quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

QUERO QUE TUDO SAIA COMO SOM DE... ITHAMARA


É PRECISO DIZER ADEUS
Tom Jobim / Vinicius de Moraes

É inútil fingir
Não te quero enganar
É preciso dizer adeus
É melhor esquecer
Sei que devo partir
É preciso dizer adeus
Ah, eu te peço perdão
Mas te quero lembrar
Como foi lindo
O que morreu
E essa beleza do amor
Que foi tão nossa
E me deixa tão só
Eu não quero perder, não quero enganar, não devo trair
Porque tu foste pra mim
Meu amor
Como um dia de sol




QUERO QUE TUDO SAIA COMO SOM DE... ITHAMARA

Por Fábio Brito

"(...) Sim, juro que somos deuses. Porque eu também já morri de alegria muitas vezes na minha vida. (...)" 
Clarice Lispector

Por volta de 1985, o músico Carlos Sapão chamou uma jovem de nome Ithamara, que ainda não assinava Koorax, para uma canja no lendário “Café Nice” (é... o mesmo da canção “Memórias do Café Nice”, de Artúlio Reis e Monalisa, imortalizada por Doris Monteiro, Milton Carlos...). Depois de ouvi-la, Sapão foi certeiro ao dizer que a menina tinha futuro. E foi esse mesmo músico que, dia 21, retribuiu a canja: participou do “show” de Ithamara (agora Koorax), no Bottle's Bar, uma pequena boate do Beco das Garrafas (Copacabana, Rio) que, nos anos 60, deu colo à recém-nascida Bossa Nova e ao samba-jazz.  
Pois é, o que dizer de um “show”, de um concerto, que, além do sax de Sapão, contou também com outros músicos geniais, como Gerferson Horta (baixo), Alfredo Cardim (piano), Rubinho Moreira (bateria) e Ithamara Koorax (voz)? Se, como apregoam por aí, a perfeição não existe, esses músicos (Ithamara é “um” músico cantando), passaram perto, bem perto dessa tal perfeição.  O que pude ver – em êxtase – nessa noite de 21 de janeiro foi um “show” inigualável. Ithamara e os demais músicos tiveram a capacidade de mostrar as canções por inteiro e em total harmonia com a plateia. Com improvisações desconcertantes, fugiram a quaisquer formas estabelecidas. Preencheram até espaços inimagináveis. Para nós, público, poder ouvi-los indo a regiões a que raríssimos músicos no mundo ousariam ir é um deslumbre.
No repertório do espetáculo, só obras-primas, claro!  Garota de Ipanema e Eu sei que vou te amar, ambas de Tom/Vinicius, são clássicos dos quais os “shows” da diva Koorax não podem prescindir. Nessa noite ímpar, tais canções foram presentes oferecidos a nós em português/inglês e em português/francês, respectivamente. Mesmo sendo canções conhecidíssimas e com inúmeras gravações mundo afora, Ithamara as reinventou. Sempre que a ouço interpretando esses clássicos (e muitos outros), é fácil constatar o que há de diferente em cada nova interpretação. É, sim, um trabalho de coautoria, de recriação, mas é também um jeito muito peculiar de “viver” as canções que interpreta. O grande intérprete apossa-se, no melhor sentido, das canções que ele “vive” ou recria. Toma-as para si. Ithamara, como poucos, chegou, com altivez, a esse nível de excelência, que é o de “viver” todas as canções que interpreta.
Insensatez (Tom e Vinicius), por exemplo, é uma das canções mais belas que já ouvi. Doída e lírica, ela é catártica para mim. Com a interpretação da Ithamara, melodiosa ao extremo, deixo vazarem meus reservatórios sentimentais. Como resistir a uma canção em cuja letra o eu poético nos fala de um descuidado coração que fez chorar de dor um amor muito delicado? Há muitos corações sem cuidado por aí, que, sem pudor, saem pisoteando amores delicados. Ouvindo Ithamara, lembramo-nos de muitos corações assim.    
Minha saudade (João Donato e João Gilberto), Desafinado (Tom Jobim e Newton Mendonça) e Ela é carioca (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) sempre brilham alto. São canções que já ouvi Ithamara interpretar inúmeras vezes. Desnecessário dizer que, a cada interpretação, nascem mais três canções. Multipliquem aí...
Lígia (Tom Jobim), exatamente como na gravação do CD Love Dance, foi interpretada com uma languidez insuperável. Em tempos de homenagem ao “maestro soberano”, ouvir esse clássico na interpretação perfeita de Koorax é mais uma chance de constatarmos a genialidade de Jobim e a falta que ele nos faz.
Disse alguém / All of me (Seymor Simons / Gerald Marks – Haroldo Barbosa), pinçada lá do repertório de Billie Holiday, já é quase obrigatória nos “shows” da Ithamara. Sempre que a ouço, fico assoviando a melodia durante dias seguidos. Uma canção assim também não passaria despercebida por Frank Sinatra e João Gilberto... 
Em Só louco (Dorival Caymmi), Ithamara e os músicos optaram por um andamento mais lento, o que realçou ainda mais a beleza dessa obra-prima do Caymmi, nosso querido “Algodão”, que é um patrimônio deste país. Consagrada nas vozes de Nana Caymmi, Gal Costa e do próprio Caymmi, essa canção ganhou de Ithamara mais uma interpretação antológica.
Mas que nada (Jorge Ben) é um “show” à parte. Já ouviram falar em virtuosismo? Ei-lo na interpretação de Koorax para esse clássico. Detalhe: é virtuosismo, sim, mas com “profundidade de inspiração”. Em se tratando de Ithamara, não podemos falar apenas de grande habilidade técnica. O sentimento e a emoção estão aí. Suas gravações dessa obra genial (ou as apresentações ao vivo) deveriam figurar em alguns “livros de recordes”.
E, agora, uma pausa, que pode ser de “mil compassos”: Ária na corda sol da suíte nº 3, de Johann Sebastian Bach, leva-me às lágrimas. O ritual é sempre o mesmo: quando Ithamara a interpreta, fecho os olhos e levito. Não sei aonde vou. Só sei que viajo.
Pois é, depois de assistir a um espetáculo como esse do Bottle’s, em que músicos geniais e uma voz insuperável reinaram durante quase duas horas, pensei no seguinte: muitas figuras que vejo por aí - que se autodenominam cantoras, que não saem da mídia, que vendem muito e não têm o mínimo pudor em dizer que cantam - deveriam estudar na “Escola Superior de Música Ithamara Koorax”. Certamente, ficariam reprovadas (talvez até jubilassem) durante bons anos, mas, ao fim de tudo, aprenderiam pelo menos o elementar.
A voz de Ithamara é, no mínimo, algo perturbador. “Cristalinamente afinada”, é uma iguaria finíssima que, infelizmente, ainda não pode ser degustada por muita gente que consome música neste país. Que pena! Há um contexto assustador que não deixa que os tais biscoitos finos cheguem à massa. Trata-se de um boicote antigo e com raízes fundas. Ao povo, restam as sobras, a indigência. O triste é constatar que não foi sempre assim...