sábado, 31 de março de 2012

UM ADEUS AO BARTÔ




“OLHA EU... PICOLÉ!”
 (Para o Bartolomeu Campos de Queirós)
 Por Fábio Brito

Amigo Bartô:
           Você não sabe como foi difícil saber de sua partida. Você não faz ideia! Sabe aquele travo bem amargo que fica na garganta da gente durante dias e dias? Pois é, ele está aqui até agora. Ao que tudo indica, ele não quer se mandar. Não está fácil, amigo. O choro tem chegado várias vezes.
Eu nunca lhe disse, mas seus escritos sempre foram para mim algo semelhante àquelas lasquinhas de rapadura enroladas em retalho de pano alvejado que a mãe do menino Antônio (lá do Indez, lembra?) dava para ele. Enquanto o garotinho “chupava aquela trouxinha com cara de quem estava adoçando a vida” - e como estava! - o tempo transcorria sem choro. E são muitas de suas “trouxinhas de rapadura” que, até hoje, ajudam a adoçar – e muito! – a vida de todos nós, que, vez ou outra, ‘se’ mostra amarga ‘pra’ caramba. E o melhor de tudo: muitos de meus alunos/amigos já estão querendo essas “trouxinhas” todos os dias. Pedem insistentemente. Porque não quero choro em meus ouvidos, dou logo: tomem, crianças! E elas param mesmo de chorar! Ê... bálsamo!
Não sei se você lembra, mas, na última Bienal do Livro, no Rio, em setembro de 2011,  muitos desses meus alunos foram comigo fazer um carinho em você, 'beber' suas palavras, pedir seu autógrafo, tirar fotografias. É, meu amigo, fizemos a “marcha da tietagem”, como 'nos' ensinou o Gil. Houve fila no estande, o da CosacNaify, em que você autografava o Vermelho amargo. Rumamos para lá logo depois de ficarmos em êxtase com o que você disse no Café Literário. Não lembra? Preocupe-se não. Lembramos tudinho... “tim-tim-de-cor-por-tim-tim-e-salteado”.
Entre os muitos ensinamentos que vieram de tudo o que você disse nesse Café, está este: “Quem sabe das coisas escreve livro didático. O que move a literatura é a dúvida”. Poxa! Os meninos, meus alunos/amigos, e eu tínhamos inúmeras dúvidas. Sempre tivemos! Por quê? Porque são muitas as metáforas. Porque o mundo é a grande metáfora. E não é fácil – você sabe disso! – chegar ao que elas, as metáforas, revelam. Mas, como você mesmo afirmou, “a metáfora é onde posso me esconder e pôr asas no leitor. Por isso que o leitor está sempre no espaço da liberdade”. Meu Deus! Você não precisava ter dito mais nada, viu? Só isso aí já valeu a visita à Bienal.
 Na volta para casa (e como é chato voltar depois de um encontro como o nosso!), lembrei novamente o Indez, as imagens que seus livros me trazem, como os detalhes da casa do menino Antônio. Meu Deus! O chão de tábuas corridas, os remendos com pedaços de latas de marmelada Colombo e as andorinhas de louça que voavam pela parede... Essa é uma casa em que todos nós, sonhando ou acordados, já estivemos, já moramos. Todas as suas narrativas são assim: carregadinhas de imagens do passado, do presente e do futuro de todos nós. São histórias dos "monstros vestidos de algodão, das pipas pelo ar, dos passeios no mato"... Sabe, amigo, sempre que as leio, lembro-me dos vendedores de picolé de minha infância, que gritavam "com toda a força que havia nos pulmões": "Olha eu... picolé!". Eles passavam quase diariamente por minha rua. Também não posso esquecer o vendedor de "quebra-queixo": com sua bicicleta (acho que a marca era Philips), ele era uma tentação para a criançada. Uma caixa de madeira à frente do guidom - com um vidro e um pano bem branquinho - era a alegria de todos. Lembro-me de todos os detalhes: da "espátula" que ele usava para cortar o doce (que era bem duro!), dos pedacinhos de coco, do papel em que ele punha o quebra-queixo, da bicicleta... Está tudo aqui em mim. Impossível apagar tudo isso. Com seus textos, então, amigo, vem tudo à tona... Pois é, parafraseando um fragmento do seu Escritura, a infância sempre 'me' visita. Mas ela não é o paraíso perdido?!  É nada!
 Amigo nosso, desde que você resolveu 'se' mandar (e cedo à beça, diga-se de passagem), estou com medo de que os corações de muitas crianças não tomem mais sol. Você dirá que não há problemas. Os livros estão aí e vão ficar para sempre (vai o homem, fica a obra, não é mesmo?). Mas a obra poderia aumentar bastante se o homem ficasse mais tempo entre nós. Isso não se faz, amigo. Mas como evitar certas rasteiras, não é mesmo? Tomamos uma! E das grandes.
             Tudo bem! Mesmo agora, depois de sua ida, você continua bem aqui, do lado esquerdo do peito, como nos ensinou o Brant por meio das vozes do Milton, da Elis... Exatamente quando o conhecemos pessoalmente, você resolveu ‘nos’ deixar tristes, cabisbaixos. Pois é, seu coração, “esse menino de rua que não quer saber de banho na hora certa nem refeição equilibrada”, como ensinou nossa Lya Luft, decidiu dar um tempo. Mas tinha de ser agora? Volte, amigo, da forma que achar melhor. Traga de volta para minha rua o "moço do quebra-queixo" e todos os vendedores de picolé. Traga de volta os vizinhos de minha infância que, aos domingos, punham caixas de som nas varandas. Traga de volta o NATAL e o ANO NOVO com meus avós e com todos os meus tios e primos. A infância de todos que o conheceram não pode ficar esquecida por aí, jogada em qualquer canto. Precisamos ouvir novamente, bem alto: "Olha eu... picolé!" Cá entre nós: só você pode fazer esse milagre... Só voce pode evitar nosso abandono.
          Você, agora, passeia em nosso silêncio, amigo. Por isso, não pude evitar: lembrei-me do Para ler em silêncio? É tanta beleza... que transborda: "Um dia, quando já escrevia, a ausência de minha mãe veio ocupar o vazio da casa. Em minha casa vivíamos apenas eu e a memória de outras presenças. Criei força, interrompi o trabalho e me perguntei: - Por onde andará minha mãe agora? Com voz travada e rouca, levantei os olhos e me respondi: - Por certo pisa em estrelas, voa entre nuvens, se esconde muito depois da lembrança e não voltará nunca. Ela passeia em meu silêncio, mas irei encontrá-la um dia, também em silêncio. Ele é o fim e o início de tudo que há".
          Agora, onde você está? Certamente, pisando estrelas, voando entre nuvens, mas muito presente. Sempre!
           Um abraço gigante de todos nós... que estamos aqui, à espera de um sinal seu. 
          
          P.S.: a flor é do jardim aqui de casa (o mesmo de minha infância). Ela é para você, amigo.

PROFUNDAMENTE
Manuel Bandeira
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Com um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente
***
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
           Ref.: BANDEIRA, Manuel. Literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1981. 

ACALANTO
Edu Lobo - Chico Buarque
De "O corsário do rei"
É tão cedo, meu irmão
Abre os olhos, dorme não
Espalha os meus soldados
Estraga os meus brinquedos
Pode me odiar
Nunca mais olhar pra mim
Mas não faz
Não faz mais
Assim

Tão cedo, meu irmão
Põe a mão na minha mão
Pode fechar meus olhos
Alisa os meus cabelos
E a quem perguntar
Deus, que foi que aconteceu
Vou jurar que o teu sangue
É meu
Eu vou rasgar
Meu coração
Pra costurar o teu
Vou te soprar
Esta canção:
O meu irmão
morreu
Ref.: HOLLANDA, Chico Buarque. Letra e música 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

ENTÃO VALE A PENA
Gilberto Gil

Se a morte faz parte da vida
E se vale a pena viver
Então morrer vale a pena
Se a gente teve o tempo para crescer
Crescer para viver de fato
O ato de amar e sofrer
Se a gente teve esse tempo
Então vale a pena morrer

Quem acordou no dia
Adormeceu na noite
Sorriu cada alegria sua
Quem andou pela rua
Atravessou a ponte
Pediu bênção à dindinha Lua
Não teme a sua sorte
Abraça a sua morte
Como a uma linda ninfa nua

Fonte: GIL, Gilberto. Todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.


O TEMPO

O despertador é um objeto abjeto.
Nele mora o Tempo. O Tempo não pode viver sem nós,
                                                                     para não parar.
E todas as manhãs nos chama freneticamente como um
velho paralítico a tocar a campainha atroz.
Nós
é que vamos empurrando, dia a dia, sua cadeira de rodas.
Nós, os seus escravos.
Só os poetas
os amantes
os bêbados
podem fugir
por instantes
ao Velho... Mas que raiva impotente dá no Velho
quando encontra crianças a brincar de roda
e não há outro jeito senão desviar delas a sua cadeira
                                                                             de rodas!
Porque elas, simplesmente, o ignoram...

Fonte: QUINTANA, Mario. Nova antologia poética. Rio de Janeiro: Globo, 1985.



domingo, 18 de março de 2012

O IMPÉRIO DO NADA




DEFEITO 13: BURRICE
Tom Zé

Veja que beleza!
Refrão:
Em diversas cores
Veja que beleza
Em vários sabores
A burrice está na mesa

Veja que beleza!
Refinada, poliglota,
Anda na direita,
Anda na esquerda,
Mas a consagração
Chegou com o advento
Da televisão
Da televisão
Da televisão
Refrão:
Ensinada nas escolas
Universidades e principalmente
Nas academias de louros e letras
Ela está presente
Ela está presente
(Discurso político)
Senhoras e senhores,
Senhoras e senhores,
Se neste momento solene
 Não lhes proponho um
 Feriado comemorativo para
A sacrossanta glória da burrice
 Nacional, é porque todos os dias,
Graças a Deus, do Oiapoque ao Chuí, ela já é
Gloriosamente festejada.
Gloriosamente festejada.

Fonte (CD): Tom Zé. Com defeito de fabricação, Trama, T500/054-2, 1998.


ALTOS E BAIXOS
Lula Queiroga - Yuri Queiroga
(...)
Eu tô na crista da onda
Eu tô fazendo sucesso
Tô no topo do Cristo
Sou o motor do progresso
Topo tudo pra chegar no primeiro lugar
Que eu nem sei onde é, mas deve
Ser melhor do que aqui
(...)

Fonte (CD): Roberta Sá, Segunda pele, Universal, 60252776147, 2011.


O IMPÉRIO DO NADA
Por Fábio Brito
Li, dias atrás, em um jornal de grande circulação, que os números de uma canção (?) cujo título prefiro nem dizer (só para não ter de bater na madeira três, dez, quinhentas vezes!) estão chegando à estratosfera. Segundo estimativas do mercado, foram mais de dois milhões de “downloads” pagos dessa canção (?) mundo afora, o que a situa em primeiríssimo lugar no “ranking” de vendas digitais em todo o mundo. Em se tratando de direitos autorais, prefiro nem comentar o valor – espantoso! – que vem sendo movimentado devido a execuções dessa tal “música” (?) em festas, programas de TV, rádio e “shows”. É deprimente constatar, mas “taí” uma indústria - a da ausência total de bom gosto e qualidade – que tem seu crescimento alimentado pela ignorância coletiva. Pois é, a moda, hoje, é não fazer, e não ser, “nada”, absolutamente “nada”, e, exatamente por isso, chegar ao sucesso. Pior: não se trata de um “sucessinho”, mas de um sucesso inacreditável! Que mundo torto, meu Deus!
Ainda no quesito música, que tal um exercício para a memória? Quem, entre nossos grandes nomes (importantíssimos mesmo!), vende muito hoje? Ninguém! Grandes artistas migraram para gravadoras pequenas (ou independentes), que propõem, acima de tudo, respeito ao artista e ao público. Quantas canções com qualidade incontestável “emplacam”, hoje em dia, em rádios ou em programas de TV? Nenhuma! Qualquer pessoa que tentar sintonizar uma rádio (qualquer rádio) constatará o que estou dizendo: o que impera é uma indigência de dar dó: da melodia, passando pela letra, indo até os arranjos e à interpretação. É tudo muito ruim. A falta de qualidade, hoje, está tão assustadora, que o que “rola” por aí em termos musicais é “inclassificável”. É isso mesmo. Houve um tempo em que conseguíamos estabelecer alguns critérios para a classificação de muitos produtos (vou chamar certo tipo de “música” de produto) musicais: havia o horroroso, o péssimo, o muito ruim, o ruim e o regular. Atualmente, essa classificação é impossível. Só existe o assustador. O mau gosto extrapolou! Esse ruim extremado é, para mim, SOD, ou seja, "sem origem definida. A música que, nos tempos atuais,  impera no Brasil (e no mundo, arrisco dizer) é de origem esquisita, estranha, problemática e inexplicável. Ou ela teria surgido por “combustão espontânea”? Vai saber! E a "grana" que brota dessa “música” é altíssima. Que indústria! 
E por falar em dinheiro, "mire", ainda na seara música, os gênios e veja quantos ficaram ricos. Nenhum! Só para citar três, vá atrás das histórias de Cartola, Nelson Cavaquinho e Pixinguinha, por exemplo. Todos tiveram vida modesta até o fim. E deveriam ter ficado riquíssimos! Por quê? Só pela qualidade da obra que deixaram, mas a lógica do mercado, infelizmente, não é essa. Os três só fizeram obras-primas. Ou alguém duvida de que As rosas não falam, O mundo é um moinho, A flor e o espinho, Folhas secas, Carinhoso e Rosa, só para citar algumas, estejam entre as canções mais importantes de todos os tempos? Só uma dessas canções já vale por toda a obra (?) de qualquer uma dessas figurinhas que andam "bombando" por aí, vendendo horrores, enchendo estádios e torrando minha paciência. É fácil constatar a riqueza e a beleza da obra desses três. "Tire o seu sorriso do caminho / que eu quero passar com a minha dor" (Nelson Cavaquinho, Alcides Caminha e Guilherme de Brito), por exemplo, estão entre os versos mais bonitos do cancioneiro popular de todos os tempos. O que é bom não passa.  
Pois é, e ando notando que não só na música, mas em muitas outras áreas, os “sem talento” se destacam... e muito! A TV, por exemplo, tem sido, nos últimos anos, um celeiro de “nadas”. Querem conhecer alguns “nadas” da TV? Simples. Olhem os créditos nas aberturas das novelas. Muita gente, em pouco tempo, torna-se um mito, “o nada que é tudo”, segundo Pessoa. Dia desses, estive observando a abertura de uma dessas novelas. Meu Deus! Com raras exceções, os nomes que têm mais destaque são, exatamente, os das pessoas que não sabem nada de interpretação. "Apareceram" em uma ou duas novelas - ou nalgum "programinha-xarope" - e já são estrelas da emissora. São as tais carinhas bonitas: modelos, modelos, modelos... Nos créditos, atores consagradíssimos, com uma história longa e importante, têm seus nomes beeeeem depois dos "nominhos" de todas as carinhas bonitas. Que inversão! Ah! E essas carinhas bonitas também já chegaram ao teatro, que parecia, há um tempo, lugar sagrado e, portanto, fora do alcance desse povo. Pois é, muitos estão lá, munidos de cara, coragem e ausência de talento. A falta de escrúpulos dessas pessoas parece não ter limites. Sabem que não “dão para a coisa”, mas continuam insistindo e tendo muito público. Amor à arte é o que menos importa.   
A literatura também não fica atrás no que diz respeito à "corrida do ouro", ou à corrida ao garimpo. O que vende muito é, obviamente, o que tem uma qualidade 'pra' lá de duvidosa. Basta ir a uma livraria (ou acessar algum "site") para ver as obras que estão em destaque: autoajuda e variações sobre o mesmo tema. Todos os dias, são lançadas bobagens e mais bobagens que vendem à beça. Nas livrarias físicas, elas estão nas prateleiras mais acessíveis ou nas vitrinas; nas virtuais, saltam à nossa frente. E aquelas obras vigorosas, que mudam nossa vida e que procuramos com avidez, estão bem "escondidas". Geralmente, em alguma estante empoeirada que fica lá no fundo da loja. Difícil encontrá-las (a estante e as obras). Quando decido sair à procura de algum bom livro, reservo boa parte do dia. Ah! E não posso contar com os vendedores, que não têm nem as mínimas informações acerca de obras e autores. Só para ilustrar: certa vez, eu estava à procura de alguns livros do Mia Couto. Que sacrifício! O martírio começou no momento em que eu disse o nome do autor à vendedora, que não conseguia digitar as oito letras: MIA COUTO. Pedi-lhe licença e digitei. Depois, mesmo não tendo sido escoteiro, fiz minha boa ação do dia: sugeri que ela lesse alguma obra desse escritor. Se minha sugestão surtiu algum efeito, salvei uma alma.   
E por falar em "alma", até que percebo a presença de espíritos de baixa frequência (e sem um mínimo de talento) que estão "reinando" por aí (dizem que são "artistas"). Sei que eles existem, olho-os, mas não os "vejo". Sempre soube como ser indiferente a algo que não me diz nada, que não me toca, que não me comove. Em compensação, choro "um rio" quando tenho acesso ao belo trabalho dos verdadeiros artistas. E os verdadeiros artistas sempre 'me' comovem, sempre 'me' emocionam. Junto com o mestre Martinho, também choro pela beleza... e muito!

          SOFISTICAÇÃO
          Zeca Baleiro

          A ideia de sofisticação perpassa toda a vida moderna. Em tudo hoje há esse ideal de sofisticação. Pois quando você recebe um telefonema de um operador de telemarketing e ele lhe avisa que “vai estar lhe enviando a fatura, etc.”, ele está imaginando ser mais sofisticado do que se lhe dissesse simplesmente “vou lhe enviar a fatura...”. Quando o atendente da lanchonete ou da loja se aproxima e diz “meu nome é Carlos, estou aqui para ajudá-lo no que precisar”, é sofisticado o que ele pretende ser. Quando o dono da casa de galetos a batiza de “Galeteria”, é sofisticação o que ele quer sugerir com esse nome. Que suburbano seria se pintasse na fachada “vende-se (sic) galetos”, não?
          Sim, quase nunca é um ímpeto natural, espontâneo. Há um treino para tornar os prestadores de serviço gentis e, mais que gentis, “sofisticados”. Cardápios de restaurantes são também um bom termômetro desta busca desenfreada (e nem sempre honesta) pelo ideal de sofisticação e finesse. Não basta descrever o prato como ele de fato é, há que dourar a pílula, digo, a receita. Não basta ser um filé-mignon, não, muito básico. Tem que ser um filé orgânico maturado em vinha de alhos hidropônicos colhidos durante a primavera (de preferência por crianças africanas, para que, além de sofisticado, tenhamos um toque humanitário também). A salada também não pode ter um simples tomate plantado em Atibaia. Não. Tem que ser um tomate especial, geneticamente transformado, irrigado por águas da serra, plantado em solo adubado com argila indiana, etc., etc., etc.
          Também na seara da indústria cultural, há alguns pequenos truques de transformar o “simples” em “chique”. Quando a música dita sertaneja surgiu com toda força no final dos anos 80, seus ícones exibiam visual pop ou rock-n-roll. Não parecia ser mera coincidência a semelhança entre os cabelos de duplas como Chitãozinho e Xororó com os cabelos de Siouxsie and The Banshees e outras bandas new wave dessa década.
          A diva caipira Inezita Barroso declarou, em recente entrevista, que o rótulo sertanejo foi adotado por conta da vergonha que as duplas tinham de assumir o termo “caipira”, mais genuíno, diz ela. “Sertanejo remete mais ao Nordeste que ao interior de São Paulo. Ninguém fala ‘vou pro sertão de Jundiaí!’’’. Grande Inezita!
          Depois houve o tempo do forró universitário, febre que assolou o Brasil, especialmente São Paulo. Mais um truque previsível, afinal o forró estava para sempre associado à rudeza nordestina, era música de “baiano”, coisa de “paraíba”, não era música de bacana. Mas eis que um gênio marqueteiro qualquer (há muitos por aí), em sua oficina de truques geniais, deve ter pensado: “Se colarmos uma palavra chique à palavra forró, hummm, deixe-me pensar: eureka! ‘Forró universitário’, claro!”. E assim a cruza de Duda Mendonça com André Midani fez o seu golaço.
          Há poucos anos, com o surgimento de novas duplas, nem tão “sertanejas” assim, tomou-se emprestada a alcunha e assim surgiu o “sertanejo universitário”, nova febre musical que hoje domina a cena nos quatro cantos do País. Espera-se para breve o “pagode universitário”, a “gafieira acadêmica” e o “brega de vanguarda”, quem sabe. 


Fonte: ISTOÉ 2204 8-2-2012





DESENGANOS DA VIDA, METAFORICAMENTE
Gregório de Matos

É a vaidade, Fábio, nesta vida,
Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.

É planta, que de abril favorecida,
Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.

É nau enfim, que em breve ligeireza,
Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias apresta, alentos preza:

Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?

(MATTOS, Gregório de. In Cândido & Castelo, Presença..., cit., p. 73)


SHOW BIZ
Chico Buarque - Edu Lobo
(Do musical O corsário do rei, 1985)

Ari-Stocrata, Senhor de Engenho
Baronete e Magnata
Puro verniz
Motivo: concordata
Quer embarcar no tal do show biz


Inês-Gotável, dama da corte
Com curriculum notável
Corpo de miss
Idade incalculável
Quer embarcar no tal do show biz


Precisa-se de artistas, deu até no jornal
Vão fazer os testes pro maior musical
Meu pai é influente
Meu tio é coronel
Meu sogro é presidente
Ninguém leva o meu papel
O meu expediente
Prossegue no motel
Eu dou para o gerente
Ninguém leva o meu papel


Celi-Batária
De bons costumes mui zelosa comissária
Zero quadris
Um pouco solitária
Quer embarcar no tal do show biz


Ator-Mentado
Peri-Clitantemente
Eli-Minado
Cantarinho, dançatriz
Quer embarcar no tal do show biz


Fonte: HOLLANDA, Chico Buarque de. Letra e música 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

  
BLUES DA PIEDADE
Frejat - Cazuza

Agora eu vou cantar pros miseráveis
Que vagam  pelo mundo derrotados
Pra essas sementes mal plantadas
Que já nascem com cara de abortadas


Pras pessoas de alma bem pequena
Remoendo pequenos problemas
Querendo sempre aquilo que não têm


Pra quem vê a luz
Mas não ilumina suas minicertezas
Vive contando dinheiro
E não muda quando é lua cheia


Pra quem não sabe amar
Fica esperando
Alguém que caiba no seu sonho
Como varizes que vão aumentando
Como insetos em volta da lâmpada


Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem


Quero cantar só para as pessoas fracas
Que tão no mundo e perderam a viagem
Quero cantar o blues
Com o pastor e o bumbo na praça


Vamos pedir piedade
Pois há um incêndio sob a chuva rala
Somos iguais em desgraça
Vamos cantar o blues da piedade


Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem

 Fonte (CD): Cazuza, Ideologia, PolyGram, 532600-2, 1996.

quinta-feira, 1 de março de 2012

MAU-OLHADO


REZA 
Rita Lee 

Deus me proteja da sua inveja
Deus me defenda da sua macumba
Deus me salve da sua praga
Deus me ajude da sua raiva
Deus me imunize do seu veneno
Deus me poupe do seu fim

Deus me acompanhe
Deus me ampare
Deus me levante
Deus me dê força

Deus me perdoe por querer
Que Deus me livre e guarde de você




A INVEJA, gravura do século XVI, de Sebastián de Covarrubias
Fonte: http://culturacompolitica.blogspot.com/2008/02/j-falei-aqui-sobre-o-dio-sobre-o-medo-e.html

O mau-olhado estava na própria constituição etimológica da palavra inveja. Invidere, em latim, tinha essa conotação, significava olhar enviesado, de soslaio. E olhar enviesado é ter mau-olhado - é fazer mal, causar malefícios com o olhar, projetar impulsos detrutivos em alguém. O mau-olhado, ou o olho gordo, ou olho grande, é uma das armas que a Igreja atribui ao demônio para "infectar com o mal" a quem ele olha.

VENTURA, Zuenir. Mal secreto: inveja. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998, p. 31.

           
MAU-OLHADO
Por Fábio Brito
Em 1979, Clara Nunes “estourou” nas rádios com a canção “Banho de manjericão”, de João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro: “Eu vou me banhar de manjericão / Vou sacudir a poeira do corpo batendo com a mão / E vou voltar lá pro meu congado / Pra pedir pro santo / Pra rezar quebranto / Cortar mau-olhado (...)”. Até hoje, nunca deixei de cantarolar essa canção, que virou uma espécie de “escudo” para mim. Escudo mesmo, porque a inveja – que inferno! – está por aí, “espiando” por todas as frestas. Sempre que posso, volto ao meu "congado". É preciso ficar livre de tudo o que é olho ruim. Só rezando! Por falar nisso, Rita Lee, recentemente, deu-nos - como sempre - um presentão, Reza, cuja letra é excelente. Nossa "rainha do rock" não perde o pique: é sempre criativa , surpreendente: "Deus me perdoe por querer / Que Deus me livre e guarde de você".
Nas artes, de modo geral, a inveja é tema recorrente: Mal secreto: inveja, de Zuenir Ventura, o primeiro da coleção 'Plenos pecados', é, até hoje, sucesso absoluto; Otelo, de Shakespeare, e A divina comédia, de Dante Alighieri, provam que o tema "inveja" não morre na literatura ou no teatro. No cinema, como esquecer Amadeus, a fantástica obra de Milos Forman? Nas telenovelas, de Glória Magadan a João Emanuel Carneiro, esse assunto é sempre abordado. Do texto bíblico, vem a figura de Caim, que está aí, todos os dias, entre nós, metamorfoseando-se com incrível facilidade.
Catalogada pela Igreja Católica durante o Concílio de Trento como um dos sete pecados capitais, juntamente com orgulho, ira, preguiça, avareza, gula e luxúria, a "inveja" é, disparadamente, o mais maléfico desses pecados. É imbatível. Sobre ela, posso dizer com sinceridade: a inveja é o pior dos sentimentos. Pronto! Disse o que me incomoda há tempos. Por causa dessa ‘praga’, as pessoas traem, trapaceiam, matam, ofendem, maltratam, roubam, furtam, lesam, agridem, “puxam tapetes”, destroem, pisam, esculhambam, golpeiam, sacaneiam, maldizem, blasfemam, inventam... Que alívio! Dizer isso tudo é catártico para mim.
Ih! Por 'pura' inveja, as pessoas aprontam o que nem imaginamos. Nossa mente não alcança, não 'dá conta'. Assim, o número de invejosos é bem maior do que pensamos. Nem é necessário ir muito longe para “dar de cara” com a tal inveja, que está por aí, no DNA de muita gente e rastejando em qualquer lugar. Feito cobra – lembrei-me da que está aos pés de Nossa Senhora das Graças - ela pode, a qualquer momento, subir pelas pernas de alguém. Ela pode estar camuflada sob as folhas secas do quintal de qualquer um. Com ela, todo cuidado é pouco. Ou melhor, todo cuidado é nada em se tratando de inveja e de invejosos.
Como saber, então, se estamos lidando com invejosos, uma vez que eles são bem dissimulados? O olhar “enviesado”, a meu ver, é o primeiro sinal de que há invejoso por perto. Preparemos, pois, o soro antiofídico! Esse olhar me incomoda muito. Quando a pessoa olha “com o rabo dos olhos”, de "través", não é bom sinal. Chego a ter engulhos quando penso nisso. É horrível! Encarar, para mim, é sinal de franqueza, de sinceridade. Os invejosos, porém, não encaram. Olham de esguelha, "de banda". Pensando bem, melhor assim. Se encarassem, desconfio de que o olhar seria semelhante ao das cobras que hipnotizam passarinhos. Deus me livre! 
Dizendo tudo isso, fica parecendo que somos a perfeição. Nada disso! Defeitos temos aos montes, claro! Inveja não!, mesmo que alguém insista em dizer: “Todos somos invejosos”. Sou não! Taí um sentimento do qual posso falar até com certa tranquilidade (se é que se pode falar em tranquilidade quando o assunto é ‘inveja’!). Pois é, não a tenho mesmo! De bens materiais, então, que figuram na lista de qualquer invejoso, estou longe. Sem essa de fazer como um povo que vejo por aí, que vende a alma ao diabo para conseguir os tão desejados bens materiais. E por falar nisso, já repararam que o invejoso, quando deseja um bem de outra pessoa, compra um "igualzinho"? Antes, porém, despreza à beça. Terrível isso, não? Estou fora desse mundo!   
Querem outro item que, não raro, “puxa” a inveja lá de dentro de muitas criaturas? Ser chefe! Não sou e nem quero ser chefe de ninguém. Quero paz, sossego e saúde, itens que, juntos ou não, estão fora do dia a dia de muitas chefias. Gosto muito de mim para querer ser chefe de alguém, para assumir cargos que exalam "status". Viver sem "neuras" é bom à beça.  
Enfim, posso afirmar com muita convicção que as pessoas invejosas não me interessam: não quero saber o que elas fazem, com quem andam, onde moram, com quem vivem, o que pensam, o que "acham". Simplesmente, essas pessoas não me interessam. Porém, não dá para negar que o invejoso, cedo ou tarde, poderá 'nos' fazer algum mal. No entanto, o mais importante é que ele não consiga "deitar e rolar" - ou 'surfar', para usar uma expressão do Wisnik - sobre nossa dor. Sobre a minha não! Comigo, só quero quem gosta de mim. Mais ninguém. 


CHULA CORTADA
Roque Ferreira
(...)
sai da roda, invejosa
teu melaço não me engana
aprendi chula cortada
no banguê cortando cana

sapo tem o olho grande
mas ele vive na lama

Fonte (CD):  Jussara Silveira, Entre o amor e o mar, Maianga Discos, MG 2001C, 2006. 


INVEJA
Paulo Vanzolini

A inveja é a moeda que o mundo tem pra pagar o bem.
Sabendo disso eu faço que não sei,
E sigo o caminho que sempre trilhei.
Seguindo a força da natureza,
Eu perco em vantagem e ganho em grandeza,
Eu sei ser pobre sem raiva
E só sem tristeza.

No dia seguinte eu digo,
- O amor que dei não dou mais, mas sem rancor,
Eu sou sempre eu, seja ela o que for.
Não nego a mão a quem precisa,
Inveja é a raiva do pó ontra quem o pisa.
Os últimos no fim são os primeiros.
Ninguém vai longe com trinta dinheiros.

Fonte (CD): Paulo Vanzolini, Acerto de contas - vol. 2, Biscoito Fino, BF-542, 2002.


MAL SECRETO
Raimundo Correia

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!



INVEJA
Sebastião Ayres

É o pecado de Caim,
Que assassinou o justo Abel;
E do irmão do “Filho Pródigo”
Que teve invídia cruel.
Por pura inveja, o demônio
Envolveu-se em pandemônio
Quando a Deus foi infiel.

Inveja é sentir tristeza,
Desgosto, insatisfação
Por justo sucesso de outrem,
Felicidade do irmão;
É ficar contrariado,
Contrafeito, revoltado,
Perante a alheia ascensão.

É pretender, cobiçar,
Atributos ou riquezas
De quem são seus detentores
Por mérito, sem ardilezas;
É querer prosperidade,
Sem trabalho e honestidade,
Movido por espertezas.

Disputas, competições
São normais e naturais;
Recursos de emulações
São saudáveis, se leais.
Que vençam os mais bem dotados
Treinados, capacitados,
Com aptidões pessoais.

Toda inveja é inconfessável,
Sórdida e degenerada;
Pérfida, vil e maldosa,
Desprezível e depravada.
Acarreta ódio e ciúme,
Disfarça, não vem a lume,
Está sempre mascarada.

Alegra-se com a desgraça
Que ao próximo sobrevém;
Apraz-lhe a adversidade
Que recaia sobre alguém.
Assaca murmurações,
Calúnias, detratações
Contra quem já se deu bem.

Ela deforma o caráter
Pela avidez, ambição;
Conspurca a pureza d’alma
E corrompe o coração.
Conduz ao roubo e à cobiça,
Atenta contra a justiça
Degenera em corrupção.

A inveja é como uma praga,
Uma peste, uma desgraça;
Corrói o espírito humano
Com a sofreguidão da traça;
Como agulhão nos tortura,
Abrasa, qual queimadura,
Á vida é grave ameaça.

Bons antídotos da inveja
São o amor, a caridade;
Benevolência, modéstia,
A justiça e a humildade.
Ela é vício capital,
Maldito, primordial,
Princípio de iniqüidade.

Evitemos a soberba,
Toda avareza e cobiça;
Cólera, o ódio, a vil inveja,
Luxúria, gula e preguiça.
Destes vícios principais
Surgem todos os demais,
Que negam o amor e a justiça.

 Fonte: http://www.jornaldepoesia.jor.br/sebastiaoayres1.html



BANHO DE MANJERICÃO
João Nogueira / Paulo Cesar Pinheiro

Eu vou me banhar de manjericão
Vou sacudir a poeira do corpo batendo com a mão
E vou voltar lá pro meu congado
Pra pedir pro santo
Pra rezar quebranto
Cortar mau-olhado

E eu vou bater na madeira três vezes com o dedo cruzado
Vou pendurar uma figa no aço do meu cordão
Em casa um galho de arruda é que corta
Um copo d'água no canto da porta
Vela acesa e uma pimenteira no portão

É com vovó Maria que tem simpatia pra corpo fechado
É com pai Benedito que benze os aflitos com um toque de mão
E pai Antônio cura desengano
E tem a reza de S. Cipriano
E tem as ervas que abrem os caminhos pro cristão.

Fonte (LP): Clara Nunes, Esperança, EMI Odeon, 31C 062 421168, 1979.

Inveja: s.f. (sXIII) 1 desgosto provocado pela felicidade ou prosperidade alheia 2 desejo irrefreável de possuir ou gozar o que é de outrem.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.


São Jorge

ORAÇÃO de SÃO JORGE
(...)
Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge. Para que meus inimigos, tendo pés, não me alcancem; tendo mãos, não me peguem; tendo olhos, não me enxerguem e nem pensamentos eles possam ter, para me fazerem mal.
Armas de fogo o meu corpo não alcançarão; facas e lanças se quebrarão sem ao meu corpo chegarem; cordas e correntes se arrebentarão sem o meu corpo amarrarem.
(...)

JORGE DE CAPADÓCIA
Jorge Ben

Jorge sentou praça
Na cavalaria
Eu estou feliz
Porque eu também
Sou da sua Companhia

Eu estou vestido
Com as roupas
E as armas de Jorge
Para que meus inimigos
Tenham mãos e não me toquem
Para que meus inimigos
Tenham pés e não me alcancem
Para que meus inimigos
Tenham olhos e não me vejam
E nem mesmo pensamento
Eles possam ter
Para me fazerem mal
Armas de fog
Meu corpo não alcançará
Espada, facas e lanças se quebrem
Sem o meu corpo tocar
Cordas e correntes se arrebentem
Sem o meu corpo amarrar
Pois eu estou vestido
Com as roupas e as armas de Jorge
Jorge é de Capadócia
Viva Jorge
Jorge é de Capadócia
Salve, Jorge

Ref. (CD): Jorge Ben, Solta o pavão, Universal, 73145181172, 2009.
LP lançado em 1975.


INVEJOSO
Arnaldo Antunes / Liminha

o carro do vizinho é muito mais possante
e aquela mulher dele é tão interessante
por isso ele parece muito mais potente
sua casa foi pintada recentemente

e quando encontra o seu colega de trabalho
só pensa em quanto deve ser o seu salário
queria ter a secretária do patrão
mas sua conta bancária já chegou no chão

na hora do almoço vai pra lanchonete
tomar seu copo dágua e comer um croquete
enquanto imagina aquele restaurante
aonde os outros devem estar nesse instante

invejoso
querer o que é dos outros é o seu gozo
e fica remoendo até o osso
mas sua fruta só lhe dá caroço

invejoso
o bem alheio é o seu desgosto
queria um palácio suntuoso
mas acabou no fundo desse poço

 
Ref. (CD): Arnaldo Antunes, Iê iê iê, Rosa celeste, RC0001, 2009.