quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

ESCANCARANDO AMOR À VIDA



ESQUADROS
Adriana Calcanhotto

Eu ando pelo mundo prestando atenção
Em cores que eu não sei o nome
Cores de Almodovar
Cores de Frida Kahlo, cores

Passeio pelo escuro,
eu presto muita atenção no que meu irmão ouve
E como uma segunda pele, um calo, uma casca,
uma cápsula protetora
eu quero chegar antes
pra sinalizar o estar de cada coisa,
filtrar seus graus…

Eu ando pelo mundo divertindo gente
chorando ao telefone
E vendo doer a fome dos meninos que têm fome


Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle…


Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm para quê?
As crianças correm para onde?
Transito entre dois lados de um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo, me mostro
Eu canto para quem?


Pela janela do quarto...

Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?
minha alegria, meu cansaço?
Meu amor, cadê você?
Eu acordei
não tem ninguém ao lado


Pela janela do quarto...

Ref.: “Esquadros”, Adriana Calcanhotto, Senhas, Columbia, 850.161/2-464280, Rio de Janeiro, 1992.




http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.arquitetonico.ufsc.br/wp-content/uploads/As-Duas-Fridas-
http://www.arquitetonico.ufsc.br/fridakhalo

EM COYOACÁN, DUAS CASAS CONTAM A HISTÓRIA
Marina Colasanti
          Que prazeroso é estar de manhã cedo em Coyoacán, quando o dia não tomou plena posse das suas horas, e os turistas se atardam nos hotéis. Há na praça um frescor de aldeia, um úmido luzir de buganvílias. As barraquinhas ainda estão fechadas nos seus plásticos, negras como conchas. Um velho varre a porta da igreja antiga. Alguém tira uma foto. Então a gente senta em um banquinho alto no mercado da esquina e pede ao homem atrás do balcão uma quesadilla com cuitlacoche, que vai preparar e fritar na nossa frente, para tragédia do colesterol e alegria do paladar.
          Quesadilla é uma tortilla recheada; cuitlacoche é um cogumelo escuro e perfumado que cresce no milho. E Coyoacán é um bairro de Cidade do México, povoado indígena ao tempo da chegada dos espanhóis, que Hernás Cortés escolheu para se estabelecer. Se você for ao México (...), certamente irá a Coyoacán. O programa clássico pode se prolongar por um dia e dá direito a praça, quesadilla e mercado, seguidos de passeio vadio a pé pelas ruas arborizadas e serenas, até a casa de Frida Khalo. Visita-se a casa de Frida, toma-se um café no jardim. E parte-se para visitar a casa de Trotski.
          Se você for, aceite meu conselho, inverta o programa. Deixe a casa de Frida para o fim.
          A casa de Frida é azul cobalto-pavão-azulérrimo, aquele incrível azul mexicano que só encontra semelhança com certos azuis marroquinos. E tem frisos vermelhos, e paredes amarelo-sol, e móveis coloridos, e enfeites nas paredes, e um jardim todo cercado como um jardim secreto, onde gatos dormem ao sol.
          A casa de Frida escancara o amor à vida, embora contendo tantos sinais de sofrimento. Ali está, junto ao cavalete, a cadeira de rodas à qual se viu confinada nos últimos cinco anos de  vida. Ali está a cama estreita, com espelho no dossel para expandir sua visão. E ali estão oito instrumentos de tortura, os coletes ortopédicos e de gesso com os quais os médicos tentaram remediar sua coluna destroçada. Em um deles, Frida colou entre os seios a imagem de uma tartaruga, como ela, resistente na prisão da carapaça. Acima colou uma águia, dos lados um leão e um tigre, seus símbolos de coragem.
       Como o colete, tudo naquela casa fala. Há uma escrita por baixo do retrato do pai, há escritas em todos os ex-votos da sua grande coleção, o nome dela e de Diego - Diego Rivera, seu amado, seu marido - aparecem por toda parte, bordados em almofadas, escritos em cartas, desenhados. A casa que foi de dois apaixonados dialoga com os outros e se abre à luz.
         Em seguida, vai-se andando até a casa de Trotski.
         Chegando ao México, exilados, Trotski e Natália, sua mulher, hospedaram-se inicialmente em casa de Frida e Diego, que haviam se empenhado para conseguir-lhes o asilo. Frida e Trotski tornaram-se amantes. Dois anos mais tarde, depois de um desentendimento com Rivera, o casal Trotski se mudou para a casa que agora se visita, onde Trotski sofreria um atentado, e seria assassinado.
          Por questões de segurança, murou-se o portão principal de entrada. Os muros foram levantados. Ergueram-se duas torres para vigia. Construiu-se uma casa para os guardas e o pessoal de apoio. A porta envidraçada do quarto, que dava para o jardim, foi parcialmente murada. Depois do primeiro atentado, os acessos ao quarto do casal e ao do neto foram blindados. 
          Naquela casa, tudo está à espera da morte. As paredes são cinzentas, as lâmpadas pendem do fio, os poucos móveis pintados estão descascados. Tudo está nu, no osso. Não há uma nota de cor, um toque de alegria ou de calor, nenhuma concessão. Nas paredes do quarto, o casal deixou as marcas das balas do atentado. 
          Pesado é o hálito da casa em que traição e assassinato perduram, sem que baste a constante presença de visitantes para apagá-los. Andando por aqueles cômodos, a alma se retrai, doída, e ao sair em pleno sol quase nos surpreendemos com os ruídos e a vitalidade da cidade.

Fonte: Jornal do Brasil, domingo, 7 de maio de 2006.


              

O NIRVANA



MARACANGALHA
Dorival Caymmi

Eu vou pra Maracangalha
Eu vou
Eu vou de de 'liforme' branco
Eu vou
Eu vou de chapéu de palha
Eu vou
Eu vou convidar Anália
Eu vou
Se Anália não quiser ir
Eu vou só
Eu vou só
Eu vou só
Se Anália não quiser ir
Eu vou só
Eu vou só
Eu vou só sem Anália
Mas eu vou

http://letras.terra.com.br/dorival-caymmi/45579/
Ref. CD: “Maracangalha”, Dorival Caymmi, Caymmi, EMI MUSIC Ltda., 530597 2, Rio de Janeiro, 2000.
LPs: Caymmi, 1965, e Eu vou pra Maracangalha, 1957.

MARACANGALHA
Joaquim Ferreira dos Santos
Não é uma canção, é um mantra de Feliz 2012
Somos de índole triste, sempre contando a história de alguma consulta médica a que se foi ontem ou de um atropelamento na vizinhança. Nada dá certo. Melancólicos pela própria natureza, adoramos puxar uma angústia e disputar o game para descobrir quem sofre mais. Minha mulher foi embora, meu gato morreu, tenho sentido umas dores aqui.
Quando Eduardo Coutinho, no seu excepcional filme “As canções”, pergunta aos entrevistados as músicas que marcaram suas vidas, todos se lembram apenas das mais amargas. Somos vítimas da incompreensão alheia. Apenas uma alemã, que deixou a filosofia dos seus patrícios e virou professora de capoeira na Zona Sul, tenta esmurrar a pose de coitadinha abandonada. Levou um rabo de arraia da vida, o popular pé na bunda, mas escolheu como sua música um samba vingativo da Velha Guarda da Portela. A letra diz que ao abandono a vítima responderá com o castigo do desprezo, vai matar o crápula devagar. Foi a maneira que a alemã encontrou para se pôr de pé e filosofar em português.
Nada contra sofrer de amor, esse atropelamento inevitável na calçada da existência. Dependendo do dia, eu talvez até cantasse “O ébrio”, tocado pela dor furiosa do sujeito que na bebida busca esquecer aquela ingrata que se mandou. Música é um mistério. Nunca se sabe exatamente por que uma deixa marcas maiores que outras. Já pensei em coalhar os postes da cidade com reclames de alguma terapia que ajudasse a decifrar os males da alma através da observação do playlist de cada um. Nesse fim de ano, fazendo a lista dos planos para 2012, tenho amadurecido o projeto. De repente, quem sabe, breve num poste de esquina em Ipanema.
Diga-me a tua música e eu te direi quem és, poderia gritar o anúncio.
Canta que eu te escuto e te decifro.
Hoje, por exemplo, se eu estivesse caminhando pela rua e a produção do Eduardo Coutinho me perguntasse que música vai na minha vida, eu primeiro daria um drible na consciência e evitaria responder que era a insuportável “Ai, ai, assim você me mata”. Depois, eu responderia, sem mentir, “Maracangalha”.
É aquela em que o Dorival Caymmi vai para Maracangalha, que na minha fantasia imagino sempre ser um município vizinho à Pasárgada onde Manuel Bandeira teria na cama as mulheres que escolhesse. As outras cidades limítrofes são Xanadu e Eldorado. Maracangalha é o paraíso cercado de sorrisos e drinks de verão por todos os lados. Na música, Caymmi diz que está pronto, vai de liforme branco e chapéu de palha. Se a Anália quisesse ir, ótimo, senão, iria sozinho mesmo. O importante é ser feliz e mais nada, embora isso já seja outra música.
“Maracangalha” é uma daquelas brevíssimas letras do mestre baiano, meia dúzia de versos apenas, mas tudo sempre preciso e deflagrador de sabedorias. É o homem em busca do seu paraíso, espargindo o turíbulo da esperança como se fosse um GPS. Penso nela todo fim de ano, como um mantra que traz boas energias para a próxima temporada. Dá uma sensação de se pôr em movimento no encalço de uma rede para encostar o corpo cansado, dois braços à minha espera, uma muqueca para repor as energias e começar tudo de novo — mas desta vez sem estresse.
Eu chego à minha Maracangalha de liforme branco comprado na Richards e caminhando contra os ventos, embora isso me lembre que “Alegria, alegria” (“Por que não?!”) também seria uma boa música para se citar à turma do Eduardo Coutinho.
De qualquer maneira, diante da equipe do Eduardo Coutinho, eu estaria empenhado com os projetos de ano novo e nesses momentos instala-se automaticamente no tocadisco que me vai n’alma uma canção que anuncie tudo-vai-mudar. Eu talvez lembrasse de “Como será o amanhã”, aquela do “E a tristeza nem pode pensar em chegar”. Talvez fosse de Baden e Vinicius, repetiria “é melhor ser alegre que ser triste”.
Definitivamente, iria na contramão dos personagens do filme e deixaria a tristeza de lado. Ao contrário do posto no samba do Gil*, ela não é Senhora coisa nenhuma. Daria uma de Flávio Cavalcanti. Quebraria essa tradição, a mania brasileira de repetir Noel Rosa e jactarse com a aura dessas palavras pedantes e a arrogância macambúzia do seu “Quem é que já sofreu mais do que eu?”
Acima de tudo, alegre ou triste, constataria, diante da pergunta que o Eduardo Coutinho não me fez, ter sido criado num tempo em que a vida das pessoas comuns aparecia nas letras dos grandes artistas. De que falam mesmo as músicas de hoje? Daqui a 20 anos, quando o documentarista da época perguntar sobre as músicas que narraram a vida de cada um, será que vamos precisar recorrer às velhas baladas de Roberto Carlos para cantar o que passou em nossas camas e nossos corações?
A canção acabou, o que é uma pena, mas um ano novo está vindo aí e eu continuo me socorrendo das que ouvi há muito tempo, como aquela da estrada que o Caetano traçou e vai dar no avarandado do amanhecer, uma estrada que vai dar no mar. A esperança é a prova dos nove; a alegria, o porto seguro para se atracar em 2012. São os meus votos, as músicas que mando daqui, todas vestidas de liforme branco, diretamente da felicidade futura de Maracangalha.
Fonte: http://joaquimferreiradossantos.blogspot.com/
Obs. minha: o samba é do Caetano: "Desde que o samba é samba".

VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA
Manuel Bandeira
 
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar


E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Fonte: BANDEIRA, Manuel. Literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1981.

NÃO É POR FALTA DE DINHEIRO




NEGUINHO
Caetano Veloso

Neguinho não lê, neguinho não vê, não crê, pra quê?
Neguinho nem quer saber
O que afinal define a vida de neguinho

Neguinho compra o jornal, neguinho fura o sinal
Nem bem nem mal, prazer
Votou, chorou, gozou: o que importa, neguinho?

Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei: neguinho
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho

Se o nego acha que é difícil, fácil, tocar bem esse país
Só pensa em se dar bem - neguinho também se acha
Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz
Neguinho também só quer saber de filme em shopping

Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei: neguinho
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho

Se o mar do Rio tá gelado
Só se vê neguinho entrar e sair correndo azul
Já na Bahia nego fica den'dum útero
Neguinho vai pra Europa, States, Disney e volta cheio de si
Neguinho cata lixo no Jardim Gramacho

Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo
Mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo
Nego abre banco, igreja, sauna, escola
Nego abre os braços e a voz
Talvez seja sua vez:
Neguinho que eu falo é nós

Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei: neguinho
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho


Ref.: “Neguinho”, Gal Costa, Recanto, Universal, 60252772413, Rio de Janeiro, 2011.

NÃO É POR FALTA DE DINHEIRO*
Por Fábio Brito


            Volto com uma velha cantilena: ninguém lê. As estatísticas que estão aí não me deixam mentir. Somos um país de pouquíssimos leitores etc. e tal. Todo o mundo está careca de ouvir isso. Não vou ficar, aqui, expondo e repetindo números e mais números colhidos, certamente, dessas estatísticas às quais me refiro. O que pretendo é tentar, “quixotescamente’, encontrar um porquê para o fato – estarrecedor, a meu ver - de as pessoas não lerem, inclusive professores. Já sei que não faltará uma ‘galera’ para dizer que “lá vem mais bronca”. E vem mesmo! São canhões e projéteis, pessoal! Gosto de artilharia pesada.  
            Para início de conversa, ninguém mais vai ‘me’ dizer que não lê porque livro é caro. Eis a primeira e grande desculpa que todos tiram do bolso. Livro é caro mesmo! Consumir cultura não é barato neste país de meu Deus. Tudo bem, livro é caro. Entretanto, se o motivo pelo qual as pessoas não leem fosse o preço do livro, é evidente que, como diz, em outras palavras, Ana Maria Machado, as bibliotecas públicas estariam apinhadas de gente pegando livros e mais livros emprestados. Não vejo isso. Alguém, por acaso, vê? Os que lá aparecem vão em busca de obras para suas "pesquisas de escola". Se é que se pode chamar de “pesquisa” a mera cópia de trechos - que o professor não vai ler mesmo! – que, por sinal, serão muito mal amarrados depois. Até mesmo muitas dissertações de mestrado não fogem ao esquema, com um pouco mais de requinte, do “copia e cola”. Alguém duvida? Não ponho minha mão em qualquer ‘chaminha’ de fósforo.
            E o pior é que não só as bibliotecas públicas padecem desse mal. Muitas outras também. Há alunos que nem sequer têm “ficha” nesse espaço que, para mim, é o mais importante em qualquer escola. Assim como nas públicas, os alunos que por lá costumam aparecer ‘o’ fazem apenas para cumprir alguma atividade solicitada pelo professor. Os livros pesquisados são, quase sempre, os que dizem respeito somente à pesquisa. São bem específicos. Livros de literatura, que serão lidos por fruição mesmo? Nem pensar! Que pena! E são exatamente esses livros os que permitem as “reapropriações múltiplas”, como dizem especialistas. Ou seja, cada leitor irá "se apropriar" das obras de acordo com sua capacidade de abstração e outras questões. Referindo-me novamente à escritora Ana Maria Machado, podemos afirmar que, por meio dessas obras, a imaginação é alimentada com signos. No entanto, infelizmente, há muitos subnutridos por aí: de alunos a professores, passando por pais, diretores de escolas, orientadores, supervisores e... a lista é infinda.
            Caímos, agora, em um campo minado: se pais e professores, principalmente, não leem, as chances de formarmos leitores são mínimas. Poucos desconfiam da responsabilidade imensa de pais e professores na transmissão do gosto, da paixão, do amor pelos livros. Eu já disse inúmeras vezes, e não me canso de repetir, que, em casa ou em escola onde a leitura não é vista como prática prazerosa e enriquecedora, é quase impossível que se formem leitores. É o tal do exemplo. Não há como escapar. Professor apaixonado por livros – e que expõe isso sem falsidades e fingimentos – formará discípulos. Não duvido disso.  
             Sei que somos um país de 'tradição escravocrata' e que, também por isso, a leitura é algo cuja conquista se deu, em 'termos históricos', há bem pouco tempo. Entretanto, não podemos ficar amarrados a isso. Precisamos, sim, ser o exemplo, mas o bom exemplo, para essa geração que estamos formando e a que nossos discípulos formarão. Por mais panfletário que possa parecer, só formando bons leitores – e isso se dá via livro literário – conseguiremos preparar cidadãos capazes de fugir aos oportunistas de plantão, às seitas de domínio e aos políticos inescrupulosos.            

* Crônica baseada no texto A importância da leitura (In MACHADO, Ana Maria. Silenciosa algazarra: reflexões sobre livros e práticas de leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.)

UM 'CHÂTEAU', POR FAVOR




O TEATRO DOS VAMPIROS
Marcelo Bonfá / Dado Villa-Lobos / Renato Russo
Sempre precisei de um pouco de atenção
Acho que não sei quem sou
 Só sei do que não gosto 
 E destes dias tão estranhos
 Fica a poeira se escondendo pelos cantos.
 Este é o nosso mundo: 
O que é demais nunca é o bastante
(...)

UM CHÂTEAU , POR FAVOR
Por Fábio Brito

Sem titubear, responda, se puder, a esta pergunta meio capciosa: em uma segunda-feira, na chuva, quase anoitecendo, que motivos teria uma moça bem vestida (estava, inclusive, “de salto alto”) para lavar um carro? É isso mesmo! Ela estava lavando um carro com balde e pano, o que é mais trabalhoso ainda. Não consegue responder? Nem eu! Entretanto, lá vai uma tentativa de resposta: o carro lhe dá “status”, poder. Ela tem, afinal, um bem que, aos olhos de muitos, é “passaporte” para ser aceita nesta sociedade de que fazemos parte.  Assustou-se?! Mas é isso mesmo. Hoje, o que importa é a pessoa “ter”. Ter o quê? De preferência, algo valioso. Assim, a pessoa estará “feita”, como dizem. Quem não tem algo de valor, ou quem não tem algo, não merece andar por aí. Não merece existir. E carro, como sabemos, é visto, desde tempos imemoriais, como o elemento que separa os “que podem” dos que “não podem”. A moça que lavava seu carro na chuva sabe que, para ela “continuar sendo aceita” neste mundinho, terá de conservar direitinho seu precioso bem. Alguém pode dizer que, hoje, todos podem ter um carro. Nem todos! Nem todos!
É isso! Para essa moça, sua felicidade, imagino, é ter um carro e sair com ele por aí. Vez ou outra, deve convidar alguns amigos para uns passeios “legais”. Ela deve ter trabalhado bastante para comprar seu “brinquedo/passaporte”. Deve ter levado anos sonhando com o momento em que, um dia, teria um carro para mostrar a amigos e, talvez, a alguns desafetos. Pode ser maldade minha, mas isso pode ser a explicação do sacrifício de lavar o carro em plena chuva e, “ainda por cima”, com roupa “de festa”. Que cena!
Em verdade, "lavar o caro" nunca soou para mim como algo comum. Para muita gente, conservar o carro não é como conservar outro bem material qualquer. O cuidado que as pessoas têm com esse bem não é o mesmo que elas têm com uma roupa, por exemplo. E não é pelo preço do carro, que é bem mais alto - lógico! - que o de outros bens. Há mais mistérios por trás disso. Em se tratando do carro, o cuidado que muitos têm extrapola a simples vontade de querer que o objeto dure mais tempo. O cuidado excessivo com ele - já vi famílias inteiras lavando 'um' carro! - vai além. Esse "lavar o carro" é emblemático. Por trás disso, está, como já dissemos, o que a posse desse bem simboliza, representa.  
Pois é, essa história de lavar carros (ou de 'se' ter um carro!) nada mais é que o início de um assunto bem comum até:  "consumismo e aceitação", história mais do que “batida” em textos e conversas que rolam aos borbotões por aí. Voltemos a frisar: é por meio do consumo (de um "carro" ou de qualquer outro bem, mas principalmente de um carro) que as pessoas são "bem vistas", são aceitas. Temos de consumir! Somos obrigados a consumir! Se o produto for um carro, melhor ainda. Associado a ele, ao carro, está, como dissemos, o poder, o "status" e muitas "garantias". Quem consome tem dinheiro, não é mesmo? Ou parece que tem... Se se rompe a barreira econômica, outras (barreiras) também poderão ser transpostas.  
Consumo, então, é palavra de ordem. E isso já nos leva a outros questionamentos. Se consumir é uma ordem, os “shoppings” não nos deixam mentir.    Felicidade é consumo;  consumo é aceitação. Agora, então, quando o Natal e o fim de ano se aproximam, muita gente fica até deprimida se não for às compras. Nessa época – e noutras datas comemorativas, é claro! – brota uma “necessidade” incontrolável de as pessoas mostrarem que elas têm amor – ou afeto, ou carinho – por outras. Até aí, tudo bem. Quem não gosta de demonstrar amor, carinho e afeto? Quem não gosta de ser “gostado”? Todos nós, não é mesmo? O problema é que, para muitos, essa demonstração só é possível via presente. Ou seja, sem presente, ninguém consegue dizer que ama outra pessoa. Ninguém consegue demonstrar afetos e carinhos. Tristes tempos!
Nessa estrada da demonstração de algum sentimento por meio de presentes e mais presentes, a poeira não para de subir. Quanto mais a pessoa se sente obrigada a comprar e a receber (caso contrário, não há amor) presentes, mais ela se endivida. Lá vem outro questionamento: é exatamente isso de que nossa sociedade capitalista precisa. Quando mais a pessoa se endivida, mais ela precisa trabalhar. Hoje, ninguém mais vive do salário que recebe. As despesas estão sempre muitos quilômetros à frente. Constantemente, vejo pessoas dizerem que têm uma despesa mensal altíssima. E é exatamente por isso que elas trabalham muito. Sobre esse ganhar mais para gastar mais, impossível não lembrar um fragmento de “Eu sei, mas não devia”*, uma das crônicas mais bonitas – e mais divulgadas – de Marina Colasanti: “A gente se acostuma (...) a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra. (...)”
E deixa o povo trabalhar mais! E deixa o povo ter dois, três empregos! E deixa o povo enlouquecer de tanto consumir. Quanto a mim, estou longe das lojas. Tento estar, melhor dizendo. Vez ou outra, passo por algumas das quais, não raro, saio arrependido. Fica sempre a sensação de ter comprado algo de que eu não precisava e de que não vou precisar tão cedo. Ainda bem que arrependimento não mata... Só dá gastrite! Argh!

COLASANTI, Marina. Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.


CONSUMO, LOGO EXISTO
Frei Betto
Ao visitar em agosto a admirável obra social de Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijão, frutas e hortaliças. "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse. O eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc. A economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos da população, nos submete ao consumo de símbolos. O valor simbólico da mercadoria figura acima de sua utilidade.
Assim, a fome a que se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável. É próprio do humano - e nisso também nos diferenciamos dos animais –manipular o alimento que ingere. A refeição exige preparo, criatividade, e a cozinha é laboratório culinário, como a mesa é missa, no sentido litúrgico. A ingestão de alimentos por um gato ou cachorro é um atavismo desprovido de arte. Entre humanos, comer exige um mínimo de cerimônia: sentar à mesa coberta pela toalha, usar talheres, apresentar os pratos com esmero e, sobretudo, desfrutar da companhia de outros comensais. Trata-se de um ritual que possui rubricas indeléveis. Parece-me desumano comer de pé ou sozinho, retirando o alimento diretamente da panela. Marx já havia se dado conta do peso da geladeira. Nos "Manuscritos econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que "o valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens. Portanto, em si o homem não tem valor para nós." O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social. Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro da pobreza e à cultura da exclusão. Para o povo maori da Nova Zelândia cada coisa, e não apenas as pessoas, tem alma. Em comunidades tradicionais de África também se encontra essa interação matéria-espírito. Ora, se dizem a nós que um aborígene cultua uma árvore ou pedra, um totem ou ave, com certeza faremos um olhar de desdém. Mas quantos de nós não cultuam o próprio carro, um determinado vinho guardado na adega, uma joia? Assim como um objeto se associa a seu dono nas comunidades tribais, na sociedade de consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da grife. Não se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um carro, e sim uma Ferrari; não se bebe um vinho, mas um Château Margaux. A roupa pode ser a mais horrorosa possível, porém se traz a assinatura de um famoso estilista a gata borralheira transforma-se em Cinderela. Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberal nos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder.
Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos. E se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão causa frustração, depressão, infelicidade. Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados, é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela se torna também objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela, mas não é ela: bens, cifrões, cargos etc. Comércio deriva de "com mercê", com troca.
Hoje as relações de consumo são desprovidas de troca, impessoais, não mais mediatizadas pelas pessoas. Outrora, a quitanda, o boteco, a mercearia, criavam vínculos entre o vendedor e o comprador, e também constituíam o espaço das relações de vizinhança, como ainda ocorre na feira. Agora o supermercado suprime a presença humana. Lá está a gôndola abarrotada de produtos sedutoramente embalados. Ali, a frustração da falta de convívio é compensada pelo consumo supérfluo. "Nada poderia ser maior que a sedução" - diz Jean Baudrillard - "nem mesmo a ordem que a destrói." E a sedução ganha seu supremo canal na compra pela internet. Sem sair da cadeira o consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos que deseja. Vou com frequência a livrarias de “shoppings”. Ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrático", respondo. Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como vocês, respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz".

'SHANGRILÁ' AGORA!



SHANGRILÁ*
Roberto de Carvalho – Rita Lee

De repente eu me vejo
Amarelada, bodeada…
Sem ninguém
Nessas horas aparece a preguiça
A vontade de sumir… de vez

Se me der na telha sou capaz
De enlouquecer, e mandar tudo
'Praquele' lugar
E fugir com você pra Shangrilá
E me deixar levar por um
Beijo eterno
Por seu corpo envolvente
Mais quente que o inferno


SHANGRILÁ AGORA!
Por Fábio Brito

O inferno é aqui. Onde?! No trânsito de Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo, Brasil, Terra. Tudo bem que ninguém mais aguenta o mundo todo reclamando do trânsito, principalmente em cidades como Rio e São Paulo. No entanto, porque moro aqui, é do trânsito desta cidade que vou falar... e falar muito mal.
Para começo de bate-papo, nunca vi tanta gente ao volante sem o mínimo de educação e sem respeito ao próximo. Sem educação mesmo! Sem respeito mesmo! E ai de quem é/for educado! É massacrado, achincalhado. Só para ilustrar: sempre que há alguém tentando atravessar “na” faixa (“na” faixa!), paro o carro. Pausa para uma digressão: penso duas vezes (brincadeirinha) quando há alguma “beldade” sozinha, falando ao celular e querendo atravessar. Por que não tira o “brinco de pressão” da orelha para atravessar? Que inferno virou esse "troço" de celular! Faixa para pedestres não é calçadão de Ipanema. A situação – de trânsito – não combina com desfiles na faixa, não é mesmo? Desde quando é possível as pessoas falarem ao celular no meio do trânsito? É surreal isso.
            Bom, voltemos ao assunto: quando paro para alguém atravessar, o motorista (motorista?) de trás dá, não raro, aqueeeela buzinada [é claro que, pelo retrovisor, dou uma ‘olhadela’ para calcular, mais ou menos, a velocidade do companheiro que vem atrás, a fim, é óbvio, de evitar alguma colisão]. Incrível, mas ser educado irrita as pessoas. Não só ser educado. Respeitar a sinalização também: só “idiotas e imbecis” a respeitam. 
            Outra situação? O que não falta é exemplo para mostrar como é desalentador, ou desesperador, ser motorista educado ou pedestre – também educado – nesta cidade. É... também sou pedestre. Faço minhas caminhadas constantemente. Porque, como todas as pessoas, não caminho de “um lado só” da pista, chega o momento em que tenho de atravessar. Ai, que martírio! Não adianta “esticar” o braço ou fazer qualquer outro sinal. São raros os motoristas que param. Incrível! Parar para o pedestre atravessar não deveria ser a regra? Pois é, mas é a exceção. Está tudo errado, não está? E nem sou besta de tentar atravessar. Nem que eu me jogue na faixa! A solução, então, é esperar que o fluxo de automóveis termine. Pergunto, então: para que a faixa, se só conseguimos atravessar quando não há mais carros? Podemos, nesse caso, atravessar em qualquer lugar, independentemente de haver ou não faixa. Estou errado?
            Mais relatos? Vamos lá! Locais onde a pista é 'duplicada'. Nos momentos em que o trânsito é mais intenso (e são muitos esses momentos!), os carros ficam, normalmente, 'na' pista da direita (para quem conhece Cachoeiro, a Jones dos Santos Neves é um ótimo exemplo). Quando chego, vejo, de longe, aquela fiiiiiila interminável... e todos (ou quase todos) os carros na faixa da direita. Até aí, tudo bem. Em segundos, adivinhe o que vejo? Os engraçadinhos que vêm pela esquerda e, lá na frente, sinalizam que vão entrar para a direita. É ou não é sacanagem? E o pior de tudo é que esses engraçadinhos sempre encontram alguém que lhes dá espaço. Fico possesso nessa hora! Já houve situação em que essas belezinhas, encostadinhas em meu carro, “abriram seta”. Não titubeei: fiz sinal (quando não falei) para que voltassem ao fim da fila, lugar onde eles deveriam, se fossem educados, estar. Claro que não faltaram “aqueles gestos e sinaizinhos” que as pessoas deseducadas conhecem tão bem. Ergui a cabeça e segui adiante.  
            O que fazer, meu Deus, para não ter estresse no trânsito? Sendo motorista ou "carona", a irritação é a mesma. Para aliviar a irritação, vivo ouvindo música, a saída mais saudável que encontrei para eu não ter um “treco” no trânsito. Nem congestionamento me irrita mais do que falta de respeito e de educação. E olhe que não aguento ficar cinco minutos em um engarrafamento. Sempre invento uma maneira de voltar, de fugir por um atalho. Não suporto. Tenho até comichão. Exatamente por isso, eu não suportaria morar em uma cidade chamada “grande”. Já imaginou um engarrafamento de cinco horas na Avenida Brasil ou na marginal Tietê? Nem pensar! Rio e São Paulo? Adoro! Mas em fins de semana. Gosto, sobretudo, da cultura que se respira nesses lugares, o que, decididamente, não há por aqui. Mas isso é outro assunto.
            Outra solução para eu ficar livre das chateações no trânsito seria seguir os conselhos de nossa Rita Lee: “mandar tudo pra aquele lugar e fugir (com você) pra Shangrilá” ou “viver pelado, pintado de verde, num eterno domingo”. Não vejo saídas melhores. Alguém vê?
  
*http://www.ritalee.com.br/?p=1360

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

FERNANDA POR MILLÔR



Colaboração da amiga Mariana Thiengo.
A cena aí de cima, de "Eles não usam black tie", é uma das mais belas do CINEMA.


RETRATOS 3x4 DE ALGUNS AMIGOS 6x9
FERNANDA MONTENEGRO
Millôr Fernandes
Fernanda é tudo que sobrou do que sempre me ensinaram. A sombra dos quarenta graus à sombra. Procurem os gestos no vocabulário, olhem Fernanda: estão todos lá. Sua vida é um palco iluminado. À direita as gambiarras do perfeccionismo. À esquerda os praticáveis do impossível. Em cima o urdimento geral de uma tentativa de enredo a ser refeita todas as noites, toda a vida. Atrás os bastidores, o mistério essencial. Embaixo, o porão, que torna viáveis os mágicos e onde, faz tanto tempo!, se ocultava o ponto. Em frente o diálogo, que é uma fé, e comove montanhas.
Gênio da espécie teatronicus fanaticus, é tal o talento de Fernanda que nunca consegui saber se é bonita. É. Mas pode ser que esteja só representando. Pois se a pusessem no Santos, no lugar de Pelé, tenho certeza de que o interpretaria com tal perfeição que marcaria um gol de lençol. (A Seleção não sabe o que está perdendo). Da ambiguidade da arte que pratica fico pensando se é mais difícil ser sincera na vida depois de todas as mentiras no palco ou ser autêntica no palco depois de todas as perfídias da existência.
Chamam-na de atriz de fôlego; é de reparar que nem respira. Pois, nos adventos, remói. Embora nem sempre como antigamente. Já que há o risco do abismo na exibição de cada noite. A expressão corporal adquiriu, nela, a força do verbo. E a palavra, dita por ela, vem multifacetada. No cinema sua cabeça é grande, no palco é bem pequenininha, demostração swiftniana (pirandelina) da relatividade nas propostas. Fer-nan-da, cinco sílabas mágicas como as três de fe-li-ci-da-de: e sempre a pomos onde estamos. Tem um riso que sublinha, um olhar que diagrama, ombros de mulata e uma vaga assessoria do divino. Pois crê em Deus, inda que não LHE dê excessiva intimidade; se um dia ELE não aparecer ela veste o manto e faz o SEU papel.
Nunca saiu do Brasil mas esse é o seu mundo. Tem raras iras, todas, porém, postas à prova. Com dois filhos, outros tantos pais, o dobro de avós e o quádruplo de bisavós, sua ascendência é o infinito. E os filhos crescem, lhe ampliando a vida, em anos e memórias. Magra, branca, fugidia, tem, contudo, a coragem da ossatura e o prolongamento moral que o espírito empresta aos fêmures e aos cúbitos.
São poucos os que, como ela, conseguiram chegar aos 18 anos em menos de quarenta. Em Alagoas, meio século atrás, teria sido outra Maria Bonita. Em Rouen, há quatrocentos anos, teria convencido Joana D'Arc a escapar da fogueira. Veste-se como quem não vai a lugar nenhum e tem toda razão - o acontecimento é ela. Parca de excessos, é perdulária em antonímias. Seu demagogo predileto é muito humilde. Sua cor predileta é a cortesia. Sua única ambição é a ubiquidade. Do Engenho de Dentro ainda carrega um ligeiro sotaque. Se fosse homem queria ser mulher.
Esmiúça os contrastes e aceita ternamente as vacilações dos que nunca abdicaram. Cínica diante da Glória resiste sempre às apoteoses do outrora quinto ato. Mas seu ato de viver não tem paredes: há sempre gente assistindo à sua multiplicidade. Tem certas dúvidas: nenhuma delas certa. É corriqueira todo dia, costumeira quase todos os dias, ocasional nem sempre, e mítica, só para nós que lhe conhecemos a quinta essência. Psicanalista e confessor, sobe no palco, desnuda o inconsciente coletivo e redime uma arte que muitos dizem extinta. E eis o segredo: crê no texto, tem fé na direção, comunga com a platéia e sabe que, no dia do Juízo Final, os críticos serão todos perdoados.
Seu rosto conserva recordações que a memória esqueceu. Reparem: às vezes seu sorriso chega tarde para uma expressão de alegria. Ou sai antes do fim da euforia, dublagem existencial errada que deixa notarmos os arcanos de sua melancolia. Pois dói, eu sei, aqui assim, lá nela. Dois seios, como em toda mulher. Ânsia de muitos seios, como a Loba de Roma. A sabedoria do passo, a negação positiva, o pouco de culinária que ainda lembra são os seus enigmas para uma personalidade do outro lado.
Sem não ser o que é, pode ser outra coisa, na saudade antibovarista de uma vida total. Explicando melhor: tomou a parte pelo todo, sendo o todo impossível. Explicando inda mais: fez da fatia o bolo e comeu-o inteiro, deixando porém um pequeno pedaço de sonho para todo mundo.
Já interpretou Mirandolina, "madame" Warren e Arlete Pinheiro. Se fez Montenegro, se casou com Torres e, do alto dessas pirâmides, há quarenta peças os dois se contemplam. Desgarrada da geração em que nasceu, flutua acima daquela em que vive, nessa terra-de-ninguém em que é perigoso estar só sem estar mal acompanhado: diz-me quem és e eu te direi com quem não andas. Aplaudida em toda parte não regateia aplausos ao público que a freqüenta. E busca, nos desvãos dessa troca, a verdade da Glória. Que não fica, não eleva, não honra, nem consola. E uma parte da qual pode ser até que esteja na bilheteria. Sabe que uma atriz está sempre na iminência de ser uma mera atriz. Acha imperfeita uma língua que só tem cama e não tem camo, homem poltrão sem mulher poltrona, e síntese anacrônica e não ternuras múltiplas praticadas sob o consenso popular aferido por meio do votodiretouniversal obrigatório. Repetem o que ela diz mas o difícil é repetir os seus silêncios. Pois não sei quantos idiomas fala mas cala, essencialmente, nessa que é, meu Deus, a língua nossa! Conserva o que a nutre, extirpa o que lhe tolhe.
Crê no perigo da ausência, que nunca tem razão, por isso sempre está e sempre fica, ou deixa alguém de muita confiança. E já tem tudo arrumado para o grande dia. Só não vai de comenda porque quem a condenou perdeu o que não tinha. Mas, como recordação da infância, ainda pula amarelinha nas adjacências. Corda, porém, só em casa de enforcado. Sua última opção é estar com a vida quando quase ninguém mais respira. Algumas decisões: a de morrer de pé, como um batavo. A de brincar de Deus, como um bandido. A de apostar no destino, dando ao gato seis vidas de vantagem. E, após o final, poder escutar no silêncio e no escuro, o último espectador que se afasta nas aléias desertas.
http://www2.uol.com.br/millor/retratos/fernanda.htm






domingo, 25 de dezembro de 2011

"VAI EU, UM AMIGO MEU E QUATRO 'MULÉ'"



PALAVRAS
Sérgio Brito / Marcelo Fromer

Palavras não são más
Palavras não são quentes
Palavras são iguais
Sendo diferentes
Palavras não são frias
Palavras não são boas
Os números 'pra' os dias
E os nomes 'pra' as pessoas
Palavras eu preciso
Preciso com urgência
Palavras que se usem
Em casos de emergência
Dizer o que se sente
Cumprir uma sentença
Palavras que se 'diz'
Se 'diz' e não se pensa
Palavras não têm cor
Palavras não têm culpa
Palavras de amor
'Pra' pedir desculpas
Palavras doentias
Páginas rasgadas
Palavras não se curam
Certas ou erradas
Palavras são sombras
As sombras viram jogos
Palavras 'pra' brincar
Brinquedos quebram logo
Palavras 'pra' esquecer
Versos que repito
Palavras 'pra' dizer
De novo o que foi dito
Todas as folhas em branco
Todos os livros fechados
Tudo com todas as letras
Nada de novo debaixo do sol

CD: Titãs, "Õ blésq blom". WEA M257042-2.


“VAI EU, UM AMIGO MEU E QUATRO MULÉ”
 Por Fábio Brito


Graças a Rubem Braga, aprendi que a crônica pode “nascer” a qualquer momento e em qualquer lugar. Às vezes, de uma conversa que ouvimos “de passagem”, nasce uma (crônica). Pois foi isso que me ocorreu há alguns dias. Ou melhor, é isso que me ocorre constantemente. Em uma caminhada “notúrnica”, pude ouvir o "brilhante de dezoito quilates" do título aí de cima. Sentado no encosto de um banco em um ponto de ônibus e com os pés no assento, um rapaz, ao celular, disse essa “pérola” exatamente no momento em que por ele eu passava.
 Para exercitar minha imaginação, fiquei pensando no lugar aonde o “eu”, o “amigo meu” e as “quatro mulé” poderiam ir. Quem arrisca uma resposta? Certamente, para um lugar em que se fala a língua de todos nós, para espanto dos puristas. Tocaremos nesse assunto daqui a pouco.
Ah! Ainda tentei exercitar meus conhecimentos matemáticos: se “é” quatro “mulé”, façamos, então, as contas. “Arme e efetue”: o “eu” fica com uma; o “amigo meu”, com outra; o carinha (acho que era homem) com quem o “eu” conversava fica com outra. Sobrou uma “mulé”, não é mesmo? Será que é uma reserva? Hum... pensemos, pois, sobre esse problema seriíssimo. Não vejam machismo nisso, por favor.
Voltando ao que o rapaz disse, o certo é que houve comunicação. Muitos afirmarão isso, inclusive eu. E houve mesmo! O interlocutor do rapaz entendeu, claramente, que seis pessoas iriam ao tal lugar: o “eu”, o “amigo meu” e as “quatro mulé”. Ao contrário do que muitos pensarão, não “torci o nariz” quando ouvi o que o rapaz disse. Esse moço pertence – é óbvio! – a um grupo social. E é exatamente nos grupos sociais que as variações linguísticas têm sua origem.
 A fim de espantarmos de vez os preconceitos, é bom que se saiba que as diferenças de linguagem são, em verdade, um distintivo (ou um emblema) dos grupos sociais. Assim, essas diferenças contribuem para a constituição da identidade desses grupos. Tais variantes, em grande parte, correspondem a grupos até certo ponto definidos: as pessoas mais jovens, por exemplo, têm seu linguajar próprio, assim como as mais velhas e por aí segue a história.
Há que se considerarem ainda as situações de comunicação. Claro que ninguém vai tomar uma caipirinha no botequim da esquina, por exemplo, e usar a variante culta da língua! Deixe a ‘erudição’ para outras situações. Em uma sala de aula, por exemplo, se o aluno (de Letras!) diz que precisa “coisar” algo, aí é desleixo com a língua. Se, em um vestibular, pede-se o emprego da variante culta da língua, é preciso usá-la. No entanto, muitos “misturam” tudo e transpõem a linguagem do “facebook” - só para citar um exemplo - para a redação do vestibular. Derrapada feia! Não seria deslize se, na proposta, a utilização da linguagem do “face” fosse permitida. É preciso cuidado. Cuidar da língua é essencial. Caso contrário, ela se esfacela.    
A língua, como sabemos, é um organismo vivo e, como tal, vai incorporando mudanças, o que é muito salutar. E tais mudanças não se relacionam somente à linguagem oral, mas à escrita também, embora, neste caso, essas mudanças ocorram com mais vagar, com mais lentidão. Havendo ou não mudanças, é importante que se entenda que há diferenças entre linguagem oral e linguagem escrita. Muita gente parece não entender isso. Assim, o que venho notando – e já faz um tempinho – é que está havendo uma volta ao período fonético da língua portuguesa. Ou seja, a escrita tem se mostrado como a reprodução fiel da fala. E como é difícil fazer os alunos entenderem isso! Não deveria ser tão difícil, não é mesmo?! Frequentemente, chegam-me textos escritos que são a “pura reprodução da fala”. Se tentarmos localizar a origem disso, vamos esbarrar na falta de contato com o texto escrito, claro! Querem exemplos? Há muitos! Quem, por exemplo, "conclui" (?) o ensino médio em poucos meses terá pouquíssimo contato - ou quase nenhum! - com a leitura. E dificilmente escreverá... As pessoas, neste mundo "das tecnologias" (nada contra a tecnologia!) em que vivemos, estão lendo muito pouco. E isso não é um mal de que padece somente a garotada. Sem leitura (a tradicional mesmo!), tempos sombrios vêm por aí... ou já chegaram?


  
           

sábado, 24 de dezembro de 2011

"MISÉRIA É MISÉRIA EM QUALQUER CANTO..."



            MISÉRIA
            Arnaldo Antunes / Sérgio Britto / Paulo Miklos

            Miséria e miséria em qualquer canto
            Riquezas são diferentes
            Índio mulato preto branco
            Miséria é miséria em qualquer canto
            Riquezas são diferentes
            Miséria é miséria em qualquer canto
            Filhos amigos amantes parentes
            Riquezas são diferentes
            Ninguém sabe falar esperanto 
            Miséria é miséria em qualquer canto 
            Todos sabem usar os dentes
            Riquezas são diferentes
            Miséria é miséria em qualquer canto 
            Riquezas são diferentes
            A morte não causa mais espanto 
            Miséria é miséria em qualquer canto 
            Riquezas são diferentes
            Miséria é miséria em qualquer canto 
            Fracos doentes aflitos carentes
            Riquezas são diferentes
            O sol não causa mais espanto
            Miséria é miséria em qualquer canto
            Cores raças castas crenças
            Riquezas são diferentes

           
Ref.: CD: "Miséria". Titãs, Õ blésq blom, WEA, M257042-2, Rio de Janeiro, 1989.


O PRIMEIRO MILAGRE
Nélida Piñon

            Maria consola a fome do visitante. Só dispõe de sonhos para repartir naquela hora do dia ensolarado. O visitante resiste à benevolência humana que não lhe cura a vida. A vida se define pela abastança, esta é a rota da felicidade.
            Maria, então, recorre ao filho. A partir do olhar da mãe, Jesus aceita promover o conceito da fartura. Para cumpri-lo, inaugura ali mesmo, perto de Maria, seu primeiro milagre. Decide, de um único pão, reproduzir mil outros, em um só golpe.
            Abre, fulgurante, as comportas do amor, sob a guarda da mãe. Não teme empobrecer porque se privou dos próprios bens. Sob a custódia da mulher, inventa símbolos, instaura grande carnaval moral.
            Inaugura, pois, a série de milagres com a reprodução dos pães. O gesto alcança dimensão cênica. Não quis milagre discreto, educado, perpetrado no escuro, no recesso do lar. Refutou também a turbulência dos amantes que, em nome da falsa generosidade da carne mutuamente saciada, interrompem as iguarias privadas da luxúria, para deixar tombar dos lábios entreabertos, em plena agitação do beijo, as migalhas do seu amor carnívoro. Decerto pensando, com o gesto distraído, atenuar a miséria de quem a vida expulsou do banquete.
            Fervoroso adepto do alvoroço dos sentimentos humanos, Jesus persiste nos milagres. Aspira implantar com eles a misericórdia, erradicar a penúria. Milagre é um ato natural, quando se tem em mira a incansável ilusão humana. Ou a fé, este estandarte que mesmo em frangalho faz a alma tremular ao indício de qualquer brisa.
            Cristo perambula pelas aldeias. Sem cajado, mas dono do verbo revolucionário. Sua eloquência, herdada de Deus e testada anteriormente pelos profetas, bane a miséria e a injustiça do seu território moral. O trigo deve estar ao alcance do homem. Para tanto, banaliza o bem comum e censura aquele que descrê do ato transformador capaz, por si só, de substituir a carência pelos mananciais da fartura. Irmão do homem não é o que brame a palavra inconsequente em mesquinha imitação dos gestos de Deus.
            Este Deus, antigo protagonista da Bíblia, é de uma natureza essencialmente teatral. Inventou a terra, mas, em prol do livre arbítrio, deixou o espetáculo ao encargo da consciência do homem.
            Cristo escuta os homens. A encenação da fome, levá-la ao palco da realidade, aviltaria os atores do próprio drama. Seu Deus exige provas públicas, sim, de fé, mas aposta na prática do seu milagre. Assim, Jesus convoca seguidores. Para formar, quem sabe, a legião que se insurja contra a miséria em prol da multiplicação dos pães a cada difícil amanhecer. Para pisar o palco do cotidiano, gargalhar, soluçar, amar, esse adepto do Cristo deve aprender a inclinar-se ante os acordes da piedade que o coração anuncia. Ao som da trombeta, proclamar que, antes de Cristo, o próprio homem exigiu primeiro o direito aos recursos da vida. E quem lhe siga as pegadas desamarra os nós da indiferença, repudia a estética do canibalismo, que expurga feios, desdentados, miseráveis.
            Ao seguir de perto o coração em chagas do Cristo, precisa rasgar as cortinas da casa, que vedam a luz, e abrir as portas do coração a machadadas. Espalhar assim a doçura e espantar o medo da morte. É o descaso pela vida que assopra os princípios da cobiça, da avareza. A agonia oriunda do ouro esquarteja as ilusões.
            O espírito desabrido, que Cristo estimula, apunhala os dias vãos, decepa as unhas de mandarim que cegam os olhos para que não se enxerguem os pobres, de gengivas descarnadas.
            Enquanto se aguarda a totalidade do Cristo, os senhores do espetáculo da terra prevalecem. Para eles a verdade já não ofende. Deus não lhes cruza as portas. Guardam, à entrada da casa, os sinais do desprezo pelo próximo. O frio do desamor é o manto que os resguarda.
            Os miseráveis da terra não levam em seus rostos os nossos rostos. Não espelham em sua humanidade o nosso ser. Somos, em tudo, antagônicos. Nós somos a espécie que Deus quis preservar. Eles, os miseráveis, os que merecem morrer. Só Jesus, oriundo da fé, aninha-se entre eles à espera do milagre. Cabe agora ao homem a coragem de multiplicar os pães e fazer afinal o seu primeiro milagre.

Fonte: Jornal do Brasil, domingo, 12/9/93 (caderno especial FOME)


sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

"DE PORTO ALEGRE AO ACRE, A POBREZA SÓ MUDA O SOTAQUE"



Às amigas Ana Rita Louzada e Isabel Bastos, que fizeram leituras dramatizadas e inesquecíveis de O bicho e A bomba suja, respectivamente.

SERES TUPY
Pedro Luís
Seres ou não seres
Eis a questão
Raça mutante por degradação
Seu dialeto sugere um som
São movimentos de uma nação
Raps e hippies
E roupas rasgadas
Ouço acentos
Palavras largadas
Pelas calçadas sem arquiteto
Casas montadas, estranho projeto
Beira de mangue, alto de morro
Pelas marquises, debaixo do esporro
Do viaduto, seguem viagem
Sem salvo-conduto é cara a passagem
Por essa vida, que disparate
Vida de cão, refrão que me bate
De Porto Alegre ao Acre
A pobreza só muda o sotaque

Ref.: CD: "Seres tupy". Ney Matogrosso e Pedro Luís e a Parede, Vagabundo, Universal/Som Livre, 6024981751-3, Rio de Janeiro, 2004.
         
           SACOS DE LIXO
              Ignácio de Loyola Brandão

              'Você precisa dar um jeito! Assim não é possível! Precisa ver de onde vêm estes gatos ou cachorros. Devem ser de algum vizinho. Todas as noites, a mesma história! Os sacos  de lixo estão despedaçados. Reclamei dos lixeiros, outro dia, quando vieram pedir caixinha. Eles disseram que é o mesmo, com todos os lixos da rua. Uma porcariada, fica difícil para eles também. Quando apanham os sacos, estão abertos, rasgados, dilacerados, metade cai pelo caminho". Aconteceu, logo que nos mudamos para uma casa, na Aclimação, tranquilo bairro classe média de São Paulo, ainda não contaminado pela violência. Crianças brincam numa pracinha, vizinhos ficam conversando na porta, carros dormem na rua, há um enorme parque com lago, onde, antigamente, foi o jardim de aclimatação dos animais, antes de serem transferidos para o zoológico. As ruas eram limpas, tudo cuidado. Até que começou a aparecer o problema dos lixos rasgados. Terça, quinta e sábado são dias de o caminhão passar e recolher o lixo. Passa na madrugada, fazendo uma barulheira infernal. Na manhã seguinte à passagem do caminhão, a rua amanhecia cheia de porcaria. Todos começaram a reclamar. Mandaram cartas à empresa responsável pela coleta. Até que falaram com os lixeiros, numa tarde em que passaram para pedir caixinha. A indústria da caixinha é irritante. Da caixinha ao suborno e comissões para políticos e administradores, tudo parece fazer parte do esquema de corrupção que assola o país. Mas o mistério era: os lixos rasgados. Vizinhos reunidos, decidiu-se: seria feito um turno de vigilância. Cada noite, dois homens estariam à espreita, até se resolver o caso.
            Não foram necessárias muitas noites. Na primeira, um escondido atrás de uma árvore da praça e outro nos arbustos de um jardim, logo, solucionaram o caso. Que se mostrou de um primarismo que dispensava elocubrações à la Hercule Poirot ou Simenon. Assim que a rua se aquietou, eles surgiram. Eram dez. Vinham de pontos diferentes, mas pareciam ter programado. Chegavam com cuidado diante de cada casa, assuntavam, se havia alguma lâmpada acesa, passavam para a próxima. Eram meninos de seis a dez anos, se bem que ficava difícil dizer se o de seis não teria dez, ou o de dez não seria alguém de quinze. Magros, olhos fundos, cautelosos, chegavam nos sacos de lixo. Tentavam, primeiro, desamarrar a boca. Se estava complicado, rasgavam. E começavam uma autópsia, separando toda a porcaria que estava dentro. Latas, papéis, folhas. O que indicava ser resto de comida era apanhado e colocado numa lata de óleo, dessas de vinte litros. Compenetrados, parecendo técnicos especializados, sabendo o que queriam. Alguns não se continham, comiam ali mesmo nacos de pão, restos de macarrão, chupavam ossos. Nenhum dos vigilantes teve coragem de sair de seu posto, dar um carreirão. Estavam paralisados, chocados. Porque sabemos das coisas, lemos sobre elas, vemos na televisão, ouvimos conversas. No entanto, parecem distantes. E uma notícia em tevê vem pasteurizada, a imagem destrói a notícia, ela é fria. Outra coisa é olhar e ver, à sua frente, um bando de meninos, da idade de nossos filhos, se atirando furtivamente, e com medo, sobre sacos de lixo, em busca de comida. Se isto ocorre num bairro classe média de São Paulo – e de onde vêm estes meninos, quanto caminham pela noite? – imaginemos no resto do Brasil. Que formidável exército esfomeado percorre as ruas, à noite, enquanto deixamos sobras nos pratos e os restaurantes jogam comida no lixo. O desperdício mataria a fome de quantos? E, assim, dia desses, fui tomado por um calafrio, ao olhar o relógio, cujo ponteiro de segundos fazia tic-tic-tic. Naquele momento me veio uma revelação, uma iluminação. Como que em neon vermelho, vi à minha frente uma outra notícia: a de que, a cada segundo, morre uma criança no Brasil. De fome ou de subnutrição. Como segurar aquele ponteiro maldito? E adiantaria segurar? E quando chegar o dia em que este exército esfomeado nos engolir? Nos devorar canibalescamente? Poderemos reclamar? 

Fonte: Jornal do Brasil, domingo, 12/9/93 (caderno especial "Fome")


            O BICHO
           Manuel Bandeira              

            Vi ontem um bicho
            Na imundície do pátio
            Catando comida entre os detritos.

            Quando achava alguma coisa,
            Não examinava nem cheirava:
            Engolia com voracidade.

            O bicho não era um cão,
            Não era um gato,
            Não era um rato.

            O bicho, meu Deus, era um homem. 

           Rio, 27 de dezembro de 1947.
           BANDEIRA, Manuel. Belo belo.            

  

          NOTÍCIA DE JORNAL
           Fernando Sabino

          Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, trinta anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante setenta e duas horas, para finalmente morrer de fome.
          Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do pronto- socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que acabou morrendo de fome.
          Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome.
          O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Médico Legal sem ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.
          Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa – não é homem. E os outros homens cumprem deu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum. Passam, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.
          Não é de alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.
          E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo providências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.
          E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição, tombado em plena rua, no centro mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, um homem morreu de fome.
          Morreu de fome.

Fonte: Jornal do Brasil, domingo, 12/9/93 (caderno especial "Fome")


SEM BARULHO
João Antônio

            Sobejava, assim, a pouca vergonha. Descalabro. A perversidade corria solta e sangrava à grande. Massacre após massacre, polícia no centro do redemoinho e só se sabia, pelas notícias, quem morria. Quem matava não aparecia.
            O povo, antes, dizia. Agora, só pensava: “Urubu tá comendo gente”.
            Então, um homem morreu de fome na estação de ônibus. Um brasileiro como tantos, alagoano, pouquinho mais de cinquenta anos e magreza áspera, na Rodoviária do Rio de Janeiro.
            Um dos molambos da área, dos que costumam baixar cedinho à rodo e acabam, pela presença, velhos conhecidos da indiferença. Passa, sujo, caquerado, pelos funcionários, esbarra nos homens da Polícia Militar, atrapalha o conforto relativo e o bem-estar dos passageiros à espera dos ônibus interestaduais.
            Cedo. Veio trêmulo, troncho, o saco de farinha imundo e quase vazio às costas. Arriou na poltrona e sofreu quieto, a cabeça bandeou e pendeu um tanto para a esquerda e endureceu. De todo.
            Ali apagou sem barulho. Tempo correu, alguém se encabulou com aquele corpo imóvel e continuado. Foi tocado. E deram com o morto. Descobriram-se coisas no saco imundo. Um nome na carteira profissional. Inútil, não tinha trabalho ou patrão. Tinha morrido à míngua, só feito Job. Sua sujeira e sua solidão eram de causar nojo.
            Veio alguém com um saco de lixo, plástico preto. Um outro arranjou, cobriu o corpo da cintura para cima. Nem foi preciso que descruzassem os pés pretos dentro da sandália fuleira. Assim, o morto de fome, ensacado da cintura para cima, já não incomodava.
            Os outros puderam, em paz, cruzar as pernas, ler, conversar, ir e vir, enquanto esperavam o ônibus. Ele já não perturbava sequer a visão e a pressa da rodoviária, segunda grande do país.
            Um Raimundo, descobriu a polícia. Com certeza nada ouviu ou soube ao redor da palavra solidariedade. Sujo, só alterava um pouco; depois, morreu de fome sem barulho. Também não fez agito depois de morto – não teve quem lhe reclamasse o corpo.
            Raimundo, solteiro ou casado, morreu como nem os cachorros morrem na cidade.
            Passou.
            A cidade tem litoral rico, e terra tão fecunda forneceria três colheitas todo ano, milho e feijão. A firme Bolsa de Valores do país, a poderosa emissora de televisão, o segundo produtor industrial do Brasil, o Carnaval maior festa popular do mundo, tem raio laser, computadores magníficos, infalíveis, uma ponte tão bonita e grande atravessa a baía. A cidade com alguns milhões de pessoas, chamada de muito heroica e gentil.


Fonte: Jornal do Brasil, domingo, 12/9/93 (caderno especial "Fome")


A BOMBA SUJA
Ferreira Gullar

Introduzo na poesia
a palavra diarreia.
Não pela palavra fria
mas pelo que ela semeia.

Quem fala em flor não diz tudo.
Quem me fala em dor diz demais.
O poeta se torna mudo
sem as palavras reais.

No dicionário a palavra
é mera ideia abstrata.
Mais que palavra, diarreia
é arma que fere e mata.

Que mata mais do que faca,
mais que bala de fuzil,
homem, mulher e criança
no interior do Brasil.

Por exemplo, a diarreia,
no Rio Grande do Norte,
de cem crianças que nascem,
setenta e seis leva à morte.

É como uma bomba D
que explode dentro do homem
quando se dispara, lenta,
a espoleta da fome.

É uma bomba-relógio
(e relógio é o coração)
que enquanto o homem trabalha
vai preparando a explosão.

Bomba colocada nele
muito antes dele nascer;
que quando a vida desperta
nele, começa a bater.

Bomba colocada nele
pelos séculos de fome
e que explode em diarreia
no corpo de quem não come.

Não é uma bomba limpa:
é uma bomba suja e mansa
que elimina sem barulho
vários milhões de crianças.

Sobretudo no nordeste
mas não apenas ali,                                                                                                          
que a fome do Piauí
se espalha de leste a oeste.

Cabe agora perguntar
quem é que faz essa fome,
quem foi que ligou a bomba
ao coração desse homem.

Quem é que rouba a esse homem
o cereal que ele planta,
quem come o arroz que ele colhe
se ele o colhe e não janta.

Quem faz café virar dólar
e faz arroz virar fome
é o mesmo que põe a bomba
suja no corpo do homem.

Mas precisamos agora
desarmar com nossas mãos
a espoleta da fome
que mata nossos irmãos.

Mas precisamos agora
deter o sabotador
que instala a bomba da fome
dentro do trabalhador.

E sobretudo é preciso
trabalhar com segurança
pra dentro de cada homem
trocar a arma da fome
pela arma da esperança.
GULLAR, Ferreira. Dentro da noite veloz. 3ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.