católicos buscam, com a Renovação Carismática e sob o comando de um papa sem carisma, a volta dos fiéis pela espetacularização da fé através da missa-show e do sermão-palestra motivacional.
A falência das liturgias e o avanço de uma visão fundamentalista do mundo são sintomas do que Nietzsche, não por acaso um filósofo, decretou bem antes de nós, com a certeza de um crente: “Deus está morto.” Com esses questionamentos acerca da fé, me indago: estarei eu sendo um fundamentalista também?
Zeca Baleiro é cantor e compositor
Fonte: ISTOÉ (16 NOV/2011, ano 35, n 2192)

domingo, 13 de novembro de 2011

FICA BEM COM DEUS QUEM SABE CANTAR




FICA BEM COM DEUS QUEM SABE CANTAR
Por Fábio Brito

Está chegando a hora de assistir a mais um show de Ithamara Koorax. Ansiedade é palavra bem limitada para descrever o que já começo a sentir. Tomara que, mais uma vez, nossa diva cante Fotografia. Explico por quê. Certa vez, no sofisticado Sofitel, um hotel de Copacabana, quando ela anunciou que cantaria essa maravilha jobiniana, não me contive: imediatamente, olhei para o mar, e a lua estava, como sempre, soberana. Que beleza! Foi um dos momentos mais bonitos de todos os shows a que já assisti: “Eu, você, nós dois / sozinhos neste bar à meia-luz / E uma grande lua saiu do mar...”. Eu não precisava de mais nada naquele momento: uma canção de Jobim, a voz da Ithamara e uma boa companhia.
Sempre digo – afirmo categoricamente! – que, depois de um show da Ithamara, minha vida muda bastante. Muda muito! Porque associar talento e bom gosto na escolha do repertório é algo raro, dificílimo. Há muitos por aí que até têm vocação (ou ‘faro’) para a escolha de repertório, mas lhes falta talento para o canto. Há ainda os que até sabem cantar, mas cantam uma “musiquinha” que é nada. E, por fim, há os que não sabem cantar (mal sopram ‘no’ microfone) e têm um repertório que é uma indigência só. Aí é uma “desgraça total”! Claro que, para esse povo, os estúdios, ultimamente, dispõem de aparelhos e mais aparelhos que “afinam” a voz e fazem outros milagres. Com essas facilidades todas, conseguem chegar ao tal “sucesso” e vendem à beça. No entanto, graças aos deuses, assim como o mercado põe alguém no topo de forma meteórica, também o condena ao desaparecimento com a mesma velocidade. Isso é um alívio, embora algumas “criaturas” estejam demorando muito para sair de circulação. Até quando, meu Deus?!  
É bom reafirmamos: não se constroem carreiras sólidas de repente. Há que se ter, além de muito talento, disposição para pôr o pé na estrada. É! Sem se ganhar o mundo, é difícil, aqui no Brasil, um cantor talentoso sobreviver somente de seu trabalho. Ithamara é prova de que o excelente intérprete brasileiro é muito mais valorizado fora daqui. Sobre isso, vale transcrever um fragmento de “Meus discos e nada mais – memórias de um DJ na música brasileira”*, de Zé Pedro: “(...) Os santos de casa não fazem milagres por aqui. Mas o famoso jeitinho south american way de ser sempre resolveu esta questão: se não rola por aqui, bye bye, Brasil. Auf wiedersehen. O samba da minha terra, quando se canta lá fora, todo mundo bole. Ithamara sabe disso. (...) Seus discos são de um preciosismo que a coloca em situação de igualdade com qualquer cantora do mundo. Por isso virou paixão mundial (...) Ithamara Koorax tem seguido em frente. Seus álbuns saem com frequência lá fora. Uma discografia impecável. Músicos do mundo inteiro trabalham com ela”. Dizer mais o quê?
 Há sempre muito o que se dizer sobre essa estupenda intérprete brasileira e do mundo. Dizer, por exemplo, que, atualmente, não há intérprete no mundo cuja voz chegue perto da de Ithamara. Ela é a melhor e estamos conversados. Basta ouvi-la para se constatar o que estou dizendo. Preciso ainda dizer que Ithamara não sai daqui de casa e de minha vida. No carro, por exemplo, ouço-a direto, mas tenho sempre o cuidado de não deixar qualquer rádio sintonizada. Desprogramei o rádio (os ouvidos sempre estiveram desprogramados para as músicas ruins). Se, porventura, entre um CD e outro, eu tiver de ser submetido a algum som, prefiro ouvir um chiado qualquer a ter de suportar alguma “deusa do axé” ou algum “sertanejo universitário”. Deus me livre! Tenho engulhos só de pensar que, algum dia, eu possa ser torturado com isso que, hoje, empesteia as rádios brasileiras. Ah, Ithamara, “se todos fossem iguais a você... que maravilha viver”.   

*Pedro, Zé. Meus discos e nada mais: memórias de um DJ na música brasileira. São Paulo: Jaboticaba, 2007.

           
            A ALMA BRASILEIRA
            Por Armando Nogueira

           No fim de semana, fui ao show musical da cantora Ithamara Koorax, por sinal, um portento de intérprete. O canto de Ithamara é precedido de um texto, lido em off, dedicando o espetáculo "a todos os artistas que nunca aceitaram barreiras ou limites à sua arte". O show encerra uma bela exaltação aos artistas brasileiros que, por falta de estímulo doméstico, acabam tendo que se exilar, levando seu talento ao resto do mundo, que os acolhe com entusiasmo.
          Quando terminou o maravilhoso desempenho da cantora - realmente, um fenômeno vocal - eu pensava na diferença de sorte entre o artista e o jogador de futebol. Quem é bom de bola e vai pro exterior é permanentemente louvado como legítimo representante da cultura popular brasileira.
Já o artista, pobre dele, é absolutamente esquecido; quando não é hostilizado, discriminado, tido como trânsfuga, apátrida.
          Deslumbrado com o talento de Ithamara Koorax, eu a via no palco com o santo orgulho de sabê-la celebrada pela revista americana Down Beat como uma das quatro melhores cantoras de jazz do mundo, ao lado de Diana Krall, Cassandra Wilson e Dianne Reeves. De jazz, diz a conceituada publicação; de MPB há de dizer quem, como eu, ouviu Ithamara cantando Tom, os irmãos Valle, Jorge Benjor e tantos outros compositores da MPB. Emociona ouvir cantar Ithamara.
          Se é verdade que cada música tem sua alma, essa admirável cantora tem o dom de criar uma voz que parece ter nascido com a alma da própria canção.
Nunca é demais repetir que os artistas que se apresentam no exterior não mostram apenas a beleza de sua arte pessoal. A imprensa especializada talvez ainda não tenha parado pra pensar que eles expressam, lá fora, em cenários distantes, a própria alma do povo brasileiro. São tão heróicos quanto os idolatrados craques do nosso futebol. Quando Ithamara canta é mais um gol do Brasil.
          
           Fontes:
           "O Estado de São Paulo", 21 de maio de 2003
           http://www.koorax.com/start.htm

NAO DOU SOPA



Minha homenagem a Waly Salomão.

OLHO DE LINCE
Jards Macalé - Waly Salomão

Quem fala que sou esquisito hermético
É porque não dou sopa estou sempre elétrico
Nada que se aproxima nada me é estranho
Fulano sicrano beltrano
Seja pedra seja planta seja bicho seja humano
Quando quero saber o que ocorre à minha volta
Ligo a tomada abro a janela escancaro a porta
Experimento tudo nunca me iludo
Quero crer no que vem por aí beco escuro
Me iludo passado presente futuro
Reviro na palma da mão o dado
Presente futuro passado
Tudo sentir de todas as maneiras
é chave de ouro do meu jogo
É fósforo que acende o fogo
de minha mais alta razão
Na sequência de diferentes naipes
quem fala de mim tem paixão

CD: "Olho de lince". Jards Macalé - parcerias com Waly Salomão, Real grandeza, Biscoito Fino, BF 595, Rio de Janeiro, 2005.

TALISMÃ
Caetano Veloso / Waly Salomão

Minha boca saliva porque eu tenho fome
E essa fome é uma gula voraz que me traz cativa
Atrás do genuíno grão da alegria
Que destrói o tédio e restaura o sol
No coração do meu corpo um porta-jóia existe
Dentro dele um talismã sem par
Que anula o mesquinho, o feio e o triste
Mas que nunca resiste a quem bem o souber burilar
Sim, quem dentre todos vocês
Minha sorte quer comigo gozar
Minha sede não é qualquer copo d'água que mata
Essa sede é uma sede
Que é sede do próprio mar
Essa sede é uma sede que só se desata
Se minha língua passeia
Sobre a pele bruta da areia
Sonho colher a flor da maré cheia, vasta
Eu mergulho e não é ilusão
Não, não é ilusão
Pois da flor de coral trago no colo a marca
Quando volto triunfante com a fronte
Coroada de sargaço e sal
Sim, quem dentre todos vocês
Qer comigo minha sorte gozar

CD: "Talismã". Maria Bethânia, Talismã, Universal Music, 5101112, Rio de Janeiro, 1980.