sábado, 30 de abril de 2011

'TAMBOR DE TODOS OS RITMOS II'

RESPOSTA  AO  TEMPO
Aldir Blanc - Cristovão Bastos

Batidas na porta da frente
É o tempo
Eu bebo um pouquinho
Pra ter argumento

Mas fico sem jeito,
Calado, ele ri
Ele zomba
Do quanto eu chorei
Porque sabe passar
E eu não sei

Num dia azul de verão
Sinto o vento
Há folhas no meu coração
É o tempo

Recordo um amor que perdi
Ele ri
Diz que somos iguais
Se eu notei
Pois não sabe ficar
E eu também não sei

E gira em volta de mim
Sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro
Sozinhos

Respondo que ele aprisiona
Eu liberto
Que ele adormece as paixões
Eu desperto

E o tempo se rói
Com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor
Pra tentar reviver

No fundo é uma eterna criança
Que não soube amadurecer
Eu posso, ele não vai poder
Me esquecer


ORAÇÃO AO TEMPO

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo Tempo Tempo Tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo Tempo Tempo Tempo

Compositor de destinos
Tambor de todos os rítmos
Tempo Tempo Tempo Tempo
Entro num acordo contigo
Tempo Tempo Tempo Tempo

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo Tempo Tempo Tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo Tempo Tempo Tempo

Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo Tempo Tempo Tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo Tempo Tempo Tempo

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo Tempo Tempo Tempo
Quando o tempo for propício
Tempo Tempo Tempo Tempo

De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo Tempo Tempo Tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo Tempo Tempo Tempo

O que usaremos pra isso
Fica guardado em sigilo
Tempo
Tempo
Tempo Tempo
Apenas contigo e comigo
Tempo Tempo Tempo Tempo

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Não serei, nem terás sido
Tempo Tempo Tempo Tempo

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo Tempo Tempo Tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo Tempo Tempo Tempo

Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo Tempo Tempo Tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo Tempo Tempo Tempo

VELOSO, Caetano. Letra só; sobre as letras / Caetano Veloso; organização Eucanaã Ferraz – São Paulo: Companhia das Letras, 2003.


TEMPO REI

Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo
Transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos
Pães de Açúcar
Corcovados
Fustigados pela chuva e pelo eterno vento
Água mole
Pedra dura
Tanto bate que não restará nem pensamento

Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei

Pensamento
Mesmo fundamento singular do ser humano
De um momento
Para o outro
Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos
Mães zelosas
Pais corujas
Vejam como as águas de repente ficam sujas
Não se iludam
Não me iludo
Tudo agora mesmo pode estar por um segundo

Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei

GIL, Gilberto. Gilberto Gil: todas as letras: incluindo letras comentadas pelo compositor / organização Carlos Rennó – São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

'TAMBOR DE TODOS OS RITMOS' (de 'Oração ao Tempo', Caetano Veloso)

O GRANDE CLANDESTINO
Colaboração do amigo Rondinelli Thomazelli
 
Eu me distraio muito com a passagem do tempo.
Chego às vezes a dormir. Durmo meses e anos. O tempo então aproveita e passa escondido. Mas que velocidade.

Basta ver o estado das coisas depois que desperto; quase todas fora do lugar, ou desaparecidas; outras, com uma prole imensa; outras ainda alteradas e irreconhecíveis.
Se durmo de novo, e acordo, repete-se o fenômeno.
Sempre pensei que o tempo fizesse tudo às claras. Oh, não...
Eu queria convidá-los a assistir ao que ele tem feito comigo. Mas é espetáculo todo íntimo e não disponho de tribunas. 

Além do mais, o tempo em pessoa é praticamente invisível, como a ventania. Só se pode apreciar o resultado do seu trabalho, nunca a sua maneira de trabalhar.
O que é preciso é nunca dormir e ficar vigilante para obrigá-lo ao menos a disfarçar de suas metamorfoses.

É de fato penoso deixar de ver as coisas tais como as vimos a primeira vez. O tempo tudo transforma e arrasa, sem nos dar aviso.
Ora, isso entristece. Isso nos deixa intranquilos. A não ser que nos misturemos com ele, façamos dele um aliado.

Ai, sim, destruição e reconstrução se confundem. Sacos e sacos vão se enchendo e esvaziando toda a vida. Perde se até a ideia da morte. Então a gente aproveita para erigir sistemas, tomar iniciativas, amar, lutar e cantar. O tempo fica assim tão escondido dentro de nós que se tem a impressão que fugiu para sempre e se esqueceu.
 
Em verdade, ele não repousa nunca. Nem mesmo nas pirâmides. Nem nos horizontes onde parece pernoitar.

Rói as pedras como o vento, rói o osso como o cão. O que mais admira é a extrema delicadeza com que pratica essas violências.

Todos falam de sua impassibilidade. Não é bem isso. Tanto assim que aumenta a velocidade à medida que nos distanciamos de nossas origens e quase para quando esperamos a solidão.
Meu mal é sentir-lhe a passagem como a de um animal na noite. Chego quase a tocar nele. Fico horas à janela vendo-o passar. É um vício.
 
Oh, como se diverte... Para ele, destruir uma árvore, um rosto, uma instituição, uma catedral... tanto faz.
O desagradável é quando de repente se retira dalgum objeto ou de alguém. É claro que prossegue depois, mas deixa uma coisa morta. Franqueza, nessa hora da um aperto no coração, uma nostalgia...
Contudo, não se deve ligar demasiada importância ao tempo. Ele corre de qualquer maneira.
E é até possível que não exista.
Seu propósito é envelhecer o mundo.
Mas a resposta do mundo é renascer sempre para o tempo.


MACHADO, Aníbal. Seleta em prosa e verso, 1974.



TEMPO E ARTISTA
Chico Buarque

Imagino o artista num anfiteatro
Onde o tempo é a grande estrela
Vejo o tempo obrar a sua arte
Tendo o mesmo artista como tela

Modelando o artista ao seu feitio
O tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor da boca
Como contrapesos de um sorriso

Já vestindo a pele do artista
O tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor subindo ao palco
Apenas abre a voz, e o tempo canta

Dança o tempo sem cessar, montando
O dorso do exausto bailarino
Trêmulo, o ator recita um drama
Que ainda está por ser escrito

No anfiteatro, sob o céu de estrelas
Um concerto eu imagino
Onde, num relance, o tempo alcance a glória
E o artista, o infinito

http://www.chicobuarque.com.br/construcao/index.html

O TEMPO

A eternidade não depende de nós.
Precários seres, manchados de limites,
incapazes de dar vida
a qualquer coisa que dure para sempre,
já nasceram soletrando o Never more.
Tudo o que o homem faz é perecível.
A começar pelo próprio homem,
ração diária predileta
do tempo, desde o instante
em que o tempo acompanhou
a expansão de uma galáxia:
um pássaro invisível,
as asas cheias de auroras,
de cujo bico escorria
o silêncio do arco-íris.

MELLO, Thiago de. Poemas preferidos pelo autor e seus leitores: edição comemorativa dos 75 anos do autor / Thiago de Mello. - 4ª ed. - Ro de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. 

sexta-feira, 29 de abril de 2011

O PARAÍSO É AQUI

                                                                        Fotos: Fábio Brito


Fábio Brito             
                                      
“O paraíso é aqui”, ou “The paradise is here”, cantou Tina Turner. Ouso dizer que o paraíso é mais perto do que imaginamos. Em um cantinho próximo ao “Camping do Jubarte” e depois da “Praia dos Cações”, em Marataízes/ES, fui apresentado a um local agradabilíssimo, um pedacinho de praia esquecido – ainda bem - pelo que chamam de progresso.
Foi nesse cantinho que Glauber Benincá Coelho construiu sua “casa de vidro”, batizada assim por sua mãe, Cecília, e seu pai, Jairo. Cercada de casuarinas, a casa se destaca na paisagem. Do segundo piso, onde fica um espaçoso e arejado quarto, é possível assistir ao nascer do sol todos os dias. Depois que um alaranjado imenso se forma ao fim do horizonte, eis que, imponente, surge a “hóstia incendiada”*. É Cecília quem nos conta do prazer quase inenarrável que é assistir a esse espetáculo todos os dias: “Lá, não é a gente que vê o sol nascer. É o sol que nos acorda”. Ela também nos conta da beleza que é o surgimento da lua. É indescritível seu brilho prateado refletido no mar, tanto que, dias atrás, dois “perdidos” apareceram por lá. Foram conferir o esplendor da lua, ainda mais bonita nesse cenário. Não deve mesmo bater a mínima vontade de sair desse mundo paradisíaco, tamanho é o encanto do lugar e de sua já famosa “casa de vidro”.
Em meio a galinhas com pintinhos e a poucas casas de outras pessoas que também buscam a tão sonhada paz, Glauber deixa Frederico, seu filho de 7 anos, mais do que à vontade. Assim como o pai, o garoto também parece dar muito valor ao prazer, que nasce – e se perpetua – quando se faz aquilo de que se gosta. Não há dinheiro que pague isso. Nos fins de semana, o roteiro da família já está definido: a “casa de vidro”. É também nesse espaço que Glauber dá aulas a quem quer aprender a velejar e, em breve, vai inaugurar uma pousada em que tudo é rústico: da pia, uma panela de barro estilizada, aos lustres, todos em corda. Nos feriados, a lotação está sempre esgotada. 
Ao visitar esse paraíso e conhecer sua “casa de vidro”, foi inevitável não lembrar alguns versos do poema “Fluência”, de Adélia Prado: “O relógio bateu sem assustar os farelos sobre a mesa / Como antes, graças a Deus”. Pois é, o silêncio, a calmaria e a paz parecem ter parado o tempo ‘pra’ gente descansar, como dizem por aí. Ali, o tempo não segue seu curso frenético e neurotizante. Ele é parceiro de quem quer manter alma e coração tranquilos, longe do estresse da cidade e seu dia a dia atrás de dinheiro. É Cecília quem nos relata ainda que, na virada do ano, as pessoas que lá estiveram não deixaram por menos no momento de fazer o grande pedido: “Esperamos que o progresso nunca chegue por aqui”. Tomara!   

P.S.: Gláuber é meu primo.        
*
Expressão extraída da letra da canção “Iluminada” (Frederic Chopin - adaptação de Ary Sperling e Aldir Blanc, gravada por Ithamara Koorax em seu álbum “Serenade in blue – my favorite songs, de 2000)




terça-feira, 26 de abril de 2011

BASTANDO A SI MESMA

Foto: Fábio Brito
FORTALEZA
(Chico Buarque - Ruy Guerra)

A minha tristeza não é feita de angústias
A minha tristeza não é feita de angústias
A minha surpresa
A minha surpresa é só feita de fatos
De sangue nos olhos e lama nos sapatos
Minha fortaleza
Minha fortaleza é de um silêncio infame
Bastando a si mesma, retendo o derrame
A minha represa

O CORAÇÃO DO AMOLADOR

Foto: Fábio Brito
Pobre de quem acredita
Na glória e no dinheiro para ser feliz
(Dorival Caymmi)

O sábio Caymmi, nosso "Buda Nagô", como bem disse o Gil, tem  razão. Adorei essa placa! Dentro do coração, o dono do estabelecimento dá seu recado, "vende seu peixe", como dizem. Desconfio de que ele é feliz. E por falar em felicidade, não me canso de ouvir "Felicidade", de João de Barro, nosso amado Braguinha, e Antônio Almeida, imortalizada por Nora Ney e Maria Bethânia:
Para que tanta ambição, tanta vaidade?
Procurar uma estrela perdida
Quase sempre o que nos dá felicidade
São as coisas mais simples da vida

Felicidade é uma casinha simplesinha
Com gerânios em flor na janela
Uma rede de malha branquinha
E nós dois a sonhar dentro dela

FLORES POR TODOS OS LADOS

Foto: Fábio Brito
Há flores cobrindo o telhado
E embaixo do meu travesseiro
Há flores por todos os lados
Há flores em tudo que eu vejo
(Tony Bellotto / Sérgio Britto / Charles Gavin / Paulo Miklos)

NÃO É SÓ PARIR

            
            Fábio Brito
Para minha mãe e minha amiga Graça Freire, mães presentes, sensatas e amorosíssimas.

Quando pequeno, nas escolas, sempre que tínhamos de preparar alguma atividade para homenagear as mães, era quase impossível alguém não aparecer com o último verso do poema “Ser mãe”, de Coelho Neto: “Ser mãe é padecer num paraíso”. Naquela não tão distante década de 70, esse poeta era presença garantida nas escolas, principalmente no ‘Dia das Mães’.
E por falar em Coelho Neto e, em especial, no poema citado, Torquato Neto, em 1968, escreve a letra de “Mamãe, coragem”, musicada por Caetano Veloso e gravada por Gal Costa no antológico “Tropicália ou panis et circensis”. Torquato toma emprestada a definição de Coelho Neto, “Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração”, mas acrescenta “dos filhos”. Em toda a letra, nosso poeta piauiense e do mundo acaba, de certa forma, desmitificando a imagem da mãe, um dos ícones mais sagrados e respeitados da sociedade.
            Será que, hoje, ainda resiste a figura da mãe mitificada? Sempre digo que as mães, por mais amorosas e preocupadas que sejam, não estão em um altar. E é muito bom - para elas, inclusive – que sejam vistas assim, como figuras humanas. Caso contrário, até assexuadas passam a ser, como algumas que todos conhecemos: uns verdadeiros seres extraterrestres. O detalhe mais cruel é que muitos filhos (filhos, filhos!) não suportam a ideia da mãe ‘sexualizada’. Para muitos, mãe pertence a outra ‘categoria’, a do surreal. É mais ou menos assim: passou a ser mãe, tudo o mais deixou de existir, o sexo principalmente. Que crueldade, não?!
Pois bem, se as mães não podem – ou não devem – ser vistas como não humanas, que tal pensarmos no seguinte: nem sempre elas têm razão, nem sempre estão corretas em tudo, nem sempre são ponderadas, nem sempre, nem sempre... Pausa: não estou desconsiderando a ‘intuição’, que parece estar no DNA de todas e é algo fortíssimo. Ih! Quem sou eu para ‘me’ meter nessa pequena área.
            Para todas as mães, independentemente de rótulos e catalogações e por mais ‘voz geral corrente’ que pareça, não deve estar nada fácil pôr filho neste mundo que temos aí. Fico pensando nas mães de muitos “guris” com quem convivemos, em quem esbarramos em muitos lugares. Na letra da canção “O meu guri”, de Chico Buarque, fica claro que o sentimento da mãe esconde, de maneira consciente ou não, que seu “rebento” é um delinquente, um ‘marginal’, como muitos dizem. A mãe, por sua vez, não vê – ou não quer ver – o que todos enxergam. Fica evidente que o sentimento de amor materno é soberano, está acima de tudo: “Chega suado e veloz do batente / E traz sempre um presente pra me encabular / tanta corrente de ouro, seu moço / Que haja pescoço pra enfiar / Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro / Chave, caderneta, terço e patuá / Um lenço e uma penca de documentos / Pra finalmente eu me identificar (...).” Sempre que, na TV, por exemplo, interrogam a mãe de algum delinquente, a resposta, invariavelmente, é esta: “Meu filho não! O amigo dele, sim, é ‘errado’”. Ou seja, os delinquentes não têm mãe. O bandido é sempre o amigo do filho.  
            Se o amor materno é soberano, mãe não dorme. Sempre ouvi isso. E não dorme mesmo. Adélia Prado é categórica: “Há os sobressaltos, sim, as horas turvas da noite, quando se pode acordar com os passos felinos de alguém seguindo nossa filha, nosso rapaz pelas esquinas do mundo”. Quando os rebentos crescem, é bobagem pensar, como diz minha mãe, que as preocupações cessam. Só aumentam. Entretanto, é bom lembrar que nem todas as mães são amorosas e preocupadas.
            Fiquemos, pois, com as amorosas. Muitas são possessivas, não? Assim, é difícil imaginar ‘onde termina a mãe e começa o filho’. Aos pouquinhos, insidiosamente, elas vão levando a mudança “lá para dentro” dos filhos: um dia, jogam um sapato; noutro, uma peça de roupa. De repente, instalaram-se lá para sempre. Passaram a morar definitivamente dentro dos filhos. Por mais que a justificativa seja o ‘amor imensurável’ e incondicional, ambos saíram perdendo nessa história, porque deixaram de ter vida própria. Está parecendo filosofia barata, não está? “Né” não. É ‘coisa’ que muitos vivenciam...
























segunda-feira, 25 de abril de 2011

GOGÓ DE OURO

http://www.youtube.com/results?search_query=Ithamara+Koorax+sonho+de+um+sonho


Ithamara Koorax é uma intérprete altamente sofisticada. Ela é simplesmente idolatrada por quem sabe o que é “cantar extraordinariamente bem”. Foi eleita (não só uma vez) pela Down Beat, a “bíblia do jazz”, uma das melhores cantoras do mundo. É pouco? Para mim – e para muita gente – ela é a melhor. A voz é mais do que excepcional: atinge notas altíssimas e tem o poder de nos deixar arrepiados. Quando – no programa Mulher 90, apresentado pela Rede Globo - ouvi-a cantando Se eu quiser falar com Deus (Gilberto Gil) [Se eu quiser falar com Deus / Tenho que ficar a sós / Tenho que subir aos céus / Sem cordas pra segurar (...)], não me contive: chorei de emoção. Indescritível a sensação de ouvir Ithamara. Ao ouvi-la, é impossível não lembrar estes versos de “Quando eu estiver cantando” (Cazuza / João Rebouças): “(...) Tem gente que recebe Deus quando canta / Tem gente que canta procurando Deus (...)”. Essa moça, quando canta, percorre regiões que raríssimos intérpretes ousam percorrer. Músicos do calibre de Sadao Watanabe, Eumir Deodato, Paulo Malaguti, Ron Carter, Dom Um Romão, Gonzalo Rubalcaba, José Roberto Bertrami e muitos outros tocam, ou já tocaram, com ela. É respeitadíssima entre eles. Sua gravação de Manhã de carvanal, de Luiz Bonfá, tema principal de Orfeu Negro, é o registro mais bonito dessa canção que já ouvi até hoje: “Manhã, tão bonita manhã (...)”. O primeiro de seus discos que conheci foi Rio vermelho, nome de uma canção pouco conhecida de Milton Nascimento, Danilo Caymmi e Ronaldo Bastos. Lendo Os sonhos não envelhecem – histórias do Clube da Esquina, de Márcio Borges, irmão do Lô, constatei que a letra dessa canção também é um daqueles petardos contra o período ditatorial aqui no Brasil: “Vim / Eu vim / Cercado de bandeiras, correnteza / O campo cortava / Quem vem comigo é coragem / E certeza de rumo pra seguir / Vim cercado / Sonhei o tempo clareando / E me sentia um rio ferido de morte / Ainda à espera do mar para morrer (...)”. A interpretação é de um vigor ímpar. Sua voz se abre para o mundo. A força da voz de Ithamara está mais do que explícita nessa canção de cores tão fortes. Nesse mesmo Rio vermelho, não há como não ficar estupefato com a regravação de Sonho de um sonho, samba-enredo da Vila Isabel em 1980, de Martinho da Vila, Rodolfo de Souza e Tião Graúna, em homenagem ao poeta Drummond: “Sonhei / Que estava sonhando um sonho sonhado / O sonho de um sonho / Magnetizado / As mentes abertas / Sem bicos calados / Juventude alerta / Os seres alados (...)”. Ithamara virou a canção do avesso. Soltou a voz, como dizem. Quando a ouço, presto atenção em todos os detalhes, em todas as notas, em todos os silêncios, em todas as intenções. Sua interpretação de Índia [“Índia teus cabelos / Nos ombros caídos / Negros como a noite que não tem luar / Teus lábios de rosa / Para mim sorrindo (....)] (J. A. Flores / M. O. Guerreiro – versão: José Fortuna), por exemplo, é um primor. Ithamara é tecnicamente perfeita, mas, assim como Elis, não perde – um minuto sequer – a emoção. Em Serenade in blue, pude perceber claramente a beleza de Dio come ti amo, de Domenico Modugno, um dos grandes clássicos da canção italiana: “(...) Dio come ti amo non é possibile / Avere fra le braccia tanta felicitá (...)”. Ithamara fez uma gravação arrepiante dessa canção. Que voz! Elizeth Cardoso, sua madrinha artística, chamava-a de “gogó de ouro”, o que é perfeito para uma voz sem igual. Ithamara é a maior cantora do mundo.


CAMINHANDO ANTES DA VIDA

(...) a Literatura, caminhando antes da vida, lhe vai insinuando os caminhos que pode seguir. (...) E assim como a saúde precisa de ser conservada mediante o alimento e o exercício, parece que a saúde psicológica tem de ser conservada no decorrer da própria vida, mediante a 'alimentação' em nível de símbolos afetivos: pela Literatura, que nos conduz a novas fontes de fruição; pela Literatura, que nos faz sentir que não estamos sozinhos em nossa miséria; pela Literatura, que expõe nossos problemas a uma nova luz; pela Literatura, que sugere novas possibilidades e nos abre novos campos de experiência (...)

Massaud Moisés

sábado, 23 de abril de 2011

DAS VANTAGENS DE SER BOBO

      'Dona' Clarice Lispector, uma das maiores escritoras do mundo, dispensa comentários.


-          O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo.
-          O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando”.
-          Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.
-          O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem.
-          Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas.
-          O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver.
-          O bobo nunca parece ter vez.  No entanto, muitas vezes o bobo é um Dostoievski.
-          Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era a de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro.
-          Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.
-          O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo nem nota que venceu.
-          Aviso: não confundir bobos com burros.
-          Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a frase célebre: “Até tu, Brutus?”
-          Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
-          Os bobos, com suas palhaçadas, devem estar todos no céu.
-          Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
-          O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.
-          Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos.
-          Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham vida.
-          Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.
-          Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita o ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!
-          Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.
-          É quase impossível evitar o excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

LISPECTOR, Clarice. In A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.  

ZÉ NA MARGEM

A prosa mais que poética de Noll...

João Gilberto Noll

Ficava gemendo na beira do rio. Um gemido que só ele próprio ouvia, se tanto. “Por quê?”, indagariam se pudessem escutar. Mas ninguém perguntava nada àquele homem que ordenhava no escuro do estábulo. E que lá mesmo dormia. Para ele, gemer nas margens da correnteza era tão natural quanto olhar a igreja na praça. Via pessoas limpando, varrendo. Pareciam querer espelhar os ambientes no prateado do rio. Entrou na água como se procurasse interromper a mania de olhar. Veio uma coisa mais pesada do que nuvem. A pálpebra da lua. Que desceu.

Folha de S.Paulo, 25-11-99 (“Relâmpagos”)

quinta-feira, 21 de abril de 2011

QUE UNIFICAÇÃO?

          Fábio Brito
         
         Já faz algum tempo que vimos recebendo notícias, que não cessam, acerca do Novo Acordo Ortográfico. Não raro, muitas pessoas, leigas ou não, envolvem-se ‘em’ julgamentos, avaliações acerca desse tratado. Antes, porém, é necessário que saibamos o que é, afinal, esse Acordo?
         O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 é, grosso modo, um tratado internacional cujo propósito é criar uma “ortografia unificada da língua portuguesa”, que será usada por todos os países que a têm como língua oficial.
          Entre as principais mudanças instituídas, podemos elencar estas:
          I) O alfabeto passa a ter 26 letras. Houve a incorporação de k, w e y.
          II) Cai o acento circunflexo:
          a) De palavras terminadas em hiato oo: voo, enjoo...;
         b) Nas terceiras pessoas do plural do Pres. do Ind. dos verbos crer, ler e ver (Eles creem, veem e leem) ou do Pres. do Subj. do verbo dar (Que eles deem);
          III) Cai o agudo:
          a) Dos ditongos tônicos EI e OI das paroxítonas: heroico, ideia...
          Dicas importantes:
        1) Se, mesmo incluída nesse caso, a palavra enquadrar-se em regra de            acentuação, ela continuará a ser acentuada: destróier (paroxítona terminada em R);
         2) Cai o acento dos ditongos tônicos EI e OI das paroxítonas. As oxítonas continuarão a ser acentuadas. Heroico, por exemplo, perde o acento. Herói não.
        b) Do I ou U tônicos de um hiato (sozinhos em uma sílaba ou seguidos de S), quando precedidos de ditongo: feiura, baiuca...
       Dicas importantes:
       Mesmo apresentando essas condições, as palavras continuarão recebendo acento se:
1)     Forem proparoxítonas: maiúsculo...;
2)     Não forem precedidos de ditongo: saúde, saída...;
3)     Forem oxítonas e o I ou o U estiverem em posição final, sozinhos na sílaba ou seguidos de s: Piauí, tuiuiú...;
    IV) Cai, “de direito”, o trema, representado pelos dois “pinguinhos” que marcavam a pronúncia do U nos grupos GUE, GUI, QUE, QUI. De fato, muitas pessoas já haviam abolido esse sinal.
      Dica importante:
      Não haverá mudança na pronúncia das palavras.
      V) As formas verbais pôr e pôde continuarão acentuadas.     
      VI) Ficam também mantidos os acentos de têm (verbo ter) e vêm (verbo vir).
     VII) Quanto ao hífen, o assunto parece inesgotável. No entanto, focaremos alguns casos envolvendo prefixos. Deve-se:
      a) Eliminar o hífen:
     Se a última letra do prefixo e a primeira da segunda palavra forem vogais diferentes: plurianual, autoescola, infraestrutura, socioeconômico, pseudoalucinação, autoestrada.
      b) Usar o hífen se:
       1) A última letra do prefixo e a primeira da segunda palavra forem vogais iguais: micro-ondas, anti-inflacionário, arqui-inimigo, auto-observação;
       2) A última letra do prefixo e a primeira da palavra seguinte forem consoantes iguais: inter-racial, sub-base, super-revista, ad-digitalizar;
     3) O prefixo terminar ‘com’ acento gráfico: pré-datado, pré-escola, pré-requisito, pós-graduação.
     4) O prefixo terminar por b ou d e a primeira letra da segunda palavra for r: ab-rupto, sub-reitor, ab-rogar.
     5) A última letra do prefixo for vogal, r ou b e a primeira da segunda palavra for h: sobre-humano, super-homem, sub-humano.
     Sobre as mudanças ‘em si’, é importante ressaltarmos muitas “iscas para polêmica”. Uma delas é, por exemplo, a subjetividade empregada na redação. Observem: “Certos compostos, em relação aos quais se perdeu, em certa medida, a noção de composição, grafam-se aglutinadamente: girassol, madressilva, mandachuva, pontapé, paraquedas, paraquedista, etc.” Não há como negar que a expressão “em certa medida” é vaga. Como saber quais são os compostos “em relação aos quais, em certa medida”, ficou perdida - “em algum lugar do passado” - a “noção de composição”? Querem mais? Por que, em lugar de “etc.”, que, em bom latim, significa “e outras coisas”, não listam todos os compostos que perderam a noção de composição? Em “etc.”, cabe o mundo. 
   Ampliando um pouco a discussão acerca de pontos polêmicos do Acordo, podemos “apimentar” um pouco mais o debate. Querem ver? Para muitos defensores, a língua portuguesa, por meio da instituição de uma ortografia oficial única, ganhará mais prestígio internacional, ficará mais forte. Será? Basta pensarmos no inglês, cuja projeção está associada a fatores entre os quais não figura, obviamente, a unificação ortográfica.
   Querem mais pimenta? Dizem que, em se tratando das “variantes escritas da língua portuguesa”, o tratado tenta resolver um problema que não existe, uma vez tais variantes não afetam a inteligibilidade da língua. As obras do escritor português José Saramago, por exemplo, são publicadas aqui no Brasil na grafia lusitana. E não há necessidade de “tradução”.
    Outro argumento contra diz respeito à padronização gráfica, que é uma utopia, uma vez que, na fala corrente, ela nunca se concretizará. Será que as línguas “são o que são” em decorrência de acordos ou decretos governamentais? Em toda essa discussão, que peso tem o uso que os falantes fazem da língua? Pois é, muitas discussões ainda serão travadas sobre esse Acordo. Esperemos...


O BICHO-PAPÃO

Fábio Brito

Sempre que anunciam "prova do ENEM", o Exame Nacional do Ensino Médio, minha caixa postal fica abarrotada: muitas pessoas enviam-me as denominadas "pérolas" desse EXAME, cuidadosamente selecionadas e acompanhadas de sarcásticos comentários. Esse quadro seria cômico, se não fosse tão preocupante, tão trágico. O que vejo nessas “pérolas”, e em diversas redações de vestibular, não é simplesmente um “amontoado” de lugares-comuns, mas, em muitos casos, a desagregação do curso do pensamento. Assustador isso.           
Não podemos esquecer que essas tais "pérolas" vêm de um fosso assustador: a falta de expressão de jovens sem discurso. Além de comprovarem que nossa juventude 'articula mal o pensamento', também encobrem outros males cujas raízes são bem profundas e têm sua origem, basicamente, em quatro troncos (vou denominá-los assim) bem conhecidinhos: FAMÍLIA, ESCOLA, PROFESSORES e ESTADO.            
De cara, um susto: por que PROFESSORES ? Contradição? Nada disso! A explicação é bem simples: muitos profissionais da educação – não só os professores - não leem. Foquemos, pois, os professores: todos, independentemente da disciplina que ministram, precisam de muita (muita mesmo!) leitura, a fim de que saibam usar - com competência - a língua. Entretanto, quando interrogados sobre esse mal que ‘não’ os aflige (que pena!) há tempos, as respostas (ou seriam desculpas?) são muitas: falta de estímulo, alto preço dos livros (ou das revistas, ou dos jornais), baixos salários... e por aí vai. Claro que esses fatores não devem ser descartados pura e simplesmente. Não há como negá-los. No entanto, eles não podem ser eternamente usados como escudo para a incapacidade que muitos têm de lidar com a linguagem em seus diversos aspectos, sejam eles sociais, políticos, antropológicos, culturuais. Confesso que estou um pouco cansado dessa ladainha, dessa cantilena, dessas desculpas, dessa eterna vocação para vítima.
               Nessa história (triste história!) acerca da falta de expressão de nossos jovens, que papel cabe à FAMÍLIA? O mesmo que cabe ao professor: de agente que também fomenta a "desexpressão" de crianças e jovens. Sempre digo que são poucas as chances de uma criança tornar-se leitora se seus pais (ou irmãos, ou primos, ou tios, ou avós...) não leem, se a leitura não faz parte de seu dia a dia, se não é algo natural para as pessoas da casa. A criança também aprende por observação, o que não é novidade para ninguém. Se ela puder ver pessoas próximas lendo, terá grandes chances de ser leitora, de desenvolver o prazer (não é hábito!) da leitura, de gostar de ler, de envolver-se com o que lê, de exercer sua cidadania, de enfrentar o mundo. No entanto, se a família nada lê... 
              Indo mais adiante, focando o ESTADO, importante frisar que os problemas que envolvem políticas educacionais e culturais não são de hoje. É sabido que, quando colônia, nosso país não teve qualquer apoio quanto ao que chamamos desenvolvimento cultural, é claro! Fica evidente, assim, que as raízes desse mal - o problema da cultura, da leitura - vêm de longe, são bem antigas.  
               A ESCOLA, outro tronco, também tem sua responsabilidade... e grande. Bem disseram que a escola escolariza, mas não cria o leitor e, consequentemente, o competente produtor de textos. Ela manda ler e escrever, mas não ensina a ler e a escrever. Por incrível que possa parecer, a ESCOLA tem imensa responsabilidade na não formação de leitores. Que esquisito, não? É preciso entender que, primeiro, escolariza-se; depois, educa-se por meio da cultura e da arte. Não é difícil compreender isso.
Outro ponto nevrálgico é a fragmentação do conhecimento (e da capacidade de racionar) por meio do isolamento das disciplinas, que, em muitas escolas, ainda se mostram como compartimentos estanques. A tão decantada interdisciplinaridade - de fato - não existe. O que há é um arremedo disso.
Se a leitura está inserida em quadro tão desalentador em nosso país, como discutir cidadania e possibilitar que as pessoas possam exercê-la? Falam, falam e falam em democracia. No entanto, o que vejo é muito mais uma democracia do voto do que da cidadania. Leitura é um modo de viver, de ser, de estar no mundo, de desafiá-lo, de enfrentá-lo. Parafraseando Schopenhauer, o prazer da leitura não está no que se lê, mas naquilo que se faz com o que se lê.

HÁ ALGO DETERIORADO NO REINO DA EDUCAÇÃO

            Fábio Brito
Em 1982, para ser preciso, Ney Matogrosso, com participação de Rita Lee, gravou UAI, UAI, parceria da própria Rita com Roberto de Carvalho. Em seus versos, a canção nos diz: “Professor que não sabe o bê-a-bá, shhh / Faz de conta que ninguém viu nada, oi / Faz de conta que ninguém viu nada”.
Pois é, são esses versos que servirão de mote para esta historinha, que é bem simples (ou não!): manhã de um outono convidativo. Um grupo de professores e “professores” de disciplinas “que abrem horizontes”, como muitas pessoas apregoam, sai de sua cidade (pense, leitor, em uma cidade fictícia) em direção à capital. Logo de saída, já ocorre o primeiro pecado: o velho e conhecido atraso. Tudo bem. O problema é dos chatos e certinhos que gostam de tudo “direitinho”.
O objetivo da viagem é a visita a uma exposição cultural. No grupo, infelizmente, há os que não demonstram qualquer interesse pela exposição e passam rapidamente pelo local. Querem mesmo é o shopping, sonho de nove entre dez estrelas das salas de aula. Daí a pressa no espaço da exposição. Exagero? Não sei.
E o grupo não só vai ao shopping, como sai de lá feliz que só vendo. A felicidade é tanta que houve gente que, literalmente, ficou perdida naquele “país das maravilhas”. Sacolas e mais sacolas! Muitos, nessa hora, devem ter desejado, em vez de braços, tentáculos. Só dois braços?! Sem querer ser pessimista, desconfio de que em nenhuma das sacolas havia livros. Para quê? Livros as pessoas “pegam emprestado”, não é? Depois, nem os devolvem, o que tem sua coerência: por que devolver o que não é importante? Ah, e só leem quando “rola” uma obrigação.   
Cabe, aqui, pensar nas crianças educadas por esses “professores”. Desnecessário dizer que, em meu elenco de bons professores (é provável que essa expressão, “bons professores”, tenha sido pleonasmo algum dia), de fora estão os ratinhos de shopping. Você, leitor, que deve estar pensando em minha provável caturrice, em minha rabugice, perguntará: “Quer dizer, então, que professor não pode ir a shopping?” Pode! O problema não é o shopping, mas o valor que se dá à aparência e às futilidades, ao consumismo desenfreado. E o pior é que esse consumismo não tem nada a ver com o que chamamos de “bens culturais”. Consomem-se as futilidades mesmo. As pessoas continuam valendo pela aparência, pelo carro que têm, pelo cargo que ocupam. Até pelo último modelo de celular, ou pelo iPad 2, que acabaram de comprar. Que pena! E os professores não estão fora dessa “roda”.   
Professor tem de ter embasamento cultural. Professor tem de consumir livros, revistas, jornais. Tem de ir a teatro. Tem de assistir a bons filmes e a bons programas de TV. Tem de ouvir boa música. Professor tem de estar “antenado”. Professor, antes de tudo, tem de ser professor-leitor.  
Voltemos aos versos de UAI, UAI: “Professor que não sabe o be-a-bá shhh / Faz de conta que ninguém viu nada, oi / Faz de conta que ninguém viu nada”. Até quando? Até quando teremos de tapar o nariz sempre que o cheiro não for muito agradável? Outros versos da mesma canção dizem o seguinte: “Burro que não gosta de capim / Tá com ‘arguma’ coisa errada, oi”. Pois é, professor que não gosta do que faz “tá” com “arguma” coisa errada. Talvez a vocação seja outra.  

TARDANÇA

Fábio Brito

Certa vez, ouvi isto: “Espera-se muito neste país”. Espera-se mesmo! Por tudo e em todos os lugares. E quem espera fica, não raro, aborrecido, não é mesmo? Aborrecido é pouco. Há pessoas que vão além do aborrecimento: chegam às brigas, aos xingamentos, às gritarias. Sem razão? Talvez não.
Já repararam, por exemplo, que, quando algo (ou alguém) entra no circuito do consumo, o tempo de espera aumenta consideravelmente? Nessa lista, estão restaurantes, lojas e até profissionais de saúde, como médicos. É... os médicos, de uns tempos ‘pra’ cá, também fazem parte disso que classifico como “circuito do consumo”. Quando eles estão “na moda”, agendar uma consulta é tarefa das mais difíceis. Só com muita (mas muita mesmo!) antecedência. Porque estão “na moda”, para consultá-los, as pessoas suportam esperar uma encarnação.  
Restaurante também não fica de fora desse rolo. Nos grandes centros, principalmente, se algum deles ‘cair nas graças’ do povo que se diz chique, cuidado! Haverá filas. Se, em determinados dias, todas as mesas estiverem ocupadas, há pessoas que, mesmo assim, suportarão esperar um bom tempo até que alguma seja desocupada. Nada chique isso, não? Muitos não pensam assim. E ficam lá, na fila, com cara de nada e fazendo vento.
Pior do que esperar o dia da consulta ou a mesa no restaurante talvez seja esperar a boa vontade das pessoas que prestarão o serviço a quem espera. O constrangimento, que deveria ser de quem faz alguém esperar, acaba sendo de quem será atendido. No entanto, há lados delicados – e pouco compreendidos - que envolvem essa questão da espera em certos lugares. Em algumas repartições, por exemplo, a culpa (chamemos assim) pela espera não deveria ser atribuída ao funcionário/atendente, mas à instituição. Difícil entender isso? Não! Basta comparar o número de pessoas que atendem com o das que precisam ser atendidas. É brincadeira!
A situação se complica, então, quando, nesse tipo de situação, a ira dos que esperam (e não lhes tiro a razão) recai sobre o atendente, que, em muitos casos, também é vítima (só não o é quando faz ‘corpo mole’ e finge que trabalha). Vítima de quê? Simples também. De um sistema que visa tão-somente ao lucro, em detrimento, é claro, da paciência e da saúde alheias. Ninguém merece (ninguém mesmo!) ser atendido em instituições que deveriam ter, no mínimo, o dobro do número de empregados que têm.
Nossa tradição judaico-cristã nos ensinou a paciência... porque dos pacientes será o céu. Que céu? O dos conformados, é óbvio! O dos que não gritam e reivindicam seus direitos. Desconfio de que o que chamam de paciência é, aqui, sinônimo de resignação e apatia. Muita ‘coisa’ torta reina e impera por aí porque é com os conformados que se constroem mundos. E não são mundos de heróis, mas de gente passiva (não confundir com pacífica) e alienada. E gente passiva, como sabemos, acostuma-se a tudo, principalmente a viver em um mundo errado. Pior de tudo: acostuma-se a achar que o errado é o certo e vice-versa (sem maniqueísmo!). Não grita, não protesta. Resigna-se. Protestemos, então, mas...

Cá entre nós: e por falar em protesto, continuo rezando pela cartilha de Cazuza, nosso talentoso poeta, que, em parceria com Laura Finochiaro, presenteou-nos com “Tudo é amor”: “(...) Mesmo se for pra transformar / Num inferno um céu conformista / Mesmo se for pra guerrear / Escolha as armas mais bonitas (...)”. Pois é, é vital que não nos conformemos, mas com delicadeza, com fineza, com ‘armas bonitas’.
Não há como negar: esperar é um desrespeito. Esperar sentindo dor, então, é desesperador. A revolta, a raiva, os gritos... tudo é mais do que aceitável quando há dor envolvida. Neste instante mesmo, num pronto-socorro de hospital, escuto os brados de uma moça, grávida, que espera há muitas horas para ser atendida. Desrespeito é pouco!
Quando esperamos, alguma vantagem, mesmo que remota, deve existir, não deve? Agora, por exemplo, enquanto espero que todo o líquido de um frasco de soro que minha mãe toma chegue ao fim, escrevo este texto. Pelo menos por isso (e só por isso!) está valendo o tempo de espera. Talvez não, pois estou com fome. Muita fome!