sábado, 3 de outubro de 2015

REQUINTE, NOBREZA E TRANSGRESSÃO




ONDE ESTÁ VOCÊ
Oscar Castro Neves / Luvercy Fiorini

Onde está você
Se o sol morrendo te escondeu
Onde ouvir você
Se a tua voz a chuva apagou
Onde ir buscar
Se o coração
Bater de amor pra ver você
Hoje a noite não tem luar
E não sei onde te encontrar
Pra dizer como é o amor
Que eu tenho pra te dar
Passa a noite tão devagar
Madrugada é silêncio e paz
E a manhã que já vai chegar
Onde te despertar
Vem depressa de onde estás
Já é tempo do sol raiar
Meu amor que é tanto
Não pode mais esperar




REQUINTE, NOBREZA E TRANSGRESSÃO
Por Fábio Brito
Há uns dias, ouvindo os dois discos que Alaíde Costa gravou com o pianista João Carlos Assis Brasil, “Alaíde Costa & João Carlos Assis Brasil”, gravado em 1995 (“Movieplay”), e “Alaíde Costa & João Carlos Assis Brasil: voz e piano”, de 2006 (“Lua Music”), pensei numa dívida que tenho com essa cantora/intérprete que figura entre minhas preferidas há um bom tempo: por que não escrever mais sobre ela e dizer o quanto a admiro? É bem verdade que, entre vários pequenos textos sobre cantoras transgressoras da MPB que escrevi em 2011, há um sobre Alaíde, uma das mais autênticas transgressoras de nossa Música (faço questão da inicial maiúscula), se não a mais.
Só o fato de afirmar que não é, e nunca foi, de modismos (e de movimentos) já é uma senhora transgressão. Desde o início de sua carreira, afastou-se do que era “passageiro” e construiu seu estilo, sua personalidade, que são únicos (impossível ouvir Alaíde e confundi-la com outra cantora). Conta-se que, desde muito cedo, criança ainda, ela já demonstrava ter preferência por músicas mais refinadas. Em casa, ouvia-se muito rádio, mas ela não gostava do que era executado. Preferia canções mais elaboradas. Ou seja, o refinamento já estava “no sangue”, como dizem, ou, talvez, em “outras vidas”, como ela chegou a dizer.  
Nem mesmo a certas amarras da Bossa Nova é possível prendê-la (essa história de grilhões não é com Alaíde Costa). Quando esse movimento ainda estava nos “cueiros”, Alaíde ajudou a consolidá-lo; depois, em vários momentos, deixaram-na de lado. Sem problemas. Diferentemente de outros intérpretes que, há cinquenta e tantos anos, só vivem de “abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim”, Alaíde seguiu buscando outros horizontes, bem mais amplos por sinal. Sem aposentá-lo, deixou o banquinho no canto da sala e foi conquistar outros mares... muitos “nunca dantes navegados".
Fica muito claro para todos nós que Alaíde nunca gravou “para fazer sucesso”. Seu requinte, sua nobreza e sua sofisticação levaram-na a escolher, desde o início de sua carreira, canções consideradas difíceis por muita gente. Diziam, e ainda dizem, que ela “escolhe” muito seu repertório. E escolhe mesmo! Não há dúvidas quanto a isso. Seu crivo é exigente ao extremo. Poucos intérpretes têm um gosto tão apurado quanto o seu. E qual o problema em ser uma caçadora de esmeraldas, uma pescadora de pérolas? Por mais que um compositor que ela queira gravar tenha standards, ela vai sempre ao lado B (quem é do “tempo do vinil” sabe o que estou dizendo) e resgata preciosidades que, infelizmente, não chegam às rádios e acabam ficando esquecidas em algum vinil empoeirado do arquivo de algum colecionador. É muito fácil regravar canções que fizeram enorme sucesso. Entretanto, não é isso que Alaíde busca até hoje. “Lugar comum” não é com essa diva que encantou Oscar Peterson: ao vê-la cantar numa boate de São Paulo, esse extraordinário músico de jazz pediu para acompanhá-la em Insensatez (Tom Jobim / Vinicius de Moraes). Ao fim da apresentação, ele disse que ela era dona de uma afinação perfeita e que cantava como Sarah Vaughan. Que elogio!
Alaíde é uma intérprete nata e com um talento fora do comum, ao contrário de muitos por aí que, sem qualquer talento para a música, compram, além do espaço na mídia, a fôrma em que são fabricados. Depois, é fácil o caminho a ser seguido: tocam em todas as rádios, “moram” em programas de TV de qualidade duvidosa e têm “shows” agendados até o fim da vida. Resultado: sucesso, dinheiro e fama. O prestígio é zero, claro!, mas não estão nem aí. Todos sabem que eles são uma farsa, uma enganação, um blefe, mas o dinheiro não parando de chegar é o que importa. Porque não sabem cantar, recorrem, nos estúdios e até fora deles, a mecanismos que os fazem cantar (?). Até mesmo com os tais mecanismos, ainda há os que não conseguem emitir “uma” nota com afinação. O resultado é que saem por aí soltando gritos e balidos quando pensam que cantam.
Hoje, ao que parece, ninguém quer saber de talento, inclusive o público. Vê-se, assim, que não é exigido muito esforço para que certas criaturas vençam “na vida” artística, em especial na música. Portas se abrem constantemente e tapetes vermelhos são estendidos com frequência. Ao contrário dessas pessoas “privilegiadas”, cantores/intérpretes como Alaíde, que escolheram a integridade e o respeito à arte, pagam um preço muito alto por suas escolhas. As dificuldades por que passam são tantas, que muitos até desistem da carreira ou aposentam-se mais cedo, mas não se vendem. Bravos guerreiros!
Fazer valer o próprio gosto quando este paira bem acima da média exige um esforço quase sobre-humano do artista. Alaíde, por exemplo, chegou a bancar um de seus discos, o Joia Moderna, porque a gravadora, que apenas cedeu o estúdio, não queria fazer o disco como ela havia imaginado. E isso foi no início da década de 60! Dá para imaginar como deve ser hoje? Fácil: as gravadoras, com seus esquemas pouco ortodoxos, determinam exatamente tudo, ditam todas as regras. O que importa é vender. O artista, nessa história, é apenas um detalhe. Poucos são os heróis, como Alaíde, que não sucumbem. Não sucumbindo, só produzem obras de arte, como os dois discos gravados por ela junto com João Carlos Assis Brasil citados no início deste texto (vale dizer que todos os discos de Alaíde são obras de arte).
O primeiro, “Alaíde Costa & João Carlos Assis Brasil”, em cuja capa há duas pérolas, uma branca e uma negra, deve figurar, obrigatoriamente, em qualquer discoteca que se preze, que prime pela nobreza. Nele, só há canções deslumbrantes, cuja qualidade pode ser atestada por qualquer crítico do mundo todo. Entre essas canções, figura Sem você, que, mesmo não sendo uma das mais conhecidas da parceria Tom/Vinicius, é uma das mais belas canções que a dupla já produziu: [“Sem você/ Sem amor / É tudo sofrimento / Pois você / É o amor / Que eu sempre procurei em vão / Você é o que resiste / Ao desespero e à solidão (...)”]. De Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini, que, assim como Jobim e Vinicius, são compositores altamente requintados, Alaíde incluiu Morrer de amor [O amor deve ser a pergunta / que não se faz (...)] e uma das mais belas e pungentes canções de todos os tempos, Onde está você, perfeita na voz de nossa diva: “[Onde está você / Se o sol morrendo te escondeu / Onde ouvir você / Se a tua voz a chuva apagou / Onde ir buscar / Se o coração / Bater de amor pra ver você (...)”]. Outra que merece loas e mais loas é a 1ª ária (cantilena) das Bachianas Brasileiras nº 5, com texto de Ruth Valadares Correa. Em tal canção, que integra o repertório de dez entre dez cantoras líricas, Alaíde Costa, uma cantora popular, está simplesmente divina. É tanta perfeição, é tanta delicadeza, que, quando a ouvimos, prendemos a respiração, ficamos paralisados e comprovamos o que disse Hermínio Bello de Carvalho no texto do encarte que acompanha o CD: “(...) O que me fascina em Alaíde é que, além de uma grande cantora, ela é uma intérprete de extrema visceralidade (...)”. Aí, nessa faixa (e nas demais também), a técnica, apuradíssima, está a serviço do coração, órgão com o qual Alaíde adentra o universo vila-lobiano numa entrega total e apaixonante. Como conter as lágrimas ao ouvir tanta beleza? Impossível! Choro um rio sempre que a ouço.
E o desfile de pérolas não para por aí: Azulão (Jaime Ovalle / Manuel Bandeira), Estrada do sertão (João Pernambuco / Hermínio Bello de Carvalho), Come again (John Dolland / Versão: José Péricles da Silva Ramos), Modinha (Tom / Vinicius), Faca (Fátima Guedes), Sertaneja (Ernesto Nazareth / Catulo da Paixão Cearense), Te quiero (Alberto Favero / Mario Benedetti) e Primavera (Carlos Lyra / Vinicius) completam o repertório. Pergunto: por acaso, alguma pessoa, em sã consciência, ousa encontrar algum defeito num repertório assim? E o piano de Assis Brasil? Recorrendo novamente ao que disse Hermínio, esse moço, de rara sensibilidade, não faz “seu piano duelar, mas compactuar com o artista que divide com ele seu espaço”. Ambos, Alaíde e Assis Brasil, estão sublimes.
No “Voz & piano”, que Alaíde e Assis Brasil gravaram em 2006, a epifania se repete: intérpretes extraordinários e repertório impecável são  a chave para mais uma obra de valor inquestionável. Entre as iguarias, encontramos Amargura, de Radamés Gnattali e Alberto Ribeiro, uma sofisticada canção também gravada por Nana Caymmi, outra intérprete a quem os deuses permitiram cantar com a alma: “[Toda amargura que há no céu / Que há na terra e no mar / Nasceu talvez da tristeza / Que tens no olhar / No céu há um sol a brilhar / Que beija a terra e o mar / Só tu continuas assim / Dia e noite a chorar (...)”]. Pois é, que junta Jobim e Buarque, é uma de minhas canções preferidas tanto do Chico quanto do Tom. Tão bela quanto as gravações de Elis (“Elis & Tom”, 1974) e Gal (“Água viva”, 1978) é a de Alaíde, que, mais uma vez, leva-nos às lágrimas: “[Pois é / Fica o dito e o redito por não dito / E é difícil dizer que ainda é (que foi) bonito / Cantar o que me restou de ti (é inútil cantar o que perdi) / Daí (Taí) / Nosso mais-que-perfeito está desfeito / E o que me parecia tão direito / Caiu desse jeito sem perdão (...)]”. Quem já perdeu um amor sabe o quanto é doída essa canção. Com Alaíde Costa, então, a dor é dilacerante. Bom-dia, de Herivelto Martins e Aldo Cabral, é um clássico do repertório de Dalva de Oliveira: “[Amanheceu / Que surpresa me reservava a tristeza / Nessa manhã muito fria (...)]”. À semelhança de Dalva, Alaíde imprime à canção a dramaticidade e a emoção que ela requer. E por falar em Dalva, é a própria Alaíde quem diz que nosso “Rouxinol” foi sua “escola” no quesito “emocionar”, mesmo sabendo que emoção não se aprende e que as duas são completamente diferentes quanto ao estilo.
Outra de nossas incontestáveis divas é Elis Regina, de cujo repertório Alaíde garimpou Essa mulher, que dá nome ao disco que a “Pimentinha” gravou em 79 e é o preferido de Alaíde. De Joyce e Ana Terra, essa canção é excepcional. Assim como Elis, Alaíde foi ao ápice da emoção: “De manhã cedo, essa senhora se conforma / Bota a mesa, tira o pó, lava a roupa, seca os olhos / Ah, como essa santa não se esquece de pedir pelas mulheres / pelos filhos, pelo pão (...)]”. E mais obras-primas integram o “Voz & Piano”: Estrada branca (Tom / Vinicius), Teus ciúmes (Lacy Martins / Aldo Cabral), Quando tu passas por mim (Vinicius / Antônio Maria), Nunca (Lupicínio Rodrigues), Ocultei (Ary Barroso), Nova Ilusão (José Menezes / Luiz Bittencourt), Janelas abertas (Jobim / Vinicius) e a instrumental Noturno (Radamés Gnattali).
Ao falar em Alaíde Costa, lembrei-me de que Zé Pedro, DJ e dono da gravadora Joia Moderna, disse, em seu livro Meus discos e nada mais: memórias de um DJ na música brasileira, que ela o faz chorar. Também choro, Zé Pedro, quando ouço essa dama da canção. Choro bastante quando ouço essa intérprete rara chamada Alaíde Costa, um clássico da MPB mais nobre e requintada.  

 ESTRADA BRANCA
 Tom Jobim / Vinicius de Moraes
 Estrada branca /  Lua branca / Noite alta / Tua falta caminhando / Caminhando / Caminhando / Ao lado meu / Uma saudade / Uma vontade / Tão doída / De uma vida / Vida que morreu / Estrada passarada / Noite clara / Meu caminho é tão sozinho / Tão sozinho / A percorrer / Que mesmo andando / Para a frente / Olhando a lua tristemente / Quanto mais ando / Mais estou perto / De você // Se em vez de noite / Fosse dia / Se o sol brilhasse / E a poesia / Em vez de triste / Fosse alegre / De partir / Se em vez de eu ver / Só minha sombra / Nessa estrada / Eu visse ao longo / Dessa estrada / Uma outra sombra / A me seguir // Mas a verdade / É que a cidade / Ficou longe, ficou longe / Na cidade / Se deixou meu bem-querer / Eu vou sozinho sem carinho / Vou caminhando meu caminho / Vou caminhando com vontade de morrer



NUNCA
Lupicínio Rodrigues
Nunca / Nem que o mundo caia sobre mim / Nem se Deus mandar / Nem mesmo assim / As pazes contigo eu farei / Nunca / Quando a gente perde a ilusão / Deve sepultar o coração / Como eu sepultei / Saudade / Diga a esse(a) moço(a) por favor / Como foi sincero o meu amor / Quanto eu o(a) adorei tempos atrás / Saudade / Não esqueça também de dizer / Que é você quem me faz adormecer / Pra que eu viva em paz

PRIMAVERA
Carlos Lyra / Vinicius de Moraes
O meu amor sozinho / É assim como um jardim sem flor / Só queria poder ir dizer a ela / Como é triste se sentir saudade // É que eu gosto tanto dela / Que é capaz dela gostar de mim / E acontece que eu estou mais longe dela / Que da estrela a reluzir na tarde // Estrela, eu lhe diria / Desce à terra, o amor existe / E a poesia só espera ver / Nascer a primavera / Para não morrer  // Não há amor sozinho / É juntinho que ele fica bom / Eu queria dar-lhe todo o meu carinho / Eu queria ter felicidade // É que o meu amor é tanto / Um encanto que não tem mais fim / E no entanto ela não sabe que isso existe / É tão triste se sentir saudade // Amor,eu lhe direi / Amor que eu tanto procurei / Ah, quem me dera eu pudesse ser / A tua primavera / E depois morrer

FACA
Fátima Guedes
O seu nome é uma faca / me dilacerando / O segredo é uma faca / de dois gumes / Morro de paixão / morro de ciúmes / Você vive na estrela / incomunicável / Você fala comigo e nem me vê / Preciso olhar o céu / Pra compreender você / O seu nome é uma faca / lâmina afiada / enterrada em meu peito até o fim / É melhor morrer de uma vez / Eu já estou jogada a seus pés / Tenha dó de mim

SERTANEJA
Ernesto Nazareth / Catulo da Paixão Cearense
Sestrosa, dengosa / derriçosa, odorosa flor / Maldosa, formosa, / Sertaneja, meu lindo amor / Anjinho, benzinho / meu carinho, meu beija-flor / Condena, sem pena / que minha alma / te adora o rigor / Quando tu passas / na orla do monte / caminho da fonte / da tarde ao morrer / Meu pranto rola / por sobre a viola / que a noite consola / no seu gemer / Provocante, radiante / fascinante, ondulante / num teu fado ritmado / tu nos fazes até chorar / Logo a gente, a gente sente / uns desejos dos teus beijos / que até nos fazem delirar / Ingrata, ingrata / volve a mim o teu doce olhar / Teu riso me mata, / me maltrata, me faz banzar / Desata, desata / esse olhar do meu coração / Ingrata, ingrata / suspirosa irerê do sertão / Também se passas / formosa e tirana / por minha choupana / da tarde ao cair / vou te seguindo / na estrada arenosa / qual rola saudosa / a carpir, a carpir / Na dança deslizas / e assim pisa mil corações / Teu peito é o leito / doce leito das tentações / Teus olhos, teus olhos, / os queixumes das nossas paixões