sábado, 25 de agosto de 2012

SALVAÇÃO PELA POESIA



Para Beatriz Fraga, Hércules Campos e Valéria Bressan, amigos extremamente sensíveis.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Cecília Meireles


GUARDAR

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Cicero, Antonio. Guardar: poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Record, 1996.

UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO
VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor
dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.

Barros, Manoel. O livro das Ignorãças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.


POEMAS AOS HOMENS DO NOSSO TEMPO
XVI
Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo

Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe o ornamento, desconversas:
“Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas”.
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto

Não cabe no meu canto.

HILST, Hilda. Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo: Globo, 2001.


Receita para arrancar poemas presos:
Você pode arrancar poemas com pinças.
Buchas vegetais, óleos medicinais.
Com as pontas dos dedos, com as unhas.

Você pode arrancar poemas com banhos
De imersão, com o pente, com uma agulha.
Com pomada basilicão.
Alicate de cutículas.
Com massagens e hidratação.

Mas não use bisturi quase nunca.
Em caso de poemas difíceis use a dança.
A dança é uma forma de amolecer os poemas,
Endurecidos do corpo.

MOSÉ, Viviane. Pensamento chão. Rio de Janeiro: Record, 2007.


A VOZ DA POESIA

Affonso Romano de Sant’Anna

A poesia exige um silêncio abismal. E isto pode levar à vertigem.
Ou: a poesia é quando se está à beira de si mesmo. Cair em si, sem se perder, ou achar-se do outro lado de si mesmo. Isto exige perícia. Pois há que ouvir sons, ruídos, mensagens que fluem também do lado de fora, no exterior.
Certa vez fiquei duas horas sobre as pedras do Arpoador, à toa, apenas ouvindo o mar. O marulhar do mar. O marulhar da alma. É preciso uma certa ousadia para se ouvir o nada. O nada é onde tudo começa. É de onde surge o a voz da poesia.
Estranha relação entre o eu e o mundo. O pessoal e o social. Há de haver uma orquestração.
Não é de muita valia ficar chorando pelos cantos. O choro pessoal ainda não é poesia.Tem que haver algo mais: converter-se em coro.
Por isto a voz do poeta é uma voz de utilidade pública. Quando não sabemos como dizer certas coisas, pedimos a voz do poeta emprestada e entoamos uma verdade simbólica.
Rainer Maria Rilke, poeta alemão, pediu emprestado um castelo para, isolado, ouvir melhor o que os querubins lhe diziam.
Victor Hugo foi para as ruas e barricadas ouvir a voz de seu tempo.
Rimbaud, de repente, calou-se para sempre.
Ficou mudo. Um zumbi perdido nos desertos africanos. Sem voz.
Quando Orfeu soava seus versos, as bestas mais ferozes se acalmavam e até as pedras o entendiam.
Como cada pássaro tem um canto especial, o poeta tem que descobrir qual a sua voz interior. Não se pode cantar com a voz do outro.
Claro que alguns, na literatura e na vida, começam imitando o canto alheio. É um aprendizado.
Camões ouvia Virgilio e Homero. João Cabral de Melo Nelo começou ouvindo Carlos Drummond.
Na música popular a mesma coisa: Dalva de Oliveira gerou Angela Maria. Mas João Gilberto não pode cantar como Orlando Silva ou Nelson Gonçalves. Ou vice-versa.
Cada qual no seu canto. Na sua voz.
E já que ouvir a voz interior é um risco, alguns a ouvem, e desesperam. Outros tapam os ouvidos. Enchem sua vida de ruídos espetaculares.
O músico (como o poeta) faz falar o espaço em branco. Faz falar o indizível. Pausa é música. Música é pausa no ruído cotidiano. Música é a salvação do ruído.
E como esse mundo ficou barulhento, meu Deus!
E se poesia é voz oculta sob a prosa, em certas épocas a voz do cantor e do poeta são perigosas.
Eles fazem falar o silêncio, o que foi calado, reprimido.
As ditaduras nos dão estranhas lições de poesia.
Repito: poesia exige um silêncio abismal.
Ler, escrever ou ouvir poesia é abismar-se.

Affonso Romano de Sant’Anna é poeta e escreveu este texto a propósito do projeto BR6 Convida, realizado no CCBB-Rio.

Fonte: O Globo, domingo, 12.8.2012.

GUIA

A poesia me salvará.
Falo constrangida, porque só Jesus
Cristo é o Salvador, conforme escreveu
um homem (sem coação alguma)
atrás de um crucifixo que trouxe de lembrança
de Congonhas do Campo.
No entanto, repito, a poesia me salvará.
Por ela entendo a paixão
que Ele teve por nós, morrendo na cruz.
Ela me salvará, porque o roxo
das flores debruçado na cerca
perdoa a moça do seu feio corpo.
Nela, a Virgem Maria e os santos consentem
no meu caminho apócrifo de entender a palavra
pelo seu reverso, captar a mensagem
pelo arauto, conforme sejam suas mãos e olhos.
Ela me salvará. Não falo aos quatro ventos,
porque temo os doutores, a excomunhão
e o escândalo dos fracos. A Deus não temo.
Que outra coisa é senão Sua Face atingida
da brutalidade das coisas?

PRADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986.


TESTAMENTO

O que não tenho e desejo
É o que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros – perdi-os...
Tive amores – esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me desde eu menino,
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

ARTE POÉTICA IV

(...)
Sei que o poema aparece, emerge e é escutado num equilíbrio especial da atenção, numa tensão especial da concentração. O meu esforço é para conseguir ouvir o "poema todo" e não apenas um fragmento. Para ouvir o "poema todo" é necessário que a atenção não se quebre ou atenue e que eu própria não intervenha. É preciso que eu deixe o poema dizer-se. Sei que quando o poema se quebra, como um fio no ar, o meu trabalho, a minha aplicação não conseguem continuá-lo.
Como, onde e por quem é feito esse poema que acontece, que aparece como já feito? A esse "como, onde e quem" os antigos chamavam Musa. É possível dar-lhe outros nomes e alguns lhe chamarão o subconsciente, um subconsciente acumulado, enrolado sobre si próprio como um filme que de repente, movido por qualquer estímulo, se projecta na consciência como num écran. Por mim, é-me difícil nomear aquilo que não distingo bem. É-me difícil, talvez impossível, distinguir se o poema é feito por mim, em zonas sonâmbulas de mim, ou se é feito em mim por aquilo que em mim se inscreve. Mas sei que o nascer do poema só é possível a partir daquela forma de ser, estar e viver que me torna sensível - como a película de um filme - ao ser e ao aparecer das coisas. E a partir de uma obstinada paixão por esse ser e aparecer.
Deixar que o poema se diga por si, sem intervenção minha (ou sem intervenção que eu veja), como quem segue um ditado (que ora é mais nítido, ora mais confuso), é a minha maneira de escrever.
(...)

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Poemas escolhidos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.


sábado, 18 de agosto de 2012

BARBARIDADE!



NO BRASEIRO
Pedro Luís

Mas tá um trem de doido
 'Êta' confusão
Parece natural andar na contramão.
Tão vendendo ingresso
Pra ver nego morrer no osso
Vou fechar a janela
Pra ver se não ouço
As mazelas dos outros.
Perdeu-se a moral
E reina a falta de vergonha
Mania nacional
É ver o outro se dar mal
O caso de polícia
 É corriqueiro, é todo dia
Felicidade é bom
Eu quero paz, justiça, alegria
Moramos no braseiro
A coisa aqui tá quente
O ano inteiro eu corro atrás

Não sei de que exatamente
Quero justiça, alegria e quero paz,
Mas com direitos iguais, como já disse Tosh
E quero mais que um milhão de amigos do RC
Como Luís e suas maravilhas do mundo quero comer
Quero me esconder debaixo da saia da minha amada
Como Martinho da Vila, em ancestral batucada
Eu quero é botar meu bloco na rua, qual Sampaio
Quero o sossego de Tim Maia, olhando um céu azul de maio
Eu quero é mel, como cantou Melodia
Quero enrolar-me em teus cabelos
Como disse Wando à moça um dia
Quero ficar no teu corpo, como Chico em Tatuagem
E quero morrer com os bambas de Ataulfo bem mais tarde
Só que bem mais tarde
(Eu quero ir pra ver Irene rir, como escreveu Veloso)
Ref.: "Braseiro", Roberta Sá, Universal, 2004.


BARBARIDADE!
Por Fábio Brito
Manhã de sábado, nove horas. Apesar de ter acordado tarde, decido ir à padaria. Em chegando lá, não há pão quentinho. Resolvo esperar a próxima fornada, que, segundo a vendedora, sairá em dez minutos (dez minutos de padeiro é tempo ‘pra’ caramba!). Geralmente, não espero. Agora, porém, decido esperar, mas prefiro ficar na calçada. Assim, posso assistir ao movimento da rua.
Imediatamente, uma cena chama minha atenção: em um banco, na mesma calçada, um garotinho, com bastante vontade, toma um iogurte. Acompanhado da mãe, que come um pastel daqueles bem "gordurentos", e de uma senhora que parece ser a avó, o garoto não tarda para atirar o recipiente vazio do iogurte na calçada. A mãe, ainda entretida com seu pastel, não mexe nem os cílios depois do gesto do garoto. A avó também não reage. O menino, bem serelepe, em segundos já está brincando com um verdureiro que estaciona seu carrinho ali por perto. Minutos depois, passa uma moça que, sem perceber, chuta o tal copo de iogurte. Imediatamente, o “porquinho” volta e também chuta o bendito copo, que, agora, veio parar perto de meus pés. Pego-o e jogo-o no lixo. Antes, porém, olho para o garotinho, que encolhe os ombros, morde a gola da camisa e olha fixamente para mim. Ele está envergonhado. Pois é, acho que ensinei algo a esse menino. Gostaria também de ter ensinado à mãe, mas ela, apesar de também ter visto meu gesto, não se mostrou interessada em qualquer aprendizado. Comer o pastelão era muito mais importante naquele momento. Que bárbara!, pensei. E o que não falta é bárbaro neste mundo de meu Deus. Basta olharmos para os lados.  
Segundo um dos verbetes da Grande Enciclopédia Larousse Cultural, o termo “bárbaro” vem do grego barbaros, através do lat. barbarus e significa: “1. Que não tem leis nem civilização: povo bárbaro. – 2. Contrário às regras ou ao uso; incorreto: termo bárbaro. – 3. Rude, grosseiro”. Não nos assustemos, mas, a todo o instante, tropeçamos em um bárbaro. Há muita gente por aí “barbarizando horrores”. É...! Barbarizar é um verbo que está na moda. Onde estão os bárbaros? Em todos os lugares... possíveis ou não. Os bárbaros são onipresentes. Tenho a impressão de que eles não nascem, mas vêm ao mundo por combustão espontânea, tamanha é a proliferação da espécie. Há bárbaros aos borbotões! Vamos a ambientes (ou a situações) em que se verifica a abundância dessa espécie? Preparemo-nos para o “passeio”!
Os “motoqueiros”, por exemplo, são bárbaros até o osso. Desculpem-me da generalização, mas, infelizmente, não há como não generalizar. Entre mil motoqueiros, um não segue o bando. Um, apenas um! O que mais vejo por aí são pessoas completamente alucinadas, que desconhecem palavras como “lei” e “respeito”, principalmente. Sempre digo que “motoqueiro” é como vampiro: não aparece em espelho. Inúmeras vezes, já passei por isto: dirigindo, olho pelos retrovisores e não vejo qualquer sinal de “moto”. De repente, algum motoqueiro faz uma ultrapassagem indevida (normalmente pela direita) ou posiciona-se abruptamente a meu lado em um semáforo (isso quando param no sinal).  Em segundos, sou uma ilha cercada de motos por todos os lados. Motoqueiro trafega por uma “terceira” via, uma pseudovia, uma via que não existe. Ou melhor: existe, sim, mas somente na cabeça desses malucos, que, ensandecidos, saem fazendo “bordados” entre carros e pessoas. Qual o resultado disso tudo? Um número elevadíssimo de mortes. Não vou, aqui, ficar transcrevendo dados estatísticos. Nem é preciso! O pior é constatar a tristeza de muitas famílias que perdem seus entes queridos – jovens, em sua maioria – em acidentes envolvendo motos.
E as barbaridades abundam. Vamos a mais exemplos? Um muito interessante é o alto-falante disfarçado de carro. Dia desses, li um adesivo que ocupava todo o vidro traseiro de um carro que dizia mais ou menos que o infeliz prefere perder a audição a diminuir o volume. Meu Deus! Ou estou maluco, ou não consigo entender por pura limitação! Em minha rua, por exemplo, quando passa um “carro” assim, todas as janelas – que são de vidro – tremem por causa dos decibéis. Fico imaginando como está a audição da pessoa (ou das pessoas) que viaja nesse carro. Não há mais tímpanos, claro! Está aí um dano irreversível à audição. Pergunto: para quê? Psicólogos devem explicar o porquê desse exibicionismo, dessa necessidade de chamar a atenção. Tempos de gente fútil!
Bárbaro também é o povo que, durante as vinte e quatro horas do dia, vive conectado ao “face” ou não larga o celular. Sobre o “face”, tenho uma leve desconfiança de que há muita gente por aí que não faz mais nada na vida além de ficar conectado. Muitos comentários que leio são tão bobos e tão sem graça, que fico “sem palavras”. Passo "batido. É muita falta de algo mais interessante para fazer. Raras são as pessoas que não postam bobagens. Pudera! Se a criatura fica nesse “trem” de “facebook” o dia todo, que tempo ela terá para ler e aumentar seu capital intelectual? Nenhum, claro! Que pena! Como já disseram, esse “treco” é a cracolândia virtual. Que tal uma desintoxicação? Sempre há tempo. Antes de qualquer reação, vou logo dizendo que também gosto do “facebook”, mas sei dosar o tempo que dispenso a isso. Graças a Deus, sou de uma geração que não nasceu com essa ferramenta, embora eu veja algumas pessoas também “entradinhas nos anos” e completamente viciadas.
O mau uso do “celular” é outro assunto que me cansa deveras. Já perdi a conta dos textos que escrevi ou dos comentários que já fiz sobre esse assunto. É muita barbaridade! Meu Deus, que vício é esse? Por que tanto deslumbre com a tecnologia? Taí uma questão séria e que ainda merece muitas discussões: as pessoas estão deslumbradas com a tecnologia. Esses deslumbrados já foram chamados de “matusquelas digitais”. Gostei do apelido. Tenho reparado – e já faz um tempinho – o seguinte: entre dez pessoas que encontro pelas ruas (ou fora “delas”), nove estão falando ao celular. Falando o quê? Bobagens e mais bobagens, é óbvio! Por causa desse aparelhinho, esquecem quaisquer regras de boa educação. Nem tenho mais paciência para listar as barbaridades que decorrem do mau uso desse bendito (ou maldito) aparelho. Todas as pessoas, praticamente, têm um celular, mas pouquíssimas têm educação para usá-lo. Ah! Eu já ia esquecendo: muitos têm o tal aparelho, mas poucos têm despesas com ele. Por quê? Porque vivem ligando a cobrar ou tentam ver se um antigo truque – que é mais velho que andar para a frente – ainda cola: ligam e, imediatamente, interrompem a ligação na esperança de que a outra pessoa “retorne". Se a estratégia der certo, o espertinho, que nunca “tem crédito”, não vai pagar a ligação. É muita cara de pau, não é?! Se quem está precisando de algo é a pessoa que ligou, nada mais justo que ela banque a despesa da ligação. É, parece-me que o mundo celular é pré-pago. Que pobreza!
Trânsito também é outro “mundo” em que proliferam barbaridades. De uns anos para cá, estou ficando irritadíssimo com a falta de "tudo" da maioria dos motoristas (e dos pedestres também). Por causa dessa irritação, a gastrite não me abandona. As ruas – e não só das grandes cidades – viraram terra de ninguém. Os "motoristas" fazem o que querem: dirigem enquanto falam ao celular; pensam que são os únicos na rua; têm uma pressa que nunca cessa... Ih! Exemplos não faltam!
Para mim, fica o seguinte: atrás de toda e qualquer situação em que as barbaridades imperam, mora a falta de educação e pronto!  
 
PROSA PRIMITIVA
O mundo está cheio de nós.
Não pertencemos ao reino.
O mundo quer ser invisível.
A flor, enjoada de nosso lirismo até a raiz, pretende consumir no silêncio o nome que lhe demos.
A integridade do mineral reage à nossa forma em desintegração.
A alma compacta do animal se incompatibiliza com as numerosas almas transitórias de cada homem, fluidas ou pegajosas, insinuantes ou bloqueadas de súbito, mas interminavelmente excêntricas.
O mundo está cheio de nós. Vê-se à luz do sistema solar o ridículo de nosso tempo; o curto compasso de nossos metrônomos.
Quando a moabita apanhava espigas de milho no campo de Booz, as constelações viram o fulgor do atol de Bikini.
Hesíodo começou a frase cujo final se cristaliza agora no inconsciente do menino poeta.
A primeira roda mal se encaixou na engrenagem do computador.
A pressa da nossa morte envergonha o universo; quem mede o que não existe será triturado desde a idade da razão.
O mundo está cheio da nossa razão.
A vida é o que existe e não é razoável.
Só o homem é indefensavelmente razoável na atonalidade extraordinária de tudo.
Separamos o orgânico do inorgânico.
O morto do vivo.
O quadrado do círculo.
O bom do mau.
O feio do bonito.
O alegre do triste.
O de dentro do de fora.
O mundo está cheio de nossa alegria e de nossa tristeza.
Estamos amputados do contexto, medindo, denominando, classificando.
O universo, que antes nos hospedou com indiferença, passou ao desprezo e talvez ainda chegue à repugnância final.
Nossas lágrimas não fecundam; o hálito de nosso riso não vivifica; talvez o nosso cadáver interesse ao cosmo, nada mais.
O cosmo está cheio de nós.
Pelo menos, por força de nossa incompetência, conseguimos ficar indesejáveis.
Os ratos nos espreitam com desconfiança. O gênio do homem nasce do terror.
O mar talvez tente expulsar-nos da praia; o propósito do sol é extinguir-nos; um dia, não suportando mais o vento, entraremos em processo de erosão.
O boi e o cavalo estão cheio de nós, o que lhes resta de nobreza.
Humaniza-se o porco em nossa intimidade e engorda.
O pássaro tudo faz para tornar-se invisível na gaiola.
A noite quer apagar nossos fachos; o dia quer redimir nossas galerias.
O cipreste hostiliza nosso rito funerário.
Na sala de Conselho de Ministros o arbusto está ausente.
A árvore jamais nos tomaria por símbolo de nada.
A ciência parte sempre da árvore abstrata. Só o louco deseja ser uma árvore.
Os melhores entre nós estão mortos ou vão morrer cedo.
Os piores ocupam com fervor o púlpito, a tribuna, a cátedra.
Somos os aflitos, os neuróticos, os enfermiços, os aduncos, os reenchidos de nós mesmos.
A presunção, casca de nossa ferida, coça sem parar.
Somos os chatos da Via-Láctea.
E a Via-Láctea está cheia de nós.
Ah, como são humanamente áridos os nossos símbolos! Como fabricamos dia a dia a humilhação e a violência do nosso exílio.
Como é agônico e mendigo nosso amor! Dividimos, para reinar, as cores do espectro, as forças da matéria, a unidade da vida: somos a aristocracia do imaginário e da moral.
O mundo está cheio da nossa moral infectada.
Quem estiver satisfeito com a nossa moral atire beijos aos legisladores.
Os gatos se contagiam de nós - e não prestam.
Os cães se acovardam ou se fazem brutais - e não prestam.
As feras sentem asco de nossos olhos quadriculados.
O mundo quer ficar sozinho de nós.
As moscas nos preferem depois do óbito.
Construímos um altar; dos restos do altar fizemos um castelo; com as pedras do castelo estruturamos a fábrica; dos despojos da fábrica talvez façamos outro altar.
Ao Supremo Tecnocrata.
Nossa cultura é uma empreitada de demolições. Mas somos pobres e utilizamos o material arruinado.
O mundo aspira a uma desumanização integral de vales e montanhas e mares e ilhas e rios.
Sem os homens, o mato caritativo cobrirá os nossos nomes.
O ar está cheio de nós.
O fogo está cheio de nós.
O chão está cheio de nós.
Não demos certo.
Inventamos a missão absurda.
O mundo está cheio de mim.
Talvez ainda me sobre, última complacência, colhida na concha trêmula da mão, um gole de água.
CAMPOS, Paulo Mendes. O amor acaba: crônicas líricas e existenciais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
 
Nosso Tempo
A Osvaldo Alves
I
Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.
 II
Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.

Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.

Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.

A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
e pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.
 III
E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?

Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiados urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da
costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes...
E muitos de vós nunca se abriram.
 IV
É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.

É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.

No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.
V
Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.

Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.

Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.
Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor,
confiar-se ao que bem me importa
do sono.

Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiúra,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.
 VI
Nos porões da família
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.
VII
Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco ? no público ? nas poltronas ?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.
VIII
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
prometa ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Literatura comentada. 2. ed. São Paulo: Nova  Cultural, 1988.