quinta-feira, 2 de agosto de 2012

DIVA



DIVA
Por Fábio Brito

Música é a arte em que forma e matéria fazem um todo. É a arte cujo tema não pode ser separado do método pelo qual se expressa. É a arte que mais completamente realiza o ideal artístico – condição que todas as outras artes estão constantemente pretendendo.
Oscar Wilde – “A dedicatória” (1882) – alusão ao que Walter Pater diz em seu ensaio “A escola de Giorgione: “Toda arte almeja constantemente elevar-se à condição de música”. (1877)

“Aprendi com Hermeto Pascoal, com quem eu tive a honra de atuar em ‘shows’ e gravações, que a música é universal. Sigo esta crença com absoluta fé e devoção.” Taí um depoimento de Ithamara Koorax por ocasião do espetáculo “Dolores Duran por Ithamara Koorax”. E foi a essa universalidade que, mais uma vez, tive o imenso prazer de assistir: dia 28 de julho, no bar do hotel Sofitel (RJ), a diva Ithamara apresentou seu 68 “show”, incluindo as apresentações aqui no Brasil e na Europa.
No roteiro, só preciosidades (algumas já se tornaram ‘cavalos de batalha’ de nossa diva): Minha saudade; Bim, Bom; Hô-bá-lá-lá; Go to be real; Up, up and away; Aos pés da cruz; Fotografia; Meditação; Corcovado; Sandália dela; Setembro; Pra machucar meu coração; Zum-Zum; O negócio é amar; Por causa de você; Estrada do sol... Algumas, como O negócio é amar, Zum-Zum e Pra machucar meu coração, merecem comentários à parte. No caso da primeira, não posso deixar de dizer que ela arrancou excelentes comentários de um casal que, embevecido, assistia ao ‘show’: “Essa letra é ótima” e “A interpretação é maravilhosa”! Aliás, esse casal – já na terceira idade e extremamente antenado – interagiu o tempo todo, tanto que os dois chegaram a tecer comentários ao mesmo tempo em que Ithamara cantava.
 Zum-Zum, sucesso de Dalva de Oliveira no carnaval de 1951, foi um momento comovente. Composta por Paulo Soledade e Fernando Lobo em homenagem a Carlos Eduardo de Oliveira - carnavalesco e comandante da Panair que falecera no ano anterior em um acidente de avião – a canção registrou, desta vez, na voz de Ithamara, a ausência de José Roberto Bertrami, integrante do grupo Azymuth e um talento ímpar com quem ela trabalhou durante um longo tempo. Deu para sentir a voz embargada de nossa diva no momento de interpretar essa canção. Pois é, agora, o bloco saiu sem o Bertrami. Só não sei se foi a ordem que ele deu...
E por falar em ausência, não posso esquecer nossa eterna Elizeth Cardoso, madrinha musical de Ithamara e uma das cantoras mais importantes e amadas da MPB de todos os tempos. Pra machucar meu coração (Ary Barroso), do repertório da “divina”, é outra canção que Ithamara sempre interpreta com o coração na garganta. Ao fim do ‘show’, ela confessou-me o seguinte: “Essa música é dela (da Elizeth)”. E o que dizer de “Por causa de você”? Em parceria com Tom Jobim, essa maravilha é uma das canções mais conhecidas – e mais bonitas - de Dolores Duran. Novamente, Ithamara interpretou-a em português e em inglês (“Don’t ever go away”) e com toda a emoção a que teve direito. Vale registrar que essa canção também foi gravada por Frank Sinatra (no álbum que ele dividiu com Tom Jobim). Taí: nossa boa música é muito respeitada e admirada lá fora, o que nos enche de orgulho e prazer.
Se o assunto é respeito internacional, em 2010, Ithamara lançou “O grande amor”, álbum mais do que aclamado pela crítica do mundo todo, em especial a dos Estados Unidos. Só para ‘se’ ter uma ideia da importância desse CD, em sua edição de maio de 2011, a revista “Downbeat”, a bíblia do jazz, como todos afirmam, atribuiu quatro estrelas e meia ao álbum. Curiosamente, fui conferir as estrelas atribuídas aos demais CDs comentados pela revista: apenas “O grande amor” teve tantas. Alguns receberam quatro, e a maioria ficou mesmo com três. Ithamara é, sem dúvida, nossa melhor e mais importante cantora. Provas disso há aos borbotões.
Talvez seja até “chover no molhado” discorrer sobre os atributos de Ithamara. Mesmo assim, não custa nada lembrar sua extensão vocal extraordinária e seu timbre belíssimo, além, é claro, de sua afinação perfeita. E vamos a mais elogios! Em matéria de Daniela Canedo – “Nossa diva do jazz” – publicada na antiga revista “Domingo” (do Jornal do Brasil), de 22 de dezembro de 2002, por ocasião do lançamento do álbum “Someday – the ballad álbum”, eis o que nos diz Mario Castro-Neves, autor da faixa-título: “Ela tem uma enorme extensão vocal, o que é raro. Isso sem contar a interpretação e a beleza cristalina da voz, que são únicas”. Preciso dizer mais o quê? Que amo Ithamara e que a ouço todos os dias, religiosamente... 
ESTADO DE GRAÇA
Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte.
O estado de graça de que falo é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Neste estado, além da tranquila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é tão, tão leve. É uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não perguntem o quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se.
E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente.
No estado de graça vê-se às vezes a profunda beleza, antes inatingível, de outra pessoa. Tudo, aliás, ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação quase matemática das coisas e das pessoas. Passa-se a sentir que tudo o que existe (pessoa ou coisa) respira e exala uma espécie de finíssimo resplendor de energia. A verdade do mundo é impalpável.
Não é nem de longe o que mal imagino deva ser o estado de graça dos santos. Esse estado jamais conheci e nem sequer consigo adivinhá-lo. É apenas o estado de graça de uma pessoa comum que de súbito se torna totalmente real porque é comum e humana e reconhecível.
As descobertas nesse estado são indizíveis e incomunicáveis. É por isso que, em estado de graça, mantenho-me sentada, quieta, silenciosa. É como uma anunciação. Não sendo porém precedida pelos anjos que, suponho, antecedem o estado de graça dos santos, é como se o anjo da vida viesse me anunciar o mundo.
Depois, lentamente, se sai. Não como se estivesse estado em transe - não há nenhum transe -, sai-se devagar, com um suspiro de quem teve o mundo como este é. Também já é um suspiro de saudade. Pois tendo experimentado ganhar um corpo e uma alma e a terra, quer-se mais e mais. Inútil querer: só vem quando quer e espontaneamente.
Não sei por quê, mas acho que os animais entram com mais frequência na graça de existir do que os humanos. Só que eles não sabem, e os humanos percebem. Os humanos têm obstáculos que não dificultam a vida dos animais, como raciocínio, lógica, compreensão. Enquanto que os animais têm a esplendidez daquilo que é direto e se dirige direto.
Deus sabe o que faz: acho que está certo o estado de graça não nos ser dado frequentemente. Se fosse, talvez passássemos definitivamente para o outro lado da vida, que também é real mas ninguém nos entenderia jamais. Perderíamos a linguagem em comum.
Também é bom que não venha tantas vezes quanto se queria. Porque eu poderia me habituar à felicidade - esqueci de dizer que e estado de graça se é muito feliz. Habituar-se à felicidade seria um perigo. Ficaríamos mais egoístas, porque as pessoas felizes o são, menos sensíveis à dor humana, não sentiríamos a necessidade de procurar ajudar os que precisam - tudo por termos na graça a compensação e o resumo da vida.
Não, mesmo se dependesse de mim, eu não quereria ter com muita frequência o estado de graça. Seria como cair num vício, iria me atrair como um vício, eu me tornaria contemplativa como os fumadores de ópio. E se aparecesse mais a miúdo, tenho certeza de que eu abusaria: passaria a querer viver permanentemente em graça. E isto representaria uma fuga imperdoável ao destino simplesmente humano, que é feito de luta e sofrimento e perplexidades e alegria menores.
Também é bom que o estado de graça demore pouco. Se durasse muito, bem sei, eu que conheço minhas ambições quase infantis, eu terminaria tentando entrar nos mistérios da Natureza. No que eu tentasse, aliás, tenho a certeza de que a graça desapareceria. Pois ela é dádiva e, se nada exige, desvaneceria se passássemos a exigir dela uma resposta. É preciso não esquecer que o estado de graça é apenas uma pequena abertura para uma terra que é uma espécie de calmo paraíso, mas não é a entrada nele, nem dá o direito de se comer frutos de seus pomares.
Sai-se do estado de graça com o rosto liso, os olhos abertos e pensativos e, embora não se tenha sorrido, é como se o corpo todo viesse de um sorriso suave. E sai-se melhor criatura do que se entrou. Experimentou-se alguma coisa que parece redimir a condição humana, embora ao mesmo tempo fiquem acentuados os estreitos limites dessa condição. É exatamente porque depois da graça a condição humana se revela na sua pobreza implorante, aprende-se a amar mais, a perdoar mais, a esperar mais. Passa-se a ter uma espécie de confiança no sofrimento e em seus caminhos tantas vezes intoleráveis.
Há dias que são tão áridos e desérticos que eu daria anos de minha vida em troca de uns minutos de graça.
 LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.


2 comentários:

  1. Depois que ouvimos Ithamara Koorax ao vivo e em cores. fica difícil ouvir qualquer outra voz cantando.

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    1. Fê, feito Elis, Elizeth, Clara, Áurea, Nana, Dalva, Bethânia, a Ithamara "recebe Deus quando canta", não recebe? Um beijo e obrigado pela visita.

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