sábado, 19 de dezembro de 2015

QUANTO MAIS PRIMITIVO...



FELICIDADE
Antonio Almeida / João de Barro (Braguinha)

Para que tanta ambição, tanta vaidade,
Procurar uma estrela perdida?
Quase sempre o que nos dá felicidade
São as coisas mais simples da vida

Felicidade é uma casinha simplesinha
Com gerâneos em flor na janela
Uma rede de malha branquinha
E nós dois a sonhar dentro dela

Ai,ai,ai, isto é tão pouco minha nega
Ai,ai,ai, mas 'pra' mim chega.



        QUANTO MAIS PRIMITIVO... 

        Por Fábio Brito
        Para o amigo "mineiro-carioca" Marcos Lúcio, que, assim como eu, é primitivo... 
             
             "(...) E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos (...)" 
                                    Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa

          Outro dia, num consultório médico, li o seguinte: “Proibido o uso de celular. Médicos atendendo. Silêncio”. A sala, em verdade, era uma antessala de vários consultórios. Ali, éramos nove pessoas, das quais seis estavam conferindo mensagens (deduzi) no celular, duas "faziam sala para o tempo" (olhavam para o nada, como sempre digo) e a nona pessoa, eu, o ET do grupo, estava com um livro aberto. Ou melhor, eu estava com meu "kit" leitura: um livro, um lápis e um apontador em mão (pausa: vejam que primitivismo! Uso lápis e apontador! Incrível! Acho que, daqui a uns bons anos, terei um cantinho em algum museu... vão dizer que do folclore, de preferência!). Quando entrei no consultório, o médico, sem pestanejar, comentou: "- É, Fábio, você sempre com um livro". Senti um alívio e tanto com o comentário. Graças a Deus, alguém percebeu que eu estava com um livro, o que me diferenciava das demais pessoas. Ou seja, eu não era um "descerebrado". Alguém percebeu isso.
               E por falar em "estar com um livro", não posso deixar de relatar um fato muito interessante, mas não inusitado, pelo menos para mim: num "shopping" de Vitória, fui a uma livraria - um dos poucos locais que ainda frequento em "shopping" - e comprei alguns livros. Só para dar tempo de tirar o plástico que envolvia um dos livros, parei numa cafeteria. Ali mesmo, sobre a mesa, abri o tal livro e comecei a folheá-lo e a ler alguns poemas. Findo o café, saí para o que chamo de minha melhor vingança: fui andando com o livro aberto e lendo-o. Claro que não deixei de esbarrar em algumas pessoas e, em seguida, pedir desculpas. Fiz exatamente o fazem quase todas as criaturas (não são pessoas!) que carregam um celular (ou outros aparelhinhos afins, cujos nomes faço questão de não saber): saem às tontas, às cegas e não olham nada ao redor. Ou seja, só existe o mundo que está na telinha do aparelho que essas criaturas têm em mão. Para mim, naquele instante, só existia o mundo que estava nas páginas do livro que eu, orgulhosamente, carregava. "Eita"! Que vingança maravilhosa! Mais uma vez, eu era um ET. Mais uma vez, eu era um primitivo, um ser estranho, de outro planeta.                   
                Esse episódio me deu gás para fazer o mesmo quando eu sair com algumas pessoas que não largam o celular: no momento em que elas olharem para o "aparelhinho do cão", abro um livro (nunca saio sem um). Quero ver o que vão dizer. Vamos trocar "gentilezas", não é mesmo? Para mim, não existe nada pior do que sair com alguém - para conversar, normalmente - e esse "alguém" ficar conferindo mensagens o tempo todo. O que tanto escrevem e leem, Deus meu? Já fiz tal pergunta inúmeras vezes, e ninguém tem uma resposta. Já sei! Sabem que tenho a resposta e, por isso, nem se sentem obrigados a repeti-la: bobagens, bobagens e mais bobagens! Ai, acho que o mundo virou uma grande bobagem. Quero ser sedado, por favor! Ou será que o mundo sempre foi uma grande bobagem e, agora, com a internet, isso foi redimensionado? Vai saber... 
         Na internet, dias atrás, li o seguinte¹: "Sou um homem que tenho tido o privilégio de viajar muito e de assistir a alguns grandes espetáculos mundo afora. Nunca vi, repito, nunca vi uma pessoa pegar o celular no meio da plateia e ficar conferindo suas mensagens. Mas isso parece ter-se tornado um hábito no Brasil, para algumas pessoas sem educação", desabafou na rede social. E continuou a lamentar: "Volta e meia surge um rosto esverdeado, iluminado no meio da plateia, e eu me pergunto se vale a pena o esforço”. O comentário é de Miguel Fallabella, que afirmou não se dirigir a todos os espectadores: “É só um desabafo. A grande maioria do público, graças a Deus, ainda mantém a chama acesa”. No teatro, pode até ser que a maioria ainda mantenha a chama acesa, Fallabella. Pode até ser que muitos ainda prefiram a peça ao celular, porque, em outros ambientes, em muitos outros ambientes, em quase todos os ambientes, o "trem 'tá' feio": em reuniões, em palestras, em mesas-redondas, em sala de aula, em restaurantes, em consultórios médicos, em bancos... só dá gente olhando "a telinha", como digo constantemente. As pessoas estão loucas. Loucas "de coleira" por causa de celular. Essa droga (é vício, sim, e dos piores!) virou uma espécie de bússola das pessoas. O troço já anda grudado na palma da mão (fica mais bizarro ainda quando fios ligados a esse troço levam o som - imagino o tipo de som - até os ouvidos). 
         E, nessa maluquice toda, tenho de fazer um treino constante de minha paciência, porque já estou olhando para as pessoas com raiva. E o pior de tudo é que não consigo disfarçar. Nesses casos, tenho de aprender a ignorar. Já ignorei (e continuo ignorando) tanta "coisa" e tanta gente nesta vida... por que não posso ignorar essas criaturas deslumbradas com a tecnologia? Deslumbradas não! Loucas! A fase do deslumbre já passou, como afirmei inúmeras vezes. Prometo que vou ignorar. Prometo. Quando eu estiver conversando com uma pessoa e, durante a conversa, ela olhar a "telinha" várias vezes (que falta de respeito!), prometo que não vou dar bronca. Vou abrir um livro, como eu disse há pouco. A tática será eficaz... espero. Ah, eu já ia esquecendo: outro dia, caminhando, vi uma criatura dirigindo e conferindo mensagens. Mais: vi um rapaz correndo (não estava caminhando) e conferindo mensagens. Quando acho ("achismo" mesmo!) que não aparecerão mais bizarrices em relação ao celular, eis que fico espantado com mais uma. Cruzes! 
               E na corrida ao celular último modelo, o povo vai ficando com dívidas e mais dívidas. Dias atrás, vi uma pessoa com poucos recursos pedindo a um amigo para consultar - na "net" - preços de celular. Encontrou um que lhe agradou. O valor? Em torno de R$ 1.500,00. Sabe qual o salário da pessoa? O mínimo (com descontos, claro!). Questão de valores, "né"? Ah, eu ia esquecendo: há uns dias, por determinação judicial, o bendito WhatsApp, aqui no Brasil, ficou bloqueado por algumas horas. Foi por isso, então, que vi muita (muita mesmo!) gente cabisbaixa, murcha, quase desfalecendo pelas ruas? Foi, claro! Fico pensando como devem ter ficado os prontos-socorros nessas horas de bloqueio do "aplicativo-oxigênio"? Como conseguiram dar conta de atender a esse povo todo tendo convulsões? Ficar sem esse negócio é, para muita gente, o equivalente a ficar sem respirar. Mais uma vez: quero que me sedem! 
                É por essas e outras que, cada vez mais, adoro ser primitivo. Um de nossos médicos de confiança, dias atrás, contou-me que, em seu sítio, ele gosta de ficar "no meio das flores", sentado numa cadeira, contemplando-as e ouvindo música. Adorei o primitivismo! Adorei a imagem! No momento em que ele me contou isso, dei uma viajada e fui até seu sítio. É para um sítio assim que quero ir daqui a alguns anos (por enquanto, não posso). E espero, sinceramente, ir. E vou! Quero distância de gente falando o tempo todo. Quero ouvir passarinhos e galo cantando. Quero muita água por perto. Quero muito verde. Quero paz! Quero "carneiros e cabras pastando solenes no meu jardim", como disseram Zé Rodrix e Tavito em "Casa no campo", canção imortalizada pela Elis. 


¹ http://www.msn.com/pt-br/entretenimento/noticias/miguel-falabella-faz-desabafo-e-chama-plateia-de-teatro-de-sem-educacao


SONATA AO LUAR

Sombra Boa não tinha e-mail. 
Escreveu um bilhete: 
Maria me espera debaixo do ingazeiro
quando a lua tiver arta. 
Amarrou o bilhete no pescoço do cachorro 
e atiçou: 
Vai, Ramela, passa!
Ramela alcançou a cozinha num átimo. 
Maria leu e sorriu. 
Quando a lua ficou arta Maria estava.
E o amor se fez
Sob um luar sem defeito de abril.

Manoel de Barros (In: Poemas rupestres)


"(...) Só consigo entender isso pensando que se trata de doença grave. 'O tempo voa'; 'o tempo corre feito um corcel!'; 'deem um pouco mais de tempo': são as queixas do Branco. 
Digo que deve ser uma espécie de doença porque, supondo que o Branco queira fazer alguma coisa, que seu coração queime de desejo, por exemplo, de sair para o sol, ou passear de canoa no rio, ou namorar sua mulher, o que acontece? Ele quase sempre estraga boa parte do seu prazer pensando, obstinado: 'Não tenho tempo de me divertir'. O tempo que ele tanto quer está ali, mas ele não consegue vê-lo. Fala em uma quantidade de coisas que lhe tomam o tempo, agarra-se, taciturno, queixoso, ao trabalho que não lhe dá alegria, que não o diverte, ao qual ninguém o obriga senão ele próprio. Mas, se de repente vê que tem tempo, que o tempo está ali mesmo, ou quando alguém lhe dá um tempo - Os Papalaguis estão sempre dando tempo uns aos outros, é uma das ações que mais se aprecia - aí não se sente feliz, ou porque lhe falta o desejo, ou está cansado do trabalho sem alegria. E está querendo fazer amanhã o que tem tempo para fazer hoje. (...)"

In: O Papalagui: comentários de Tuiávii, chefe da tribo Tiavéa nos mares do sul. Recolhidos por Erich Scheurmann 


UM BOI VÊ OS HOMENS

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm 
e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos 
de alguma coisa. Certamente falta-lhes 
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres 
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves, 
até sinistros. Coitados, dir-se-ia que não escutam 
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes 

e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos - e perde-se 

a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade, 

e como neles há pouca montanha, 
e que secura e que reentrâncias e que 
impossibilidade de se organizarem em formas calmas, 
permanentes e necessárias. Têm, talvez, 
certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido 

vazio interior que os torna tão pobres e carecidos 
de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós), sons que se despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.


In: "Claro Enigma"


POEMA XXXI de O guardador de rebanhos

Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios. 

Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza, 
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma. 

Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa



OS RECURSOS DE UM SER PRIMITIVO

Li uma vez que os movimentos histéricos tendem a uma libertação por meio de um desses movimentos. A ignorância do movimento exato, que seria o libertador, torna o animal histérico, isto é, ele apela para o descontrole. E, durante o sábio descontrole, um dos movimentos sucede o libertador. 
Isso me faz pensar nas vantagens libertadoras de uma vida apenas primitiva, apenas emocional. A pessoa primitiva apela, como que histericamente, para tantos sentimentos contraditórios que o sentimento libertador termina vindo à tona, apesar da ignorância da pessoa. 

Clarice Lispector (In: A descoberta do mundo) 

domingo, 6 de dezembro de 2015

“DOBRA-SE UMA DAS PÁGINAS MAIS NOBRES DA DRAMATURGIA NACIONAL”








“DOBRA-SE UMA DAS PÁGINAS MAIS NOBRES DA DRAMATURGIA NACIONAL”

Por Fábio Brito

Foi Lima Duarte quem disse o que está no título aí de cima, quando, emocionado e ao telefone, comentou a “despedida” (prefiro assim) da grande atriz Marília Pêra. Com a partida dessa diva, dobra-se uma das páginas mais nobres da dramaturgia nacional. Concordo com você, Lima Duarte. Ou melhor, o Brasil e o mundo concordam com você. Assim como ocorre com Fernanda Montenegro, não há quem não veja em Marília uma das maiores atrizes do mundo.
“Encontrei” essa diva em 1982, quando, depois de alguns anos afastada da telinha, ela retornou à TV na minissérie “Quem ama não mata”, escrita por Euclydes Marinho. Desnecessário dizer que ela simplesmente arrasou com sua interpretação (Cláudio Marzo também brilhou muito) “pra” lá de realista. A força dramática da atriz era tanta, que eu não desgrudava os olhos da TV em todas as cenas de que ela participava. Magnetismo mesmo. O tema da minissérie, “pra” lá de polêmico, era o crime passional. “Taí” uma oportunidade e tanto para uma grande atriz – atriz de verdade! – mostrar seu excepcional talento.
Entretanto, o talento de Marília não mostra toda sua força apenas no drama. Ela “ultrapassou a rotulação de gênero”, como disse o crítico Macksen Luiz. Em 1987, treze anos depois de atuar em “Supermanoela”, a diva dos palcos volta às novelas, agora para estrelar “Brega & Chique”, de Cassiano Gabus Mendes, que teria escrito a personagem especialmente para a atriz. Sua Rafaela rendeu cenas extraordinárias, que, até hoje, são lembradas com um prazer sempre renovado. Com um humor refinado e inteligente, ela compôs a personagem como poucas atrizes conseguiriam fazê-lo. Lidar com humor é complicado, como dizem. Às vezes, determinado ator é até bom, mas, se passar do ponto, mesmo que ligeiramente, fica canastrão. Fica “over”, excede e não mais encontra o tom exato. Para usar um “lugar comum”, Marília Pêra, nessa novela, roubou a cena. Havia duas protagonistas, mas ela, uma das duas, desde o primeiro capítulo, atraiu todas as atenções.  
  No ano seguinte, 1988, eis que chega à TV a minissérie “O Primo Basílio”, uma excelente adaptação de Gilberto Braga e Leonor Bassères para a obra homônima do escritor português Eça de Queirós. Para o papel de Juliana, a empregada de Luísa e Jorge, convidaram Marília. Ainda em VHS, gravei a minissérie e pude, alguns anos depois, mostrar cenas dessa trama a meus alunos de Literatura Portuguesa, que ficaram fascinados com tudo, em especial com a atuação da grande atriz. Hoje, tanto tempo depois, ainda lembro muitos detalhes, falas inteiras (sem recorrer aos DVDs ou às fitas). Lembro, por exemplo, a cena em que Juliana surpreende a patroa quando esta tenta recuperar as cartas – o motivo da chantagem – na “enxovia” em que Juliana dormia; lembro o embate entre patroa e empregada no momento em que Juliana revela que tem as cartas, que nem todas foram para o lixo; lembro ainda a belíssima cena da morte de Juliana: até hoje, os gritos lancinantes de dor ainda ecoam em minha lembrança. Eis aí a entrega total de uma atriz.  Tempos depois da minissérie, li novamente a obra de Queirós. A Juliana que veio à minha lembrança foi a própria Marília Pêra, que, com a minissérie, encarnou-a. Não faz muito tempo, chegou aos cinemas uma adaptação de “O Primo Basílio”. Confesso que até tentei ver. Não deu! Quando vi a primeira cena com a “nova” Juliana, comparei-a, no mesmo instante, com a “da” Marília. Não dá! É covardia!, eu disse. E a atriz do filme era Glória Pires, que é talentosa. No entanto, a Juliana é “da” Marília, pertence a ela. Maria Monforte, que ela viveu na adaptação de “Os Maias” (2001), também tem uma força extraordinária.
Marília também atuou no cinema. Atuou pouco, mas, quando o fez, foi para eternizar suas personagens. O exemplo mais lembrado é “Pixote, a lei do mais fraco”, dirigido por Hector Babenco, em que ela viveu a prostitua Sueli. Por esse trabalho, Marília recebeu, entre outros, o prêmio de melhor atriz da Associação dos Críticos de Cinema dos EUA. Ou seja, o prêmio representou sua consagração internacional. O filme é impecável. A cena em que Sueli amamenta o “pixote”, por exemplo, deve ser vista inúmeras vezes, tamanha a realidade. A prostituta é a própria “mãe” do pixote. Comoventes a cena e a interpretação de nossa diva. Marília era completa, perfeita. Como disse Patrícia Kogut, a expressão “artista completa”, em se tratando de Marília Pêra, pode ser usada sem medo de errar. Ela era atriz, cantora, dançarina, produtora, diretora. Produziu, por exemplo, “A vida escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato” e dirigiu “O mistério de Irma Vap”, com Nanini e Latorraca, que ficou onze anos em cartaz.
Porque sempre foi excelente cantora, Marília brilhou em musicais que figuram entre os melhores já produzidos no Brasil. Um, em especial, guardo com muito carinho: Elas por Ela, de 1989, exibido pela TV e registrado em um álbum duplo (LP). Trata-se de uma homenagem a muitas cantoras brasileiras: de Araci Cortes a Elis Regina. Vale dizer que, como se guarda um troféu, guardo o álbum desse espetáculo. Minimalista, Marília realça nessa obra detalhes de cada uma das vozes que ela homenageia. Foi um estudo primoroso, detalhista. O cuidado é tanto que, mesmo que as pessoas não conheçam o repertório das divas homenageadas, ouvindo Marília conseguem, imediatamente, identificar as cantoras, tamanha é a acuidade de Marília ao observar detalhes que, aos pobres mortais, passariam despercebidos. Genialidade absoluta. O ator Renato Borghi, que atuou com ela em “A Estrela Dalva” (ele interpretou Herivelto Martins e, junto com João Elisio Fonseca, escreveu o texto) disse que, quando Marília chegou para viver sua personagem, ela já sabia todo o texto da peça, inclusive as canções. Olhe aí o cuidado da estrela, a preocupação com os detalhes, com a disciplina.
E por falar em cuidado e em disciplina, é sabido que nossa diva tinha fama de exigente, disciplinada e rigorosa. Ela jamais reduziu “a seriedade em relação a seu ofício”, como afirmou Nélida Piñon. Até mesmo em um simples episódio que, para muitos, pode parecer apenas um “jogo de ego” (e é um pouco, como ela mesma afirmou), Marília foi rigorosa. Em “Damas na TV”, ela disse que havia sido convidada para “estrelar uma novela” (no caso, “Brega & Chique”). Antes da estreia, disseram que o nome de outra atriz, na abertura, precisava sair “na frente” do seu. Marília, então, propôs ao diretor que “recombinassem”, uma vez que, antes, ele não havia combinado isso com ela. Resolveu-se o problema: como afirmou a própria Marília, parece que, “a cada semana, saía o nome de uma na frente”. Nossa diva afirmou que isso, para ela, era “ponto de honra”. Se se tem toda uma história e um nome construídos, há que se lutar por eles. É isso aí, Marília! Louvável sua firmeza.
Marília pertence a uma estirpe que, infelizmente, parece não se renovar mais: a dos “atores de verdade”. Ela mesma, em entrevista a um programa de TV, disse que, hoje, o ator tem de ser disciplinado para não criar nada. Nem se decora mais, uma vez que as falas são repetidas inúmeras vezes. De uns anos para cá, tenho deparado – não sem espanto – com rostinhos e mais rostinhos bonitos que se intitulam “atores e modelos”. A TV, principalmente, está abarrotada dessas figuras, que, não nos espantemos, também já chegaram ao teatro. Quando, em alguma novela, vejo um “ator de verdade”, comemoro: “oba”! Sinto falta, entre os chamados novos atores, de “atores de verdade”. Não faz muito tempo, perdemos Cleyde Yáconis, Yoná Magalhães e, agora, Marília Pêra. Quem fará a cobertura? Voltando ao que disse Nélida Piñon no dia em que Marília se despediu, o maior legado que ela deixa a este país é sua biografia.  A grandeza que Marília oferece ao Brasil é sua biografia, é sua história, é seu trabalho irretocável e inesquecível. Para que, daqui a algumas décadas, ainda tenhamos atores “de verdade”, é preciso que o exemplo de Marília seja seguido... e já. 


“(...) Mas eu denuncio. Denuncio nossa fraqueza, denuncio o horror alucinante de morrer – e respondo a toda essa infâmia com – exatamente isto que vai agora ficar escrito – e respondo a toda essa infâmia com a alegria. Puríssima e levíssima alegria. A minha única salvação é a alegria. Uma alegria atonal dentro do it essencial. Não faz sentido? Pois tem que fazer. Porque é cruel demais saber que a vida é única e que não temos como garantia senão a fé em trevas – porque é cruel demais, então respondo com a pureza de uma alegria indomável. Recuso-me a ficar triste. Sejamos alegres. Quem não tiver medo de ficar alegre e experimentar uma só vez sequer a alegria doida e profunda terá o melhor de nossa verdade. Eu estou – apesar de tudo oh apesar de tudo – estou sendo alegre neste instante-já que passa se eu não fixá-lo com palavras. Estou sendo alegre neste mesmo instante porque me recuso a ser vencida: então eu amo. Como resposta. Amor impessoal, amor it, é alegria: mesmo o amor que não dá certo, mesmo o amor que termina. E a minha própria morte e a dos que amamos tem que ser alegre, não sei ainda como, mas tem que ser. Viver é isto: a alegria do it. E conformar-me não como vencida mas num allegro com brio.
Aliás não quero morrer. Recuso-me contra ‘Deus’. Vamos não morrer como desafio?
Não vou morrer, ouviu, Deus? Não tenho coragem, ouviu? Não me mate, ouviu? Porque é uma infâmia nascer para morrer não se sabe quando nem onde. (...)”

Lispector, Clarice. Água viva

A CARA DO ESPELHO
Guto Graça Mello – Nelson Motta

Às vezes pergunto pra cara do espelho
Que olhos são esses que sonhos não mostram
Que medos disfarçam
Que dores escondem
Nenhuma resposta
Só novas perguntas

Que um dia eu me veja na cara de espelho
Do jeito que eu sou
Não da forma que penso
Que quero que seja
E nunca esconda de mim
A procura de um mais que perfeito
Quisera, quisera,
Quisera, quisera,
Quisera saber
Se deuses e santos
São loucos que pensam
Ser loucos e santos
E olhos do espelho
Refletem su luz

Que um dia eu me veja na cara do espelho
Coberta de trapos, de medos, de cores
De falsos amores, morrendo, nascendo
No mais que presente, vivendo, vivendo

Quisera, quisera,
Quisera, quisera
Quisera saber
Se deuses e santos
São loucos que pensam
Ser loucos e santos
E os olhos do espelho
Refletem su luz

Do espetáculo “Feiticeira”, que Marília Pêra estrelou em 1975.



TÊMPERA
Gonzaguinha

Têmpera
As deusas têm é têmpera
Pura energia e têmpera
Pura magia e têmpera
Temperatura e paixão
É que as mulheres sempre estão
É que as mulheres sempre dão
É que as mulheres sempre são
Sempre serão
A chave de seu tempo
O charme de uma etapa
O tapa na acomodação
O vírus da alegria
O amor
E o nó da solidão
O brilho e a explosão da estrela
Alimentando os corações
Temperar!
Têmpera
Mulheres têm é têmpera
Toda energia e têmpera
Toda magia e têmpera
Têmpera


MORRER DE AMOR
Oscar Castro Neves – Luvercy Fiorini

Andei sozinha,
Cheia de mágoas,
Pelas estradas
De caminhos sem fim.
Tão sem ninguém
Que pensei até
Em morrer, em morrer.


TEXTO DE ANDRÉ VALLE

Eu sempre pensei no teatro como sendo um grande e mágico parque de diversões. Cheio de truques, de sensações novas e surpreendentes. Pode parecer uma definição ingênua, pouco profunda, mas é a partir daí que acontece o meu trabalho. (...)

Do espetáculo “Elas por Ela”, que Marília Pêra estrelou em 1989.