terça-feira, 31 de janeiro de 2012

NO 'BAR DO TOM', NO TOM EXATO



          NO 'BAR DO TOM', NO TOM EXATO
          Por Fábio Brito
          (Sobre o 'show' de 21 de janeiro de 2011)
   
         Que pena! Chega ao fim a temporada de "Bim Bom", show da extraordinária Ithamara Koorax em homenagem a João Gilberto, uma das personalidades mais aclamadas da Bossa Nova. No "Bar do Tom" (Leblon, Rio), tive o privilégio de assistir a mais um espetáculo dessa cantora "única" no cenário da MPB. Além do talento fora do comum, Ithamara é uma intérprete altamente carismática: durante o show, ninguém consegue tirar os olhos do palco um minuto sequer. Puro hipnotismo!
          O espetáculo, como poucos que vi até hoje, mostra uma intérprete em pleno domínio de seu ofício a 'nos' oferecer o que há de melhor em música. Se o homenageado é João, não poderiam faltar - é claro! - canções sacramentadas pelo mestre. Estão lá, portanto, Você esteve com meu bem?, O pato (um luxo a interpretação!), Corcovado, Chega de saudade, Minha saudade, Hô-bá-lá-lá e, lógico, Bim Bom, entre outras preciosidades. Todas, sem exceção, interpretadas com requinte, sofisticação e a "assinatura" Ithamara Koorax", inconfundível. Ela toma para si as canções que interpreta, e só os gênios fazem isso.     
           Discorrer sobre as qualidades da voz dessa intérprete aclamada no Brasil e fora daqui é, como eu já disse inúmeras vezes, "chover no molhado". Ainda assim, não me canso de elogiar seu valioso, impecável instrumento: a voz. Não posso ainda deixar de ressaltar momentos desse show que vão além do sublime, como a interpretação de Got to be real, canção que dá título a seu último CD, ainda não lançado no Brasil. Os agudos cristalinos de nossa diva enchem, invadem o "Bar do Tom". Que perfeição! Desse mesmo CD, Up, up and away, originalmente um jingle, também mereceu uma interpretação arrepiante. Sempre que ouço essa canção, em CD ou nos shows, fico "cantarolando-a" o tempo todo. Outros momentos que merecem destaque - e muito destaque! - são Corcovado e Chega de saudade. Em coro, cantamos com Ithamara esses clássicos da Bossa Nova. É... cantamos junto com ela! Não há como não a "acompanhar": ela exerce um fascínio sem precedentes sobre o público. Outro momento que me deixou boquiaberto - e todos os momentos me deixaram boquiaberto! - foi a interpretação de Toque de cuíca. Ficou magistral. É uma aula para quem deseja aprender ritmo, musicalidade. Com seu afinadíssimo instrumento, ela explora as infindas possibilidades de seu "gogó de ouro", de sua voz volumosa, portentosa, exuberante. Seu potencial vocal é tão fantástico, que ela se situa muito além de inúmeras cantoras, brasileiras ou não, que gravam à beça e encontram bastante espaço na mídia para a divulgação de seus "trabalhos". Além da voz de Ithamara, há que se falar dos outros instrumentos, também geniais, que integram o show: o baixo fantástico de Augusto Mattoso, a guitarra e o violão excelentes de Dino Rangel e a "endiabrada" bateria de Haroldo Jobim, músicos que acompanham nossa diva.
          Para mim, e para muita gente, Ithamara é a melhor e a mais importante cantora do mundo não só por seus inquestionáveis atributos vocais, mas também porque ela acredita na arte e opta sempre pelo bom gosto, requisito fundamental para a perpetuação do trabalho artístico. Ela não trata música como uma mercadoria qualquer. Não me canso de dizer isso. Ela respeita o belo. Sua arte é a prova indubitável de que temos de defender a memória dos assaltos da ignorância. Muita gente não sabe disso. Que pena! 
           Além de extremamente talentosa, Ithamara é muito amável com seu público e muito acessível. Ao contrário de muitas que não têm um terço de seu talento, ela não fica fazendo pose de "estrelona inacessível". Ao contrário, chega bem perto de todos que a amam.
           Voltando ao show, só não concordo com as notas dos jornais que não o recomendam para menores de 18 anos. Não sei por quê. As crianças não precisam de boa formação? Mas é claro que precisam! Pobres crianças! A ignorância nacional não tem permitido que elas tenham acesso a bens culturais que são, e serão, importantíssimos para sua formação. Levemos, pois, as crianças ao universo da boa música... já! Ainda há tempo... espero!
        

          O ARTISTA PERFEITO
          Clarice Lispector
         
          Não me lembro bem se é em Les donnés immediates de La conscience que Bergson fala do grande artista que seria aquele que tivesse, não só um, mas todos os sentidos libertos do utilitarismo. O pintor tem mais ou menos liberto o sentido da visão, o músico o sentido da audição.
Mas aquele que estivesse completamente livre de soluções convencionais e utilitárias veria o mundo, ou melhor, teria o mundo de um modo como jamais artista nenhum o teve. Quer dizer, totalmente e na sua verdadeira realidade.
Isso poderia levantar uma hipótese. Suponhamos que se pudesse educar, ou não educar, uma criança, tomando como base a determinação de conservar-lhe os sentidos alertas e puros. Que se não lhe dessem dados, mas que os seus dados fossem apenas os imediatos. Que ela não se habituasse. Suponhamos ainda que, com o fim de mantê-la em campo sensato que lhe servisse de denominador comum com os outros homens lhe permitisse certa estabilidade indispensável para viver, dessem-lhe umas poucas noções utilitárias: mas utilitárias para serem utilitárias, comida para ser comida, bebida para ser bebida. E no reto a conservasse livre. Suponhamos então que essa criança se tornasse artista e fosse artista.
O primeiro problema surge: seria ela artista pelo simples fato dessa educação? É de crer que não, arte não é pureza, é purificação, arte não é liberdade, é libertação.
Essa criança seria artista do momento em que descobrisse que há um símbolo utilitário na coisa pura que nos é dada. Ela faria, no entanto, arte se seguisse o caminho inverso ao dos artistas que não passam por essa impossível educação: ela unificaria as coisas do mundo não pelo seu lado de maravilhosa gratuidade mas pelo seu lado de utilidade maravilhosa. Ela se libertaria. Se pintasse, é provável que chegasse à seguinte fórmula explicativa da natureza: pintaria um homem comendo o céu. Nós, os utilitários, ainda conseguimos manter o céu fora de nosso alcance. Apesar de Chagall. É uma das poucas coisas das quais ainda não servimos. Essa criança, tornada homem-artista, teria pois os mesmos problemas fundamentais de alquimia.
Mas se homem, esse único, não fosse artista – não sentisse a necessidade de transformar as coisas para lhes dar uma realidade maior – não sentisse enfim necessidade de arte, então quando ele falasse nos espantaria. Ele diria as coisas com a pureza de quem viu que o rei está nu. Nós o consultaríamos como cegos e surdos que querem ver e ouvir. Teríamos um profeta, não do futuro, mas do presente. Não teríamos um artista. Teríamos um inocente. E arte, imagino, não é inocência, é tornar-se inocente.
Talvez seja por isso que as exposições de desenhos de crianças, por mais belas, não são propriamente exposições de arte. E é por isso que se as crianças pintam como Picasso, talvez seja mais justo louvar Picasso que as crianças. A criança é inocente, Picasso tornou-se inocente.
 Fonte: LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Rocco, 1999.

sábado, 14 de janeiro de 2012

UM "ARRASTÃO" NA MPB



Vídeo da apresentação de Elis Regina no "Carinhoso", Festival  de Choros da TV Bandeirantes (1978).
Canção: Carinhoso (João de Barro / Pixinguinha)

          UM 'ARRASTÃO' NA MPB
          Por Fábio Brito

          Pois é, e assim se passaram trinta anos! Todas as pessoas que gostavam, e continuam gostando, da "Pimentinha" Elis lembram exatamente o que estavam fazendo no momento em que receberam a notícia que, infelizmente, não podia ser desmentida: na manhã de 19 de janeiro de 1982, uma terça-feira, Elis Regina havia partido. Calara-se a primeira voz do Brasil. Perplexidade total. Eu também, quando soube, não acreditei. Essa história só poderia ser "invencionice" da imprensa, eu dissera. Uma notícia dessas era algo absurdo, porque Elis estava a toda: apresentava, com muito sucesso, o espetáculo "Trem azul". Estava no auge da carreira. Mesmo não acreditando nessa história estapafúrdia, liguei a TV. Não era boato. O plantão do Jornal Nacional confirmava a notícia que nos deixou órfãos da maior cantora que este país já teve. E essa cantora excepcional foi uma das primeiras que ouvi, ainda criança. 
          Em fins da década de 60 (68/69), o rádio era um veículo muito presente nos lares brasileiros. Em minha casa, não era diferente: ouvia-se bastante. E foi exatamente nessa época que ouvi "Lapinha" (Baden Powell / Paulo César Pinheiro), interpretada pela Elis e primeiríssimo lugar  na I Bienal do Samba (1968), promovida pela TV Record e pela revista Intervalo. Criança ainda, eu gostava muito dessa canção e sabia quem a interpretava, mas não tinha noção de que se tratava de alguém tão importante para a Música Popular Brasileira e para a "Música Popular Mundial". O engraçado - sempre conto essa história - é que, em lugar de "Lapinha", eu entendia/"ouvia" "latinha". Isso mesmo! E imaginava uma latinha de sardinha. Uma brincadeira dos compositores, eu pensava. 
           Pouco antes, em 1965, Elis vence o I Festival Nacional de Música Popular Brasileira (TV Excelsior, 1965) com "Arrastão" (Edu Lobo / Vinicius de Moraes). E foi um arrastão mesmo! Eis o que nos diz Zuza Homem de Mello¹ acerca de Elis e sua apresentação "épica": "(...) Fez uma apresentação empolgante para os presentes no teatro e para quem assistia pela televisão. O teatro veio abaixo, foi uma ovação emocionada e incontida (...)". Nelson Rodrigues, em conversa com Otto Lara Rezende, ao ver Elis com Baden Powell na boate Zum-Zum, foi categórico: "A Elis Regina faz de qualquer canção uma Marselhesa".² A baixinha (tinha apenas 1m53) chegava aos três metros no palco. Era 'gigante pela própria natureza'. Nesse Festival, o de 65, ela não só conquistou o júri com sua interpretação para lá de explosiva, mas todo o país. Não houve quem ficasse indiferente ao talento da gauchinha irascível que, como poucas, soube se impor no cenário da MPB, onde já havia tanta gente talentosa. Impôs-se porque era única, excepcional.
          Elis era/é um gênio. Ninguém duvida disso. Muito já se disse, e ainda há muito o que se dizer, sobre sua genialidade. Nelson Motta, por exemplo, ao comentar a interpretação de "Carinhoso" no Festival de Choros da Bandeirantes, em 1978, intitulado exatamente "Carinhoso", "disse" tudo sobre a emoção de Elis na recriação desse clássicoComentou sobre "(...) o misto de medo e coragem extremos que se via em seus olhos enquanto sua voz andava por regiões, timbres e ritmos ainda impercorridos da canção, a respiração suspensa de todos os que ouviam a respiração precisa da cantora, a pureza cristalina das notas imprevistas que fluíam de sua garganta, filhas da audácia e da agonia. Emoção e revolução, em tempos de frio e medo. Agonia, em seu sentido original, quer dizer 'guerreiro que luta nos limites de suas forças' e não tem nada a ver com qualquer coisa ou pessoa ou ideia que esteja morrendo ou se acabando"³. Elis era guerreira mesmo. E lutava principalmente pelos outros. Basta ver os talentos lançados por ela: de Milton, passando por Gil, chegando a Renato Teixeira e tantos outros. Foram muitos. Que "faro" maravilhoso! E todos, sem exceção, reverenciam-na: o próprio Milton já disse, inúmeras vezes, que fez, e continua fazendo, todas as canções para ela. Recentemente, Filipe Catto, jovem cantor, disse - no programa "Ensaio" (TV Cultura) - que Elis é sua "professora de canto".
          Às vezes, como exercício, fico imaginando o que ela teria gravado nesses trinta anos. Ou melhor, o que ela teria imortalizado nesse tempo todo. Certamente, continuaria lançando talentos, como o fez durante sua longa/curta vida artística. Também teria regravado inúmeras canções. Em uma das páginas de sua agenda (reproduzida em Furacão Elis)*, estão grafadas algumas canções (será que se tratava de um possível repertório para um novo disco?) que ficariam sensacionais em sua interpretação: "Nos bailes da vida", "Gema", "Sonora garoa", "Vida", "Quando te vi", "Caminhos do coração", entre outras.
          A "Pimentinha", mesmo quando regravava um clássico revisitado inúmeras vezes, como "Carinhoso", sempre inovava. E fazia sempre melhor. Com seu talento inigualável, dava um "banho de loja" em qualquer canção, por mais esquecida que ela estivesse em algum fundo de "armário". Ela perseguia, incansavelmente, a tal perfeição, "a meta defendida pelo goleiro que joga na seleção", como ela mesma cantou em "Meio de campo", do Gil. Sua interpretação de qualquer canção era única. Até hoje, pouca gente ousa revisitar seu repertório, porque a comparação é inevitável. Como passar por canções já gravadas por alguém que, aos vinte anos, já era a melhor cantora do país? Dificílima essa tarefa. Quase impossível.
           Elis vai ser sempre uma "saudade de variadas leituras", como disseram os jornalistas Timóteo Lopes e Sérgio Garcia**, por ocasião dos dez anos de sua partida. Uma dessas leituras diz respeito à sua técnica apuradíssima. Com sua voz exuberante, impressionava porque sabia trafegar da técnica para a sensibilidade com um equilíbrio perfeito, algo dificílimo para muitas cantoras consideradas até muito boas, mas que, não raro, ou ficam frias ao extremo, ou são puramente emoção. Elis foi, entre todas, a que soube combinar melhor técnica e emoção. A musicalidade é outra de suas qualidades inquestionáveis. "Era tão musical que era capaz de cantar os arranjos que bem entendia sem ler uma nota", declarou Luiz Eça.***  Sabia tudo do ofício de cantar. Pelas canções do Milton, por exemplo, que, sem exceção, têm uma construção harmônica dificílima, ela trafegava com incrível facilidade. Até hoje, não são muitos que se atrevem a cantar - mas cantar bem! - o que Bituca compôs.
          Impossível também não se falar, obviamente, da emoção de que somos tomados quando ouvimos Elis. Incrível como, até hoje, ouço Elis constantemente. E choro sempre, e fico arrepiado sempre. Elis me comove. É isso! Sempre que há alguém - da novíssima geração, por exemplo - que não a conhece, corro para mostrar tudo o que ela gravou. E todos, como eu já esperava, também ficam encantados e até reclamam: "Por que não a conheceram antes"? Sabemos, sim, o porquê:  o achatamento do gosto musical do brasileiro está aí para afastar muitas pessoas de canções e artistas excepcionais. O importante é que, ontem, hoje ou amanhã, nunca é tarde para conhecermos Elis Regina Carvalho Costa, a nossa Elis, uma das cantoras mais importantes do século XX e um clássico da arte popular do Brasil.

Fontes:
* ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. Versão atualizada. São Paulo: Ediouro, 2007.
** e *** Jornal do Brasil (revista "Domingo"), 19 de janeiro de 1992.
¹ MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. . São Paulo: Ed. 34, 2003.
² CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. 3ª ed. atualizada, 7ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
³  O Globo, 25-10-78.

A VOZ DO BRASIL
Luis Fernando Verissimo
19-01-1983

A voz continua, viva e límpida.
Continua nos discos e nas fitas. E continua, ainda mais límpida e mais vida, na nossa memória.
O resto é como um desenho feito a lápis, sem fixador, que vai se apagando com o tempo. O que ela fez, o que ela disse, o que disseram dela...
A voz não se apaga. O disco pode arranhar, a fita pode gastar, mas a voz que a gente guarda na memória continua tão nítida que até atrapalha: não podemos ouvir outra cantora sem ouvir, junto, a voz dela, e comparar. É covardia. Ninguém mais canta como ela.
Era uma baixinha complicada.
Uma pimenta, plata miúda e ardente. Tinha de saber cdomo lidar, senão ela queimava. Morreu e se transformou num milagre de botânica. 
Hoje é uma flor que a música brasileira usa atrás da orelha. 
E se nome é sempre-viva. 
Ela usava a voz como um instrumento.
Ela era isso, um instrumento de sopro. Como o piston, que também é pequeno e difícil mas canta como um anjo.
Só que os instrumentos, bem cuidados, duram cem anos.
E ela não se cuidou. Acabou antes do tempo.
Mas a voz continua, viva e límpida. 
Continua nos discos e nas fitas. E ainda mais viva e mais límpida na nossa saudade.

Fonte: Revista "Domingo" (Jornal do Brasil), ano 16, nº 820, 19 de janeiro de 1992.

Agora o braço não é mais o braço erguido num grito de gol.
Agora o braço é uma linha, um traço, um rastro espelhado e brilhante.
E todas as figuras são assim: desenhos de luz, agrupamento de pontos de
partículas, um quadro de impulsos, um processamento de sinais.
E assim - dizem - recontam a vida.
Agora retiram de mim a cobertura de carne, escorrem todo o sangue,
afinam os ossos em fios luminosos e aí estou, pelo salão, pelas casas,
pelas cidades, parecida comigo.
Um rascunho.
Uma forma nebulosa, feita de luz e sombra.
Como uma estrela.
Agora eu sou uma estrela.

Texto de Fernando Faro dito por Elis no espetáculo Trem azul.
Fonte (CD): Elis Regina, Trem azul, Som Livre, 400.1168, Rio de Janeiro, 1992.


Maninha, precisava ser agora?
Elis, quando eu soube, assim de imediato, não acreditei. Esse vício de eternidade que a gente tem. E logo você, bicho? Tão agitadinha, tão atrevidinha e cheia de vida. Fui ao banheiro lavar o rosto, molhar os pulsos e olhar bem a minha cara cansada de 33 anos. Quando saí e espiei em volta, tudo continuava lá. Feito nada tivesse acontecido. Lembrei duma história da mitologia grega. Contam que quando morreu Pan, o deus da música, alguns pescadores ouviram uma voz misteriosa gritar numa praia deserta: “O grande deus Pan morreu!” E nunca mais se ouviu falar dele. Hélice – como te chamava a Rita, acho que por causa daquela sua mania antiga de girar os braços enquanto cantava, em tempos de Arrastão – eu não sei o que estou sentindo. Depois do trabalho, saí a procurar pelas ruas do centro da cidade um sinal qualquer que confirmasse ou desmentisse tua partida. Não encontrei nada. As lojas não tocavam teus discos. Ninguém caminhava mais devagar. Não havia nenhuma melancolia específica no céu, além do cinza habitual. Só eu assobiava baixinho “Acender as velas já é profissão, quando não tem samba, tem desilusão”. (Vezenquando, só de sacanagem, você dizia, “quando não sou eu, é Nara Leão”, e dava aquela risada gostosa.) Então peguei um táxi e vim embora. Pedi para o motorista ligar o rádio, mas tocava Núbia Lafaiette. Você acharia engraçado. Pedi para ele parar antes de casa, comprei duas garrafas de vinho. Estou no meio da segunda. Pimentinha, que difícil que tá. Você tem que amar quem você ama agora, JÁ, você tem que começar a fazer tudo o que você quer porque a bruxa tá do lado esperando. Elis, eu também vou morrer nem sei quando. Antes eu queria tanto ser feliz. Embora nem saiba como é isso. Acendo uma vela branca procê ir embora numa boa. Abro as janelas e ponho bem alto você cantando “Primeiro Jornal”, porque é assim que quero te guardar, juntando tua voz matinal aos restos dos sons noturnos que ainda boiam na casa. Não tenho medo da morte. Tenho medo da vida. Baixinha, foi tão de repente... Mas ainda ontem, todo domingo de manhã eu ia ao cinema Castelo assistir você cantando no programa do Maurício Sobrinho, da Rádio Gaúcha. Você vinha com aqueles vestidos repolhudos cantar “Banho de lua” e aquelas versões tipo Fred Jorge (Vixe como tô ficando veio guria!). No fim todo mundo aplaudia em pé, dançava e cantava junto. Depois, feito a Janis Joplin fez com Port Arthur, você saiu de Porto Alegre. Foi ser estrela na vida. Falavam mal, então, como falavam: porque isso, porque aquilo, porque você chiava como carioca, que era metida que nem parecia ter saído ali do Partenon, que parecia que tinha Deus na barriga (descobri depois que você tinha mesmo, não na barriga, mas na voz). Nunca mais te vi ao vivo, só no finzinho do ano passado, no Anhembi. De repente você disse que queria falar com Deus. Eu me arrepiei. Parecido com quando você cantava “Atrás da porta”. Ou quando, naquele inverno comprido, eu atravessava noites bebendo conhaque ouvindo “As aparências enganam”. Uma vez a Paula Dip bateu na porta enquanto você cantava e, mal abri, ela caiu no choro, porque tinha vindo contar-me coisas sobre esses enganos, essas aparências.
Maninha, precisava ser agora? Em pleno verão, o sol quase em Aquário. Sei que teu coração não aguentava mais tanta barra. Sacanagem... E juro que agora eu ouvi você rindo assim: quá-quá-rá-quá-quá. Tô sentindo um oco, Hélice. Tão ruim. O dia não conseguiu chover: eu queria agora chorar todo o choro que o dia não choveu por ti. Não consigo. Eu tenho a impressão de que poderia reconstituir, dias após dia, desde uma daquelas manhãs de domingo no Cine Castelo (que coisa mágica, eu tinha 12 anos, você 15) até estas duas da madrugada de hoje? Consigo não, chê. A gente, que é gaúcho, se entende. O tempo existe, Pimentinha, e passa, leva no arrastão as coisas e as pessoas que não morrem: ficam encantadas. Y solo resta el silencio, un ondulado silencio...
Nós te amávamos tanto, tanto. Guria. Até.
Caio Fernando Abreu
http://livrocadente.blogspot.com/2009/11/carta-de-caio-fernando-de-abreu-para.html

O QUE DISSERAM DELA
"Ela (Elis) conseguia transitar bem do grave ao agudo, sem perder o timbre da voz e a riqueza de suas interpretações. (...) Elis cantava samba, bossa nova, bolero (...), entre outros, com variação de timbres e interpretações absolutamente únicas na MPB."  Marta Assumpção de Andrada e Silva, fonoaudióloga. 
"Tudo devo a ela. (...) Foi sempre a grande descobridora e incentivadora dos novos. Foi a maior cantora do Brasil. Uma das três maiores de todos os tempos, somente junto com Janis Joplin e Billie Holiday. Não tem pra mais ninguém. Ninguém canta como ela, em lugar ou tempo algum. Ela tem o toque da divindade na voz."    Guilherme Arantes
"Foi a única artista que, na época, peitou as autoridades e foi me visitar no Hipódromo Feminino onde eu estava presa numa cela com outras 10 mulheres e grávida do meu primeiro filho. Até aquele momento, Elis nunca havia conversado comigo, ela era da turma que não gostava dos tropicalistas. Elis tinha isso. Diante de qualquer tipo de injustiça, lá ia ela defender com unhas e dentes. Nessas horas, baixava uma mãezona brava que rodava a baiana legal. (...)  Ainda não existe uma cantora brasileira com a potência, precisão e emoção da voz dela. Saudades de Elis sempre!"   Rita Lee
"Elis sempre foi minha musa maior. Sempre que eu fazia música, era pensando em sua voz. Muito mais até que em mim. Intérprete como ela: não aparecerá. (...) Me emociono, choro e sinto saudades intermináveis." Milton Nascimento
Fonte: revista Mulheres que fazem, ano 1, nº 1, novembro de 2001.
"Elis vai a lugares que eu gostaria de ir, mas não tenho coragem. Ela se entrega de um jeito intenso, emocional e definitivo." Björk, cantora islandesa
"Você acha que Elis cantava bem? Acha? Pois você tinha que ver ela cozinhando... Era um almoço melhor que o outro. Feijoada, tortilha, bobó de camarão, pratos mineiros. Certa vez um amigo foi almoçar pela primeira vez em casa e, surpreso com o sabor da comida, fez o elogio: 'Como você cozinha bem, Elis'. E ela respondeu sorrindo: 'Obrigada. Você precisa me ver cantando...'". João Marcelo Bôscoli, filho
Fonte: encarte Universo Musiclub, s/d.
O QUE ELA DISSE
"Fazer música não é botar fusca na praça, não é linha de montagemm, não."
"O mercado musical vive de preestabelecido."
"Os artistas agora só falam em milhões, lhões, lhões."
"Vem o diretor da gravadora e diz: 'Este é o ano de fulano'. Os outros? Ferro, claro!"
"As minhas posições sobre os novos frutos da música popular não são saudosistas. O que acho é que muitos deles refletem uma involução de pelo menos 30 anos."
"Não é fácil ter cinco carros e dez empregados. Eu até poderia ter. Sou uma mercadoria cara. Mas prefiro o meu jipe."
"No fundo acabo escolhendo quem merece gostar de mim."
"Alguma alegria é fundamental. É preciso fé, esperança, passar um brilho no olho e ir engatinhando para, em termos de sensação, redescobrir a vida, descobrir o sabor da festa."
"O importante é procurar reconstruir, onde você está, o clima da casa onde você nasceu."
"A vida está seguindo mansa no meu pedaço."
"É bom que a gente esteja vivo. Gente como nós, com cabeça pra levar as coisas adiante."
"Pude perceber o quanto era importante ter o relógio do meu avô em casa. Não por um sentimento de posse, mas por viver a sensação de que não perdi tudo do meu passado."
"A gente não come carne, usa arroz integral e açúcar mascavo por achar que é fundamental a coerência da vida como um todo."
"Não se trata de uma visão pessimista. Procuro acreditar que a gente não pode viver em função dos dias difíceis."
"Tomei parte de uma geração de músicos muito mais atentos. Nós ainda não tínhamos sido vítimas da assepsia cultural no país."
"Essa história de pular é uma moda que estão empurrando."
"Vou pensar o quê? Que vivemos a grande época da chegada do surfe? Nesta terra, só se liga para cifrões. O sujeito vale muito pouco."
"Essa máquina de faturamentos é muito desleal."
"Os amigos? Poucos, muito poucos."
"Não estou preocupada em fazer uma avaliação de perdas e danos, nem rescaldos de incêndio. Viver é melhor do que sonhar."
"No Brasil a inspiração é americana, mas a organização é macunaímica."
"Cantar, pra mim, é um sacerdócio. O resto é o resto."
"Dediquei minha vida a cantar e não tem homem, nem pai, nem mãe, nem filho que me tire disso."
"Quem atravessar no meio para dividir ou diminuir, vai ser atropelado por um trator passando por cima de uma margarida."
"A catarse acontece no palco. Tem até vomitórios."
"Tenho o prazer de me danar e me recompor sozinha. Não preciso de muletas."
"Claro que continuo amarrando bodes e pagando caro essa minha liberdade."
"Só dou o tiro. Quem mata é Deus."
"Entre a parede e a espada, me atiro contra a espada."
"Eu sou guerreira e pego a metralhadora para sair atrás de quem me enche o saco. Agora, se um amigo precisa de mim, eu faço tudo e não cobro gratidão para o resto da vida, somente exijo um mínimo de fidelidade e coerência."
"Sou espírita. Há espíritas e espíritas. O importante é que você entenda que vem para cá se lascar mesmo, que é para ficar mais legal, porque você precisa se acrescentar, você tem coisas a dizer, porque tem compromissos assumidos antes com as organizações que tomam conta disso tudo. E depois você vai ter que prestar contas."
"A única mulher com a coragem de dizer que sente prazer é a Rita Lee. Ela fala o que a mulher fala, sem pudor. E a mulherada fica querendo se emancipar sem saber para onde vai, que nem o país."
"Sou obstinada, perfeccionista. Exigente comigo mesma. Autopunitiva. Espero muito de mim e sou amiga dos meus amigos. O lance pinta, eu registro e devolvo multiplicado. Deu um, recebe mil. Nos dois sentidos. Enfim, sou uma mulher de uma fidelidade estúpida."
Fontes: revista Manchete, n º 1.605, Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 1983 e revista Mulheres que fazem, ano 1, número 1, novembro/2001.







VERMELHA OU BRANCA?




REDESCOBRIR
Luiz Gonzaga Jr.

Como se fora brincadeira de roda / memória
Jogo do trabalho na dança das mãos / macias
O suor dos corpos na canção da vida / história
O suor da vida no calor de irmãos / magia
Como um animal que sabe da floresta / memória
Re-descobrir o sal que está na própria pele / macia
Re-descobrir o doce no lamber das línguas / macias
Re-descobrir o gosto e o sabor da festa / magia
Vai o bicho homem fruto da semente / memória
Renascer da própria força a própria luz e fé / memória
Entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós / história
Somos a semente, ato, mente e voz / magia
Não tenha medo meu menino povo / memória
Tudo principia na própria pessoa / beleza
Vai como a criança que não teme o tempo / mistério
Amor se fazer é tão prazer que é como fosse dor / magia

Fonte 1 (CD): "Redescobrir", Elis Regina, Saudade do Brasil, WEA, M250678-2, 1989.
             LP gravado em abril de 1980.

           
            VERMELHA OU BRANCA? 
Por Fábio Brito
           
          Fiz minha última caminhada de 2011 em 31 de dezembro. No momento de escolher a roupa, a dúvida quanto à cor da camisa a ser usada: vermelha ou branca? Sem lenga-lengas, sem lengalengar: branco é paz; vermelho é vida. Ponho a vermelha e pronto! Mesmo na guerra, quero é vida. E lá fui... "caminhando e cantando" durante uma hora, uma hora e meia. Detalhe: adoro "cantarolar" enquanto caminho. Ih! Puxo canções e mais canções, o que é um ótimo exercício para a memória.
          Na rua onde caminho, reinava uma paz que só vendo: pouquíssimos carros e dois conhecidos fazendo o mesmo que eu. Nem sinal “daquelas” pessoas que só caminham em dezembro e janeiro. Preferiram a praia. Graças a Deus!, pensei. Quanto menos tumulto, melhor a caminhada. É... caminhada também entrou no circuito do consumo: muitas pessoas caminham só porque "ficou bonito caminhar"... ou porque "os médicos andam dizendo que caminhada é uma atividade deveras importante".
           Bom, mas, no último dia do ano, há outras dúvidas além da que envolve a escolha da cor da camisa para a caminhada: a que DVDs assistir? Que CDs ouvir? Que livros ler? E agora? Não dá para desconsiderar isso, uma vez que nossas primeiras atitudes no primeiro dia do ano (e no último também) parecem nortear todos os outros. Pura superstição, dirão alguns. Tudo bem. Sou supersticioso. Quanto aos livros, não tive dúvidas: continuei com "Silenciosa algazarra", de Ana Maria Machado. Reflexões sobre leitura e escrita são sempre bem-vindas.  Taí um assunto do qual não me canso e com o qual "atormento"  a vida de muita gente. No entanto, não deixei de "dar uma passada" por Drummond, Clarice, Adélia, Pessoa, Cecília, Cabral, Bandeira, que me alimentam desde sempre. Ah, da Ana Maria Machado, concluí a leitura de "Infâmia". Mais: "Orestes Barbosa: repórter, cronista e poeta" (aquele de "Chão de Estrelas"), escrita por Carlos Didier, e "Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil", de Mary del Priori, também entraram na lista. Música? Assim como a literatura, só o suprassumo: Elis, Ithamara, Buarque, Bach, Chopin, Caymmi, Cartola, Jobim, Lobo, Donato, Dvorák, Hime, Lins, Cavaquinho, Clementina, Armstrong, Holiday, Maysa, Piaf, Tim, Célia, Baker, Vinicius, Menescal, Madi, Coleman, Gillespie, Hancock, Bosco, Callas, Astrud, Flora, Nana, Bethânia, Nara, Sumac, Elizeth, Ney, Alaíde, Áurea, Gata Mansa, Cida, Milton, Djavan, Lee, Ella, Vaughan, Maria Creuza, Paulinho da Viola, Martinho, Dalva, João, Caetano, Elza, Leny, Gal, Gonzaguinha, Dinah Washington, Calcanhotto, Clara, Salmaso, Ozzetti, Simonal, Jussara, Rita Ribeiro, Leila Pinheiro... DVDs? São tantos, meu Deus! "Jules e Jim", "La Strada", "Central do Brasil", "O discreto charme da burguesia", "Sonata de outono"...
           Além de muita literatura, muita música e muito cinema, desejo que, no ano novo, muitas pessoas passem por uma "desintoxicação tecnológica". O número de gente viciada em tecnologia está alarmante. Na TV, há uns dias, ouvi uma pessoa dizer que ela chega a acordar de madrugada para ler mensagens no "twitter". Não consigo entender como uma pessoa pode ficar o tempo todo "conferindo mensagens". Sobra tempo para pegar um livro? Sobra tempo para ouvir música? Sobre tempo para assistir a um filme? Sobra tempo para trabalhar? É óbvio que não! Então, espero que, este ano, as pessoas consigam enxergar que há vida interessante longe de muitas besteiras ditas no "twitter" ou no "face". Cá entre nós: nessa vida de "face" e de "twitter", há muita gente com tempo disponível à beça, não há? Querem um exemplo? Fulano resolve almoçar em um restaurante lá em Conceição de Macabu, por exemplo. Imediatamente, o que a criatura faz? Vai ao "face" e diz aos amigos que "almoçou em um restaurante em Conceição de Macabu". Para piorar, ainda cita item por item do prato escolhido. "Pelamordedeus"! Não aguento isso! É muita falta do que fazer, não é?
          Se quero mais para o novo ano? Quero muito mais! Sempre muito! Para começar, muita saúde. Sem ela, nada vale. Tudo fica desimportante. A doença, como disse/cantou Gonzaguinha, "acaba com a gente deixando esmagada a vida no chão". Até mesmo uma dorzinha de cabeça deixa o dia mais cinza. Haja força de vontade para ficar "de" pé. Haja fé! Portanto, saúde, saúde e mais saúde! O que vier depois, como eu mesmo sempre digo, é sobremesa.
          Mais desejos? Claro! Sempre! Voltando ao assunto das caminhadas, desejo, sinceramente, que as pessoas caminhem mais e façam menos gracinhas. Ah! E que caminhem não só em janeiro, mas durante todos os meses do ano. É... caminhada não é só para mostrar o "corpão" na praia, mas para preservar a saúde física e a mental. Por que eu disse "caminhar mais e fazer menos gracinhas"? Porque, obviamente, a maioria só faz gracinha. Exemplos? Ih! Vários! Outro dia, a certa distância, avistei um rapaz (quase 'senhor') que me confundiu: eu não sabia se ele estava alongando as pernas ou fazendo xixi em algum poste imaginário, tão estranhos eram os tais alongamentos. Meu Deus! Se não sabe "alongar", vá atrás de alguém que ensine, não é?  Até mesmo porque alongamentos errados podem causar graves lesões, dizem os professores de educação física. Mais gracinhas: há umas figuras que passam por mim quase 'se' derretendo. Minutos depois, elas voltam, mas aí não as vejo mais, porque são uma "poça só" (percebo os respingos). O rosto está um fogaréu. Acho bom nem aferir a pressão arterial nessa hora. E aquelas pessoas que parecem uns postes cheios de fios/ligações clandestinas? Incrível! Mas muitas caminham cheias de fios. Tenho até medo de levar um choque, caso esbarrem em mim. E o pior: ouvindo o quê, meu Deus? Nem quero saber. "Jazz" é que não é! Deus me livre! Ah! Não poderiam faltar os que caminham falando ao celular. Que beleeeeeza! Há uns que ainda brigam enquanto falam. E gesticulam muiiiito! Se a caminhada visa também ao relaxamento, por que muita gente insiste em falar ao celular enquanto caminha? Sem resposta...
         Vamos a mais desejos ("trem" que não cessa esse "negócio" de desejo, não é?). Ah, gostaria muito também que aquele povinho que só me vê com um $ na testa (como se eu fosse rico!) se afastasse de vez e por vontade própria. Assim, evitamos as benditas "saias justas". Não é tão difícil ligar o "desconfiômetro", desconfio. Poupe-me de ter de fugir constantemente desse tipo de gente. Fugir ainda é fácil. O pior - e já fiz isso - é pedir que a pessoa "se" mande, "dê no pira". Esse tipo de gente só puxa para baixo. Comigo, só quero pessoas que consigam enxergar minha "aura clara". Para conseguir isso, só quem é clarividente, parafraseando o Gil. Pois que venham, então, os clarividentes, os espíritos elevados, porque os de baixa frequência estão fora de minha relação de amigos. Estão fora de meu terreiro.
           E por falar em amigo, não faz muito tempo, minha saúde apitou (sempre que não 'nos' damos oportunidades para um descanso, a vida, como sempre, trata de impor uma "pausa"). Adivinhe quem me visitou? Adivinhe quem telefonou? Adivinhe quem enviou mensagens? Só os amigos. Os amigos mesmo! Nenhum golpista de plantão apareceu em minha casa. Minto: apareceu, sim, mas para tentar dar, como sempre, golpes e mais golpes. Não é piada! Houve gente que teve a cara de pau de 'me' procurar para fazer um "empréstimo". Fico imaginando o seguinte: quando esse povo faz a barba, o que deve sair de "pó de serra" não é brincadeira. Argh!
            Então, no ano que desponta, só quero boas pessoas por perto. Citando Lya Luft, quero o "coração rodeado de generosas varandas", nas quais só os amigos estarão em minha companhia... para contemplarmos belos horizontes, para contarmos "causos", para jogarmos conversa fora, para celebrarmos a vida, que "é bonita, é bonita e é bonita".  

        você é o que você mente!
Lúcio Manga
quando o ano novo chegou debaixo de uma enorme chuva, achei bom! fosse uma manhã de sol, a praia certamente ganharia da chance de reclusão. a piada poética com os versos de andrade, o oswald, é uma possibilidade para pensar um pouco sobre a própria vida, nesse início de ano. o que está ao nosso redor pode parecer um emaranhado de situações isoladas, mas é preciso perceber que o barco é o mesmo, embora a miséria reme e a riqueza passe o protetor solar para aproveitar a vida. como perceber isso sem sensibilidade? e aí entra o processo de formação. a vida - dentro da teoria de clichês que adoro - acaba logo. basta um olhar no velho álbum de retratos para perceber que não se é o mesmo nunca mais.
para a construção de um olhar mais sensível sobre a realidade ao redor, exige-se a busca dos que conseguem perceber o que não somos capaz (sic) a olhos nus. e é aí que entram o cinema e a literatura. nos bons filmes e nos bons livros, é possível estabelecer uma relação de cumplicidade e de se perceber, afinal, estamos lá, dentro de personagens e de histórias que retratam o nosso perfil psicológico. ler para ver, ou ver para ler é o melhor divã. uma chance para a descoberta pessoal. percebido o broto, se adubado constantemente, brotará uma flor chamada sensibilidade. aposto nessa teoria, na certeza de que criamos mal a ideia de futuro, cercado de grana e amigos inúteis. e me veio isso por agora, porque início de ano é uma chance e tanto. como aquela formulação do: é agora ou nunca. repararam como até essa ideia do agora ou nunca está desaparecendo? o tempo devora as chances todo dia.
como o ser humano é uma constante mentira de ações - e nem adianta negar -, cabe uma fugida da realidade. uma personagem pode dizer o que é preciso ouvir e por não haver compromisso com quem quer que seja ela vai dizer. situações da trama constroem pensamentos e ajudam as portas da percepção. abri-las, um desafio pessoal a cada obra. não há outro lugar melhor para enxergar os próprios erros. não é possível mentir para si mesmo e, se vem um brás cubas ou uma macabeia, por exemplo, e se colocam entre esse hábito de se esconder, o espelho retrovisor futuro sinaliza atalhos, desvios... o mundo particular estabelece uma boa relação com arte. basta o hábito. muitos comprimidos podem ser poupados nessa empreitada. a sensibilidade, penso, constrói-se dentro dessa lógica. e é bom deixar claro que, quando falo de sensibilidade não me refiro à pieguice, mas de um olhar mais humanizado. não se quer a esmola, e sim a chance.
com as inúmeras possibilidades de informação que a internet oferta, não é difícil achar livros e filmes. mas, trouxeste as chaves? a questão é poética mesmo. as chaves são a metamorfose do querer que isso seja o fato. pense bem. não dá mais para percorrer a vida sem ao menos ter lido de verdade os grandes autores ou ter assistido aos grandes filmes. e nem adianta o argumento de que tudo isso é muito intelectual, pois esse papo de intelectualidade está por fora. pensar ultrapassa esses rótulos. a vida pessoal pode ser montada da forma que você quiser. e ninguém precisa saber o que você está lendo ou vendo. a ação é pessoal. a conspiração com o que está dentro do seu psicológico é uma boa chance de sabotar o que até agora, como você mesmo sabe, não serviu para nada. o mundo é tão fútil que fica difícil acreditar nessas palavras. e nem me venham com a ideia de que estou a promover autoajuda, porque o que indico irá justamente desconstruir o que você imagina que seja aí nessa vida comum. as verdades deixarão de estar encobertas e a porrada será certeira. mas não se assuste, se fizer sol, você pode continuar a ir atrás das máscaras que o mundo das possibilidades oferece. acredite, você não será afetado, e vai dar continuidade ao barco da vida que ruma por águas sempre dantes navegadas. afinal, você é o que você mente.
ps. a coluna de hoje é dedicada a piza, o daniel. colunista do estadão que faleceu sem dizer adeus. a ele a promessa de querer mudar o mundo pela leitura.
Fonte: http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2012/01/noticias/a_gazeta/caderno_2_ag/1081092-voce-e-o-que-voce-mente.html