sábado, 17 de agosto de 2013

DO DESLUMBRE À LOUCURA




UM BOI VÊ OS HOMENS
Carlos Drummond de Andrade



Tão delicados (mais que um arbusto) e correm

e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos

de alguma coisa. Certamente falta-lhes

não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres

e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,

até sinistros. Coitados, dir-se-ia que não escutam

nem o canto do ar nem os segredos do feno,

como também parecem não enxergar o que é visível

e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes

e no rasto da tristeza chegam à crueldade.

Toda a expressão deles mora nos olhos - e perde-se

a um simples baixar de cílios, a uma sombra.

Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade,

e como neles há pouca montanha,

e que secura e que reentrâncias e que

impossibilidade de se organizarem em formas calmas,

permanentes e necessárias. Têm, talvez,

certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem

perdoar a agitação incômoda e o translúcido

vazio interior que os torna tão pobres e carecidos

de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme

(que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam

[no campo

como pedras aflitas e queimam a erva e a água,

e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.

Ref.: ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.


DO DESLUMBRE À LOUCURA
Por Fábio Brito
Crônica dedicada aos amigos Fernando César Rodrigues e Rodrigo Bolelli
A ideia deste texto, como a de tantos outros, nasceu de um fato bem corriqueiro: dia desses, dois amigos vieram à minha casa visitar minha mãe, que estava aniversariando. Até aí, tudo bem! É mais do que comum pessoas visitarem outras, principalmente em se tratando de aniversário.
Pois bem, assim que chegaram, deixaram sobre a mesa carteiras, chaves e, pasmem!, quatro celulares. Não são duas pessoas?, pensei. Para que quatro celulares?, perguntei ao vento. Depois dos habituais cumprimentos, começamos uma conversa na linha do “como vai a vida e como está a saúde”. Em poucos minutos, um dos celulares toca. Imediatamente, o dono atende à ligação, que durou pouco, achei. Retomamos, então, a conversa. Em poucos segundos, outro celular toca. Era um dos dois aparelhos do outro amigo, que também atende à ligação e abandona, temporariamente, a conversa. Outra retomada do bate-papo. Será que ainda lembro o assunto? Acho que sim...
Segundo “round”: novamente, os dois atendem a mais outra ligação. Desta vez, saem andando pelo quintal onde estamos. Minha mãe e eu, com cara de “bobo olhando”, ficamos ali, à espera de que os dois “retornassem” de suas ligações. Gesticulando e andando, pareciam dois “noias” sem o “combustível”. Conversa entrecortada por ligações telefônicas fica esquisita à beça. Em verdade, nem é conversa, ‘né’?, mas apenas observaçõs sobre alguns assuntos. Bom, depois da visita, que ficou meio “no ar”, uma vez que não consigo lembrar claramente o assunto (ou os assuntos) sobre o qual conversamos, fiquei meditando sobre a participação que os telefones celulares - e tudo o que é "mudernidade" tecnológica - têm, hoje, em nossas vidas. O que parece avanço é, para mim, um baita retrocesso.
Lembro, como se fosse hoje, que, em 1979, compramos nossa primeira linha telefônica, que era caríssima: o valor era equivalente ao de um carro. Meus pais tiveram de “juntar dinheiro” para comprá-la. No bairro, havia apenas mais dois ou três telefones. Nem é preciso dizer que era bem comum transmitirmos recados a muitos vizinhos, o que fazíamos com prazer e boa vontade, uma vez que sabíamos o quão difícil era, naquele tempo, as pessoas comunicarem-se. Hoje, nem é necessário dizer que conseguir uma linha telefônica é algo muito fácil, tão fácil que muitos nem querem. Quase ninguém tem telefone fixo. As pessoas preferem os celulares. Exatamente por causa dessa facilidade na aquisição dos benditos celulares, a loucura - há pouco, era somente deslumbre – foi instaurada. Parece que ninguém faz mais nada. As pessoas só ficam grudadas "no" celular.

Dia desses, a caminho do trabalho, passei por uma travessa onde havia um trabalhador mexendo em cabos telefônicos. Ou melhor, havia um trabalhador que deveria estar mexendo em cabos telefônicos. A escada, coitada!, estava encostada "no" poste, sozinha, e o tal trabalhador estava ao lado, encostado "nela" e com o celular na palma da mão (transmitindo ou recebendo alguma mensagem). Mais adiante, encontro uma moça que deveria estar limpando uma calçada. Deveria! O balde, a vassoura e o rodo estavam encostados num canto. Um doce para quem adivinhar o que ela estava fazendo... Já vi faxineira em escadas, limpando janelas e com o celular no ouvido.  Cheguei a perguntar por uma possível dor no pescoço. Que dor o quê! E os "noias" que ficam olhando para o aparelho e rindo sozinhos? Só interagem com o aparelho. E os imbecis que, pelas ruas, não escutam buzina e não veem carro? Não raro, encontro pessoas ao volante e "teclando". Falando ao celular já é bem comum há muito tempo, mas "teclando" enquanto dirigem? Até "motoqueiro"! Bom, em se tratando de "motoqueiro", nada me espanta. Os malucos ficam com uma mão no "guidom" e a outra no celular. Nossa! E há inúmeras outras histórias. Dia desses, por exemplo, passei por um rapaz que estava com um celular no ouvido e outro na palma da mão. Ao mesmo tempo, ele parecia conversar com alguém e teclar. Jesus! Sanatório geral! Passou ou não passou de deslumbre? As pessoas chegaram ou não chegaram à loucura? Será apenas rabugice minha isso tudo que estou comentando?
A criançada também entrou na "onda" do celular antes de tudo. Toda criança, hoje, tem "o infernal aparelhinho". Desde a mais tenra idade, elas ostentam um celular e fazem “misérias” com ele. Há trinta, quarenta anos, o sonho das crianças era outro. Quanto fiz nove anos, por exemplo, ganhei meu primeiro relógio: um Citizen de fundo azul que não saía do braço. Eu fazia tudo com ele. Até banho eu tomava sem que fosse preciso tirá-lo, porque nele não entrava água. Tal relógio era, como se dizia, “à prova d’água”. Que maravilha! Antes, porém, de ganhá-lo, eu observava o relógio de todas as pessoas e ficava pensando no dia em que eu teria o meu. Eu só enxergava o braço esquerdo de todo o mundo. “Seu” Benedito, um vizinho, tinha um de pulseira de couro, daqueles bem tradicionais, que eu achava um luxo. Sempre que ele aparecida, meu olho não desgrudava do relógio. Nem sei se ele chegou a desconfiar de minha fissura...
Com a mesma idade, também ganhei meu primeiro “toca-discos”, cuja marca, infelizmente, não lembro, mas outros detalhes não puderam ser esquecidos: ele era de madeira e forrado por uma espécie de plástico verde. Na tampa, ficava a caixa de som. No entanto, o luxo dos luxos era o microfone, redondo, que ficava guardado dentro do próprio “toca-discos”, quando fechávamos a tampa. Fechadinho, ele era uma espécie de maleta, com alça e tudo. Meu mundo estava completo: um relógio e um toca-discos!
Pois é, o que me encantava em termos de tecnologia era muito pouco, mas o suficiente para eu ser feliz. O melhor de tudo é que havia um tempo para desfrutar das chamadas "novidades tecnológicas". Ou seja, eu não ficava ouvindo música ou assistindo a programas de TV o tempo todo. Naquele tempo, todas as crianças brincavam, e os adultos também não ficavam somente envolvidos com as parafernálias eletrônicas. Hoje, ao contrário, só vejo gente doida por aí, caminhando pelas calçadas e “agarradas” "em" algum aparelho. Paranoia pura! Muita gente já deve ter visto uma imagem que circula direto pela INTERNET e que mostra vários adolescentes “reunidos”, mas cada um com um aparelhinho na palma da mão. São vários mundinhos. As pessoas, hoje, não suportam a aproximação física. Que horror!
Recentemente, o escritor Ruy Castro, por ocasião do lançamento de seu mais novo livro, "Morrer de prazer: crônicas da vida por um fio", foi categórico ao afirmar que o “avanço da tecnologia parece nos conduzir à independência, à liberdade e à autossuficiência. Dito assim é bonito. Já não o será tanto se convencermos a frase à sua verdadeira essência – a de que tal avanço está nos condenando ao individualismo, ao egoísmo, à solidão(...)”. A imagem do grupo de adolescentes que citei é prova inconteste do individualismo e da solidão de que nos fala Castro.
Sentindo-se seguras e amparadas pela tecnologia, as pessoas – e não são só os jovens – marcham em direção a algo perigoso: essa suposta autossuficiência de que nos fala Castro, proporcionada pelo virtual, e o culto exagerado à imagem. Na obra “Solaris”, por exemplo, vemos o sonho de ‘se’ viver num planeta virtual. Parece que tal sonho é mais do que presente e atual. Mais do que nunca, hoje, a vida se mostra não real. Mais perigo à vista: a “fauna humana”, perdida no virtual, banaliza o que deveria ser chocante e assustador. Tudo ficou fugaz e superficial. Tudo ficou menos humano. Que pena...


ANTICONSUMO
 

Como vai longe o dia, Maninho,
em que a gente podia ser comum

Entre ervas burras, folhas molhadas de mamona
e salsa
a gente podia ser
simplesmente
nossas mãos nossos pés nossos cabelos
e o que queimava dentro
no escuro

Como vai longe o tempo como as águas
batendo na amurada
                                      alegremente
Como os peixes
vivendo no seu músculo
o mistério do mundo

Fonte: GULLAR, Ferreira. Dentro da noite veloz. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.


                                Foto: Fábio Brito

No ano de 1854, o presidente dos Estados Unidos fez a uma tribo indígena a proposta de comprar grande parte de suas terras, oferecendo, em contrapartida, a concessão de uma outra "reserva". A carta-resposta do Chefe Seatle, distribuída pela ONU (Programa para o Meio Ambiente) tem sido considerada, através dos tempos, como um dos mais belos e profundos pronunciamentos já feitos em defesa da natureza.

Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra?  
Essa ideia nos parece estranha. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los?
Cada pedaço desta terra é sagrado para meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia da praia, a penumbra na floresta densa, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência de meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores carrega consigo as lembranças do homem vermelho.
Os mortos do homem branco esquecem sua terra de origem quando vão caminhar entre as estrelas. Nossos mortos jamais esquecem essa bela terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela é parte de nós. 
Portanto, quando o Grande Chefe de Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, pede muito de nós. 
Essa água brilhante que escorre nos riachos e nos rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Se lhes vendermos a terra, vocês devem lembrar-se de que ela é sagrada, e devem ensinar às suas crianças que ela é sagrada e que cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz de meus ancestrais.
Os rios são nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem lembrar e ensinar a seus filhos que os rios são nossos irmãos, e seus também. E, portanto, vocês devem dar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão.
Sabemos que o homem branco não compreende nossos costumes. Uma porção de terra, para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem à noite e extrai da terra aquilo de que necessita. A terra não é sua irmã, mas sua inimiga, e quando ele a conquista, prossegue seu caminho. Deixa para trás os túmulos e seus antepassados e não se incomoda. Rapta da terra aquilo que seria de seus filhos e não se importa. A sepultura de seu pai e o direito de seus filhos são esquecidos. Trata sua mãe, a terra, e seu irmão, o céu, como coisas que possam ser compradas, saqueadas, vendidas como carneiros, como enfeites coloridos. Seu apetite devorará a terra, deixando somente um deserto.
Eu não sei, nossos cotumes são diferentes dos seus. A visão de suas cidades fere os olhos do homem vermelho. Talvez seja porque o homem vermelho é um selvagem  e não compreenda.
Não há um lugar quieto nas cidades do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desabrochar de folhas na primavera ou o bater das asas de um inseto. Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreendo. O ruído parece somente insultar os ouvidos. E o que resta da vida se um homem não pode ouvir o choro solitário de uma ave ou o debate dos sapos ao redor de uma lagoa, à noite?  Eu sou um homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento encrespando a face do lago, e o próprio vento, limpo por uma chuva diurna ou perfumado pelo pinheiros.
O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro - o animal, a árvore, o homem, todos comprtilham o mesmo sopro. Parece que o homem branco não sente o ar que respira. Como um homem agonizante há vários dias, é insensível ao mau cheiro. Mas se vendermos nossa terra ao homem branco, ele deve lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar compartilha seu espírito com toda vida que mantém.
Portanto, vamos meditar sobre a sua oferta de comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais dessa terra como seus irmãos.
O que é o homem sem os animais? Se todos os animais se fossem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Pois o que ocorre com os animais, breve acontece com o homem. Há uma ligação em tudo.
Ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas: que a terra é nossa mãe. Tudo o que acontecer à terra, acontecerá aos filhos da terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos.
Isto sabemos: a terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra. Isto sabemos: todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo.
O que ocorrer com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida: ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo.
É possível que sejamos irmãos, apesar de tudo, veremos. De uma coisa estamos certos - e o homem branco poderá vir a descobrir um dia: nosso Deus é o mesmo Deus. Ele é Deus do homem, e Sua compaixão é igual para o homem vermelho e para o homem branco. A terra lhe é preciosa, e feri-la é desprezar seu criador. Os brancos também passarão; talvez mais cedo do que todas as outras tribos. Contaminem suas camas e uma noite serão sufocados pelos próprios dejetos.
Mas quando de sua desaparição, vocês brilharão intensamente, iluminados pela força do Deus que os trouxe a esta terra e, por alguma razão especial, lhes deu o domínio sobre a terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é um mistério para nós, pois não compreendemos que todos os búfalos sejam exterminados, os cavalos bravios sejam todos domados, os recantos secretos da floresta densa impregnados do cheiro de muitos homens, e a visão dos morros obstruída por fios que falam.
Onde está o árvore? Desapareceu. Onde está a águia? Desapareceu. É o fim da vida e o início da sobrevivência.

Fonte:Amaral, Emília et al. Novo manual e redação, gramática, literatura, interpretação de texto. São Paulo: Círculo do Livro, 1991.



"Da treva nasce a vida. Do escuro que era o caos primitivo surgiu o mundo. A semente vai voltar desse ponto desconhecido."
 
 BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Não verás país nenhum. 25ª ed. rev. e atualizada pelo autor. Sao Paulo: Global, 2007.


OS TROVÕES DE ANTIGAMENTE

Estou dormindo no antigo quarto de meus pais; as duas janelas dão para o terreiro ande fica o imenso pé de fruta-pão, a cuja sombra cresci. O desenho de suas folhas recorta-se contra o céu; essa imagem das folhas do fruta-pão recortadas contra o céu é das mais antigas de minha infância, do tempo em que eu ainda dormia em uma pequena cama cercada de palhinha junto à janela da esquerda.
      A tarde está quente. Deito-me um pouco para ler, mais deixo o livro, fico a olhar pela janela. Lá fora, uma galinha cacareja, como antigamente. E essa trovoada de verão é tão Cachoeiro, é tão minha casa em Cachoeiro! Não, não é verdade que em toda parte do mundo os trovões sejam iguais. Aqui os morros lhe dão um eco especial, que prolonga seu rumor. A altura e a posição das nuvens, do vento e dos morros que ladeiám as curvas do rio criam essa ressonância em que me reconheço menino, assustado e fascinado pela visão dos relâmpagos, esperando a chegada dos trovões e depois a chuva batendo grossa lá fora, na terra quente invadindo a casa com seu cheiro. Diziam que São Pedro estava arrastando móveis, lavando a casa; e eu via o padroeiro de nossa terra, com suas barbas, empurrando móveis imensos, mas iguais aos de nossa casa, no assoalho do céu - certamente também feito assim, de tábuas largas. Parece que eu não acreditava na história, sabia que era apenas uma maneira de dizer, uma brincadeira, mas a imagem de São Pedro de camisolão empurrando um grande armário preto me ficou na memória.
     Nossa casa era bem bonita, com varanda, caramanchão e o jardim grande ladeando a rua. Lembro-me confusamente de alguns canteiros, algumas flores e folhagens desse jardim que não existe mais; especialmente de uma grande touceira de espadas-de-são-jorge que a gente chamava apenas de “talas"; e, lá no fundo, o precioso pé de saboneteira que nos fornecia bolas pretas para o jogo de gude. Era uma grande riqueza, uma árvore tão sagrada como o fruta-pão e o cajueiro do alto do morro, árvore de nossa família, mas conhecidas por muita gente na cidade; nós também não conhecíamos os pés de carambola das Martins ou as mangueiras do Dr. Mesquita?
     Sim, nossa casa era muito bonita, verde, com uma tamareira junto à varanda, mas eu invejava os que moravam do outro lado da rua, onde as casas dão fundo para o rio. Como a casa das Martins, como a dos Leão, que depois foi dos Medeiros, depois de nossa tia, casa com varanda fresquinha dando para o rio.
     Quando começavam as chuvas a gente ia toda manhã lá no quintal deles ver até onde chegara a enchente. As águas barrentas subiam primeiro até a altura da cerca dos fundos, depois às bananeiras, vinham subindo o quintal, entravam pelo porão. Mais de uma vez, no meio da noite, o volume do rio cresceu tanto que a família defronte teve medo.
     Então vinham todos dormir em nossa casa. Isso para nós era festa, aquela faina de arrumar camas nas salas, aquela intimidade improvisada e alegre. Parecia que as pessoas ficavam todas contentes, riam muito, como se fazia café e se tomava café tarde da noite! E às vezes o rio atravessava a rua, entrava pelo nosso portão, e me lembro que nós, os meninos, torcíamos para ele subir mais e mais. Sim, éramos a favor da enchente, ficávamos tristes de manhãzinha quando, mal saltando da cama, íamos correndo para ver que o rio baixara um palmo - aquilo era uma traição, uma fraqueza do Itapemirim. Às vezes chegava alguém a cavalo, dizia que lá para cima, pelo Castelo, tinha caído chuva muita, anunciava água nas cabeceiras, então dormíamos sonhando que a enchente ia outra vez crescer, queríamos sempre que aquela fosse a maior de todas enchentes.
     E naquelas tardes as trovoadas tinham esse mesmo ronco prolongado entre morros, diante das duas janelas do quarto de meus pais; eles trovejavam sobre nosso telhado e nosso pé de fruta-pão, os grandes, grossos trovões familiares de antigamente, os bons trovões do
 velho São Pedro.
Cachoeiro, dezembro, 1958

           Fonte: BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.



MATER DOLOROSA
 
Este puxa-puxa
tá com gosto de coco.
A senhora pôs coco, mãe?
- Que coco nada.
- Teve festa quando a senhora casou?
- Teve. Demais.
- O que qu teve então?
- Nada não, menina, casou e pronto.
- Só isso?
- Só e chega.
Uma vez fizemos piquenique,
ela fez bolas de carne
pra gente comer com pão.
Lembro a volta do rio
e nós na areia.
Era domingo,
ela estava sem fadiga
e me respondia com doçura.
Se for só isso o céu,
está perfeito.
 
PRADO, Adélia. Oráculos de maio. São Paulo: Siciliano, 1999.  


CANÇÃO DA PRIMAVERA
Para Erico Verissimo

Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas.
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.

Catavento enlouqueceu,
Ficou girando, girando.
Em torno do catavento
Dancemos todos em bando.

Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até
Não mais saber-se o motivo...

Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido!

Fonte: QUINTANA, Mario. 80 anos de poesia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 1987.

 
                                    Foto: Fábio Brito