quinta-feira, 20 de agosto de 2020

DIVINA É DIVINA



BACHIANAS BRASILEIRAS Nº 5

Heitor Villa-Lobos e David Nasser 

Vai, por esse céu vazio de esperança 
Vai minh'alma regressar
Este chão de todos nós
Para os meus, ao meu lugar
A minha voz, as preces
Quando alguém me escutar
Vai lembrar, vai lembrar

Ai, a eternidade
Que deixei quando parti
Dando tudo pra não ir
Ai, este meu grito
O infinito
Ai, tudo perdido
Ai, a esperança



DIVINA É DIVINA E PONTO
Por Fábio Brito 

E quem me vê no palco tão serena / Tão segura e poderosa / Radiante de emoções / Não pode adivinhar o meu trabalho / Faxineira das canções (...) 
[Joyce]

Recentemente, dia 16 de julho, comemorou-se o centenário de nascimento da "Divina" Elizeth Cardoso, cantora/intérprete que merece todas as honrarias, principalmente num país desmemoriado como o nosso.
Conta-se que, desde pequena, Elizeth e a família costumavam ir a reuniões na casa da lendária Tia Ciata, o que comprova que a verve musical já estava aí, na menina. Tempos depois, numa festa em que estavam presentes, entre outros, Pixinguinha, Dilermando Reis e Jacob do Bandolim, este, depois de ouvi-la cantar, convidou-a para um teste na Rádio Guanabara, onde a jovem Elizeth - muito emocionada - deparou com um de seus ídolos: Vicente Celestino. Nem é necessário dizer que esse teste foi o trampolim para a bela, digna e extremamente coerente carreira da "Divina". 
Entre as cantoras de sua geração, não há dúvidas de que Elizeth brilhou mais alto: além de seu repertório ser a síntese do que havia de melhor em seu tempo e antes dele, a voz - de contrato, quase mezzo soprano - era melodiosa ao extremo e carregava uma sensualidade ímpar. Tais qualidades, aliadas a uma técnica apuradíssima, faziam da "Divina" uma cantora/intérprete excepcional. Foi a maior de sua geração.
Elizeth tinha uma qualidade que, embora não pareça, não é facilmente encontrada em muitos cantores, independentemente da geração: ela sabia viver as emoções que estavam nas letras e compreendia seu conteúdo. Ou seja, ela sabia interpretar, sabia o que estava cantando. Cantar (só cantar) é algo que muitos sabem fazer: com boa voz e afinação, entre outras qualidades, muitos são cantores, mas não são intérpretes. Têm voz, mas são lineares. Encontraram uma forminha e, com ela, cantam todas as canções do mesmo jeito. Ultimamente, então, isso é bem comum. 
A "Divina", sim, era uma intérprete em seu sentido mais amplo, íntegro, completo e verdadeiro. Além de muita sensibilidade para viver as canções, era dotada de inteligência musical. Parafraseando o jornalista Julio Maria, intérprete não é o que dá importância somente à palavra e à sua compreensão. Um ouvido deve estar, sim, nos versos que ele está cantando, compreendendo-os, mas o outro precisa estar atento, como um músico, à tonalidade, às modulações e ao andamento, por exemplo. Assim como Elis, Elizeth era muito musical. Era uma intérprete nata.
Além de ser uma intérprete excelente, Elizeth, assim como Dalva, Elis e Bethânia, por exemplo, tinha o que chamam de "assinatura". Há pouco tempo, em entrevista, o letrista-poeta Fausto Nilo disse que tem obsessão por ouvir uma voz de um jeito que ele nunca ouviu. Como exemplos, citou Bethânia e Maysa. Hoje, ele diz que há blocos de vozes que se classificam de uma maneira "genérica". Exatamente! Muita gente canta, mas poucos têm o que chamo de chancela na voz. Não é raro eu ouvir uma voz surgida nos últimos anos, tentar adivinhar quem é e citar dois, três ou até mais nomes. Todas muito parecidas. Desde a primeira vez que a ouvi, não me lembro de ter confundido Elizeth com ninguém. Outra marca da "Divina" era a elegância. Até nos vibratos, comedidos, ela mostrava sua elegância, sua classe. É comum ouvirmos dizer que Elizeth era uma dama. Não há quem conteste isso. 
Outra de suas marcas mais importantes está exatamente na altíssima qualidade de sua obra. Moderna e transgressora a toda prova, em 1958, ela gravou - e legou para a posteridade - "Canção do amor demais", só com músicas de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Quem poderia imaginar que uma cantora da chamada “era do rádio” pudesse participar de um projeto como esse? Sobre esse trabalho seminal, escreveu o "Poetinha" na contracapa do LP: "Não foi somente por amizade que Elisete Cardoso foi escolhida para cantar este LP. É claro que, por ela interpretado, ele nos acrescenta ainda mais, pois fica sendo a obra conjunta de três grandes amigos; gente que se quer bem para valer, gente que pode, em qualquer circunstância, contar um com outro; gente, sobretudo, se danando para estrelismos e vaidades e glórias. Mas a diversidade dos sambas e canções exigia também uma voz particularmente afinada; de timbre popular brasileiro, mas podendo respirar acima do puramente popular, com um registro amplo e natural nos graves e agudos e, principalmente, uma voz experiente, com a pungência dos que amaram e sofreram, crestada pela pátina da vida. E assim foi que a Divina impôs-se para uma noite de serenata.” 
Em 1967, com participações especiais de Clementina de Jesus, Cartola, Codó e Pixinguinha, a "Divina" grava outro disco irretocável: "A enluarada Elizeth", com arranjos e regência do Maestro Gaya. Da primeira, "Meu consolo é você" (Antonio Nássara e Roberto Martins) à última faixa, uma seleção de sambas de Mangueira, o álbum está esplêndido. Entre os destaques, e todas as faixas são destaque, há que se ressaltar a gravação de "Carinhoso" (Pixinguinha e João de Barro), de que participa "São Pixinguinha", como Hermínio Bello de Carvalho se refere ao patriarca. É o próprio Hermínio quem diz, no texto que acompanha LP e CD, que "(...) a gravação do 'Carinhoso' foi feita de surpresa e quase de improviso: ensaio e gravação não duraram mais que quinze minutos ('Agora sim, ouvi meu 'Carinhoso' - e os olhos do mestre se aguaram nessa hora)". Pois é, deu para imaginar (e até sentir) a emoção que tomou conta do gênio Pixinguinha ao ouvir seu "Carinhoso" na voz de sua cantora favorita. Outro momento de pura epifania foi a gravação, "a capella", de "Demais" (Tom Jobim e Aloysio de Oliveira). Não é qualquer cantor que se atreve a cantar sem acompanhamento instrumental. Só mestres o fazem. "Melodia sentimental" (Villa-Lobos e Dora Vasconcellos) também é outra faixa emblemática desse disco. Mesmo não sendo tão conhecida quanto as "Bachianas", "Melodia..." está entre as mais belas canções de todos os tempos. 
No ano seguinte, 1968, Elizeth lança "Momento de amor", que está entre os álbuns preferidos de muita gente, como do jovem talento Ayrton Montarroyos. Eis aí, segundo Mauro Ferreira, "um dos exemplos mais bem-acabados do rigor estilístico de Elizeth". Sobre esse mesmo disco, Ferreira aponta ainda a "ausência de vaidade" da "Divina" na escolha do repertório. Ou seja, Elizeth, ao gravar, não se preocupava se a canção era inédita ou não, o que é ratificado por Sérgio Porto, que assina o texto da contracapa: "(...) Elizeth escolheu um repertório por igual, sem se preocupar sequer com lançamentos novos e sim com a beleza das canções". O que importava era a qualidade do repertório selecionado. Tal disco, ainda segundo Ferreira, prima por um tom melodramático, o que não é demérito. E a "Divina", sabendo como poucos combinar emoção e técnica, nunca ultrapassa a linha que demarca o ponto preciso do melodrama. Mais uma vez, todas as canções do álbum são obras-primas. "Derradeira primavera" (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), "Pra você" (Silvio César), "Razão de viver" (Eumir Deodato e Paulo Sérgio Valle), "Lua cheia" (Chico Buarque e Toquinho), "Pra dizer adeus" (Edu Lobo e Torquato Neto), "Carolina" (Chico Buarque) e "Insensatez" (Tom Jobim e Vinicius de Moares) figuram entre as preciosidades do álbum. 
Gravado em 1968, O álbum duplo “Elizeth Cardoso ao vivo no Teatro João Caetano, com Zimbo Trio, Jacob do Bandolim e Época de Ouro” é um registro ao vivo de um dos melhores espetáculos da Música Popular Brasileira de todos os tempos, conforme atesta o pesquisador Jairo Severiano: “Dirigido e roteirizado por Hermínio Bello de Carvalho, o espetáculo cobriu trinta anos de música brasileira, com Jacob e o Época de Ouro representando a tradição, o Zimbo Trio, a modernidade, e Elizeth atuando como traço de união entre as épocas focalizadas. Com sua versatilidade, a Divina cantou na ocasião um repertório que ia de Pixinguinha, Ary Barroso, Noel Rosa, Orestes Barbosa e o próprio Jacob a Tom e Vinicius, Baden Powell, Chico Buarque e Milton Nascimento, entre outros”.
Aqui, damos um salto para tecer alguns comentários sobre "Luz e esplendor", de 1986. Já na faixa que dá nome ao disco, de Walter Queiroz, a “Divina” vem inteira: “Artista o seu nome já nasce na lista / Dos que vão sangrar de paixão e dor (...)”. Foi nesse disco aí, quando Elizeth estava com 66 anos, que percebi o veludo que cobriu sua voz, tornando-a mais bonita (se é que isso ainda era possível). Os graves ficaram mais profundos e mais sedutores. Vale dizer que as vozes envelhecem, sim, mas, ao contrário do que se apregoa pelo mundo musical, há aquelas que, com o passar dos anos, ficam mais bonitas e encantadoras, com é o caso da voz da "Divina". Na faixa de abertura, à qual deu-se o nome de "Elizetheana", Alcione, Cauby Peixoto, Maria Bethânia e Nana Caymmi reverenciam a "Divina" cantando, junto com ela, sucessos da "Enluarada": "Nossos momentos (Luís Reis e Haroldo Barbosa), "Meiga presença" (Paulo Valdez e Otávio de Moraes), "Apelo" (Baden Powell e Vinicius de Moraes) e "Se todos fossem iguais a você" (Tom Jobim e Vinicius de Moraes). "Faxineira das canções", que Joyce (Moreno) compôs especialmente para Elizeth, é uma das mais comoventes faixas desse disco e conta com as participações da própria Joyce nos vocais e de Gilson Peranzetta (piano). De fato, Elizeth é a própria "faxineira das canções", que, "assim como quem cuida de uma casa, com capricho e com carinho", ela sempre cuidou de sua voz, que saía limpa e clara da garganta, voava veloz e, como água cristalina, lavava o coração de quem a ouvia, aliviando qualquer dor. Posso atestar o que Joyce nos diz em sua bela canção: diversas vezes, fui curado pela voz divina da Elizeth, principalmente quando a "enfermidade" dizia respeito ao coração. 
Com o violão de Raphael Rabello e o cello de Márcio Mallard, ambos também arranjadores da faixa, "Cabelos brancos" (Baden Powell e Paulo César Pinheiro) é uma das canções mais pungentes e tocantes desse "Luz e esplendor". Como não o ser? Junte a poesia de Pinheiro, a melodia do Baden, a interpretação de Elizeth... e o resultado só pode ser um: obra de arte, que é o caso de outra faixa da mesma dupla, "Voltei". Assim que a ouvi, saí logo cantarolando. Foi "amor à primeira ouvida". De Jorge Aragão e Jorge Fonseca, "Vento de saudade" é outro caso de encanto imediato: aprendemos a letra e a melodia num átimo. E olhe que não se trata de uma dessas canções banais e de fácil aprendizado, que rolam por aí e não causam nada além de tédio em quem tem ouvidos bem educados. "Valsa derradeira" (Capiba e Gereba), "Complexo" (Wilson Baptista e M. de Oliveira), "Calmaria e vendaval" (Sereno e Nei Lopes), "Operário padrão" (César Brunetti) e "Felicidade segundo eu" (Ivone Lara e Nei Lopes) são as outras obras-primas desse "Luz e esplendor", título mais que adequado a um álbum tão bem produzido. 
Em 1989, junto com o extraordinário violonista Raphael Rabello, em apenas um dia, a "Divina" gravou “Todo o sentimento”. Sobre esse disco, em suas anotações, Hermínio Bello de Carvalho registrou que se tratava de um "trabalho conceitual, quase camerístico, de voz e violão" e que, por meio dele, "roteirizou um pouco a própria vida de Elizeth". Ainda segundo o próprio Hermínio, esse disco não passou por qualquer retoque. Ou seja, Elizeth e Raphael gravaram ao vivo mesmo, "um com o coração pousado no coração do outro". Quem, hoje, consegue essa proeza? Quase ninguém. Só os verdadeiros cantores-intérpretes. O que não falta para muitos é o "auto-tune", que corrige muitas imperfeições, entre as quais as desafinadas. 
Nesse disco/obra-prima, só há canções imorredouras, atemporais: "Faxineira das canções" (Joyce), "Camarim" (Cartola e Hermínio Bello de Carvalho) e "Refém da solidão" (Baden Powell e Paulo César Pinheiro) formam um "medley" dos mais pungentes já registrados em disco. As demais preciosidades são "Todo o sentimento" (Cristóvão Bastos e Chico Buarque), "a capella", "Janelas abertas" (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), "Canção da manhã feliz" (Haroldo Barbosa e Luís Reis) e "Bom dia" (Herivelto Martins e Aldo Cabral), que se alinham noutro "medley"; "Doce de coco" (Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho), "Modinha" (Tom Jobim e Vinicius de Moraes), "No rancho fundo" (Ary Barroso e Lamartine Babo) e "Violão (Vitório Junior e Wilson Ferreira) configuram o terceiro "medley" do disco e, fechando, o quinto ["medley"], com "Chão de estrelas" (Sílvio Caldas e Orestes Barbosa) e "Consolação" (Baden Powell e Vinicius de Moraes). Eis aí uma senhora aula - com os professores Elizeth e Raphael - para quem quer aprender a cantar e tocar. Para quem quer aprender a interpretar. 
Em de 1990, ano da saída de cena da "Divina", é lançado o álbum "Ary amoroso - Elizeth canta Ary Barroso". Nesse trabalho - imprescindível, como todos os outros da "Cantadeira do amor" - a voz de Elizeth parece estar ainda mais bonita. Nele, abordou-se, magistralmente, o lado amoroso do autor de "Aquarela do Brasil".  Para esse trabalho vigoroso, arregimentou-se um time estelar de músicos, entre os quais Raphael Rabello, Wilson das Neves, Maurício Carrilho, Marcos Suzano, Alceu Maia, Gilson Peranzetta, Zeca Assumpção, Mauro Senise, Maurício Einhorn. No coro, vale ressaltar, há duas vozes que figuravam entre as preferidas de Elizeth: Áurea Martins e Ithamara Koorax. As produções artística e executiva, impecáveis, couberam, respectivamente, a Hermínio Bello de Carvalho e João Carlos Carino. Os arranjos - extraordinários - ficaram a cargo de Gilson Peranzetta e Maurício Carrilho. 
Pois é, sempre há muito o que se dizer sobre Elizeth, a "Divina", título atribuído a ela por Haroldo Costa. Ela era tão querida e respeitada, que recebeu, ao longo de sua enluarada carreira, inúmeros adjetivos. Difícil é encontrar outra cantora que tenha recebido tantos adjetivos como ela. Além de "Divina", "Enluarada", "Magnífica", "Cantadeira do amor", "Machado de Assis da seresta", "Noiva do samba-canção", "'Lady' do samba" estão entre os mais conhecidos. E é muito bom saber que Elizeth fez jus a todos eles. 
Elizeth era admirada por muitos, em especial por colegas de ofício, como músicos e cantores. Segundo Hermínio Bello de Carvalho, para a camerista Magdalena Lébeis e Maria Lúcia Godoy, uma das mais importantes cantoras líricas brasileiras, Elizeth era a maior cantora popular do Brasil. Em casa de Hermínio, depois de ouvir a "Divina", em cuja garganta "se alternaram as imensas arcadas de um poderoso cello e as misteriosas vozes de uma viola d'amore", disse Lébeis, "emocionada, extasiando-se com aquele instrumento [a voz de Elizeth]: 'perfeito, perfeito'! Nada a acrescentar. Apenas que continuamos amando a "Divina" Elizeth Cardoso, um clássico da canção popular do Brasil. 




“'Divina', na Música Brasileira, é Elizeth Cardoso. 'Divina'! Esse título, por favor, não coloquem esse título pra nenhuma outra pessoa, porque não vai ficar bem, por favor.” [Leny Andrade]

“(Elizeth Cardoso), a melhor de nós todas.”

[Nara Leão]

 

 “C’est merveilleuse! C’est merveilleuse!”

[Edith Piaf, após assistir a um espetáculo de Elizeth no Clube 36]

 

“Você é a dama da canção no Brasil, é uma das melhores cantoras que ouvi em toda a minha vida.”

[Maestro Quincy Jones]

 

 “(...) Elizeth Cardoso (...) primava por ter um repertório de extremo bom gosto.”

[Bibi Ferreira]

 

  “Elizeth Cardoso é unanimidade. Não conheço ninguém que goste de música que não goste de Elizeth Cardoso.”

[Ayrton Montarroyos]

 

Também quero colar meu bilhete no espelho da Elizeth: canta, canta, canta mais! Porque Elizeth é a nossa cantora mais amada. Voz de mãe, e mãe de todas as cantoras do Brasil.

[Chico Buarque, em referência à letra de "Camarim", de Cartola e Hermínio Bello de Carvalho, que Elizeth interpreta no "show" (e disco) "Todo o sentimento", com Raphael Rabello]

 


No camarim

As rosas vão murchando

E o contrarregra dá

O último sinal

As luzes da plateia

Vão se amortecendo

E a orquestra ataca

O acorde inicial

 

No camarim

Nem sempre há euforia

Artista de mim mesmo

Nem posso fracassar

Releio os bilhetes

Pregados no espelho

Me pedem que jamais eu deixe de cantar

Caminho lentamente

E encontro em contraluz

E a garganta acende

Um verso embriagador

O corpo se agita

E chove pelos olhos

E um aplauso escorre

Em cada refletor

 

Pisando esta ribalta

Cantando pra vocês

De nada sinto falta

Sou eu mais uma vez

As rosas vão murchar

Mas outras nascerão

Cigarras sempre cantam

Seja ou não verão

  [“Camarim”, Cartola e Hermínio Bello de Carvalho]




terça-feira, 4 de agosto de 2020

CARTA A UM EX-AMOR



POIS É
Chico Buarque e Tom Jobim

Pois é
Fica o dito e o redito por não dito
E é difícil dizer que foi bonito
É inútil cantar o que perdi
Taí
Nosso mais-que-perfeito está desfeito
E o que me parecia tão direito
Caiu desse jeito sem perdão
Então
Disfarçar minha dor eu não consigo
Dizer: somos sempre bons amigos
É muita mentira para mim
Enfim
Hoje na solidão ainda custo
A entender como o amor foi tão injusto
Pra quem só lhe foi dedicação
Pois é, e então...


CARTA A UM EX-AMOR 

Via Láctea, Terra, Brasil (ou Brazil?), agosto, 2020...

Meu caro ex-amor:

Cá estou, em pleno século XXI, pensando no Tempo (com inicial maiúscula mesmo, como no Romantismo, para personificá-lo). Parafraseando Gil Vicente, o tempo é, sim, o tal monstro devorador que sai engolindo tudo que encontra pelo caminho. No entanto, ele é também, na definição "caetanovelosamente" linda, "um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho".
Talvez, em nossa história, o Tempo tenha sido a grande personagem. Não sei se o monstro do Gil Vicente ou o senhor bonito da canção do Caetano. Talvez os dois. Ele foi transformando tudo. Transformou a sua e a minha vida. Cobriu tudo de silêncio e trouxe o afastamento. Ambos necessários. Tudo tramado, costurado ou remendado por ele, o Tempo, o protagonista de todas as histórias. Não só da nossa. 
É Estranho e, até certo ponto, compreensível como as pessoas vão se desgarrando umas das outras, já reparou? Em nosso caso, eu bem que gostaria que não tivesse havido despedida, como numa das crônicas de nosso conterrâneo Rubem Braga, cujo título é exatamente “Despedida”: “(...) alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perde da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação. (...)”.

No entanto, em nosso desfecho, ao contrário do que narra Braga, houve, sim, despedida. E uma despedida formal, com hora marcada e carta-desabafo, lembra? Foi num dia emblemático. Tanto tempo depois, ainda penso na importância desse texto. Imensa! Essa carta foi catártica naquele momento, naquele Tempo (!). Eu precisava fazer aquele desabafo, e você, lê-lo posteriormente.  Não sei se o fez. Guardei-a, mas não me pergunte por quê. Volta e meia, mexendo em papéis cheirando a guardado, surge essa carta à minha frente. Não a releio. Ficou velho o desabafo, mas o Tempo (ei-lo de novo!) se encarregou de deixar o conteúdo do texto vivo em minha memória. Sem força, esmaecido, mas vivo. A raiva envelheceu e até morreu. É, tive raiva, exatamente porque o tal amor foi, como diz o Chico, muito injusto "pra quem só lhe foi dedicação". Mas o Tempo (novamente ele!), graças aos deuses, corre, "nos" sereniza e dá nutrientes e defesa para o que virá depois: "Enquanto sofre, o coração intui / que, ao mesmo tempo que magoa, o tempo flui / (...) E, ao mesmo tempo que machuca, o tempo / me passeia (...)"¹. Então, quando se constata que o Tempo "nos passeia", é que chegou o tempo do perdão, mas lembrando que perdoar não é esquecer. Temos memória! Perdoar, para mim, é não ter mais raiva.

É... estamos na história de um e do outro. Não há como negar! Não dá "pra" esquecer. "As lembranças anoitecem, mas não morrem"². E essas lembranças, que não morrem, sempre “me” vêm como se elas fossem um rio bem caudaloso e formado por dois braços. No primeiro, estão as histórias de ternura, carinho, afeto, amor, apascentamento, felicidade, enlevo, alegria... E foram muitas as situações com esses ingredientes. Será que essas situações e esses bons sentimentos teriam alguma relação com aquela ilusão (pareidolia) que nos faz enxergar São Jorge na lua, montado em seu dragão? Houve um tempo em que pensei que sim. Hoje, prefiro pensar que tudo foi prazeroso e sincero para os dois, pelo menos durante um tempo. Para mim, sempre foi muito bom oferecer "um ombro de algodão / pra ajeitar seu sono”³. Proteger e cuidar. Um gesto paternal e delicado, que, durante um tempo, pautou nossa história. Nosso caso foi raro. Nele, não havia a ditadura da libido. Em lugar de algo opressor e forçoso, havia delicadeza, tão escassa neste mundo arrogante e utilitarista, em que quase tudo está a serviço de prazer banal e momentâneo. 
No outro braço do rio, estão as lembranças pouco nobres, desagradáveis. Entre elas, traição e mentira, que, infelizmente, também não ficaram esquecidas. Esse braço do rio, ignóbil, sacana, não combinou com uma relação ventilada por música e poesia. Mesmo assim, o rio se incumbiu dessa mudança de curso. E aí o trem descarrilou. No início, tudo ficou bem confuso: "Às vezes, ficam faltando pedaços demais / Nas vezes que vão largando pedaços de nós (...) Às vezes, ficam juntando pedaços demais / Nas vezes que vão lembrando pedaços de nós (...)", como na letra de "Era tudo verdade, de Dudu Falcão; depois, tudo se clarificou.   
E possíveis reencontros, hoje, poderiam existir? Qualquer um, lembrando Braga, versaria sobre reminiscências? É quase certo que sim. Será que, no presente, somos uma roldana no poço seco? Espero que não. Então, "fica o dito e o redito por não dito". 

NOVAMENTE
Alexandre Lemos e Fred Martins 

Me disse vai embora, eu não fui
Você não dá valor ao que possui
Enquanto sofre, o coração intui
Que ao mesmo tempo que magoa 
O tempo, o tempo flui
E assim o sangue corre em cada veia
O vento brinca com os grãos de areia
Poetas cortejando a branca luz
E, ao mesmo tempo que machuca, 
O tempo me passeia

Quem sabe o que se dá em mim?
Quem sabe o que será de nós?
O tempo que antecipa o fim
Também desata os nós
Quem sabe soletrar adeus
Sem lágrimas, nenhuma dor
Os pássaros atrás do sol
As dunas de poeira
O céu de anil do pólo sul
Há dinamite no paiol
Não há limite no anormal
É que nem sempre o amor
É tão azul

A música preenche sua falta
Motivo dessa solidão sem fim
Se alinham pontos negros de nós dois 
E arriscam uma fuga contra o tempo 
O tempo salta 


OUTRA TARDE 
Márcio Proença e Marco Aurélio 

Que saudade de você, que saudade
Outra tarde sem você, outra tarde
O sereno nos meus olhos chuviscando 
Tão distante entre nós, um oceano

Que saudade de você, que saudade
Eu fiquei sem lhe dizer, é tão tarde 
O desejo no meu peito me apertando 
Que vontade de dizer que eu te amo 

Que saudade de você, que saudade
Outra tarde vai morrer , outra tarde 
As lembranças anoitecem, mas não dormem 
Tanto tempo entre nós, um oceano

Que saudade de você, que saudade 


MÃOS DE AFETO 
Vitor Martins e Ivan Lins 

Preparei minhas mãos de afeto
Pra esse rapaz encantado
Pra esse rapaz namorado
O mais belo capataz de todos os cafezais
O mais belo vaqueiro de todos os cerrados

Eu tinha um ombro de algodão
Pra ajeitar seu sono
Eu tinha uma água morna
Pra lavar o seu suor
E o meu corpo uma fogueira
Pra esquentar seu frio
E minha barriga livre
Pra gerar seu filho

Preparei minhas mãos de afeto
Pra esse rapaz encantado
Pra esse rapaz namorado
Que partiu pra nunca mais
Traído nos cafezais
E os seus olhos roubaram o verde dos serrados
E os meus olhos lavaram todos os meus pecados


ERA TUDO VERDADE 
Dudu Falcão 

Às vezes conto histórias
Nem eu entendo direito
Se misturei as memórias

Se te guardei de mau jeito

Às vezes, ficam faltando pedaços demais

Nas vezes que vão largando pedaços de nós

Eu ando querendo falar com você

Eu ontem sonhei e achei
Era tudo verdade
Tanta felicidade não me deixou dormir

Às vezes, conto histórias
Só eu entendo direito
Fizemos juras secretas
Fizemos planos malfeitos
Às vezes, ficam juntando pedaços demais
Nas vezes que vão lembrando pedaços de nós
Eu ando pensando em te esquecer
Eu hoje acordei quando vi essa tal realidade
Minha felicidade não te deixou partir

Às vezes, ficam faltando pedaços demais




¹ Novamente (Fred Martins e Alexandre Lemos)
² Outra tarde (Márcio Proença e Marco Aurélio)

³ Mãos de afeto (Vitor Martins e Ivan Lins)

sábado, 11 de abril de 2020

BOLINHOS DE CHUVA...


MEUS TEMPOS DE CRIANÇA
Ataulfo Alves 

Eu daria tudo que eu tivesse
Pra voltar aos tempos de criança
Eu não sei pra que que a gente cresce
Se não sai da gente essa lembrança

Aos domingos, missa na matriz
Da cidadezinha onde eu nasci
Ah, meu Deus, eu era tão feliz
No meu pequenino Miraí

Que saudade da professorinha
Que me ensinou o beabá
Onde andará Mariazinha
Meu primeiro amor, onde andará?

Eu igual a toda meninada
Quantas travessuras eu fazia
Jogo de botões sobre a calçada
Eu era feliz e não sabia


PELANCA OU BOLINHO DE CHUVA?
Por Fábio Brito

Há um tempo, num programa de TV, eis que ouço Miguel Falabella – ou “Miguéis Falabellas”, como digo – fazer algum comentário sobre não achar graça quando ele tem algo (um bem material, por exemplo), e a pessoa que está a seu lado não. Como ele vai comemorar, dizer a essa pessoa que ele está feliz com aquilo, se ela não pode sentir o mesmo? O bom é poder dividir. Em horas assim, não dá “para se colocar no lugar do outro”, como dizem.

Pois bem, foi assim que me senti, dias atrás, ao desmontar um apartamento em que não moro há doze anos. Ao estilo “formiguinha”, fui carregando quinquilharias reunidas ao longo de vinte e um anos. E fui presenteando pessoas próximas com objetos que eu não via há um tempo (a quarentena me tirou da cama). De vários desses objetos, eu quase não me lembrava mais... e olhe que minha memória é prodigiosa.
Foi então que, na mais recente “viagem em busca de certo tesouro quase esquecido”, deparei com os “potes de mantimentos” que tenho na cozinha, que as pessoas têm na cozinha. Que todas as pessoas têm na cozinha? No meu caso, alguns potes ainda estavam com os tais mantimentos, como arroz, macarrão, pó de café, açúcar... [mesmo não morando no tal apê, eu ainda passava/passo por lá para fazer um cafezinho rápido, um macarrão instantâneo... Assim, alguma energia, ainda que mínima, acaba circulando por aquele ambiente].
Bem, chegando com os “potes de mantimentos” à minha casa, pedi uma ajudinha à senhora que trabalha comigo para dar um rumo àquilo. Perguntei se ela via alguma utilidade naqueles potes, se eles poderiam ser úteis para guardar algo diferente, talvez, dos tais mantimentos de cozinha... sei lá. Foi aí que fiquei surpreso (sei que muitas pessoas não seriam surpreendidas com a resposta, mas fui) com o que ela me disse: ela “não tem potes de mantimentos de cozinha”. Só um (e bem simples, como ela disse) para guardar o açúcar, por causa das formigas. O arroz, o feijão e o pó de café, por exemplo, ficam nas próprias embalagens que vêm do supermercado. Por uns instantes, fiquei meditando sobre aquilo. Em minha ingenuidade infantil para certas situações (infantil mesmo!), eu nunca tinha parado para pensar que muita gente não tem objetos tão simples, bobagens mesmo que passam quase sem ser vistas por nós.
E foi aí que voltei à minha infância. Década de 70, bairro de periferia de uma cidade ainda pequena, Cachoeiro de Itapemirim, de um Estado também pequeno e, constantemente, esquecido nos noticiários de TV. “Aldeia do quase” mesmo, para usar uma expressão de Flora Sussekïnd. Dessa já distante década, lembrei-me, com nitidez, de uns vizinhos que moravam praticamente em frente à nossa casa. Família pobre e numerosa (pai, mãe e cinco filhos), não tinha, é claro!, as mínimas condições de uma vida que poderíamos chamar de quase justa. Com os filhos dessa família, exceto o mais velho, eu passava quase todas as minhas tardes, brincando até que o dia baixasse a guarda. Opções não faltavam: desde rolar pneu velho de automóvel pelas ruas, até saltar de um barranco numa terra escavada e vermelhíssima, estripulia que nos deixavam marrons da cabeça aos pés. E o melhor: sem bronca de mãe. 
Bom, depois de tanta brincadeira, hora do lanche da tarde. Lembrando aqui que a palavra “lanche” nem era usada naquela época e naquela situação. Era luxo demais! Uso-a agora, exatamente porque me falta outra. Acho que dizíamos “hora de tomar café” mesmo. Hoje, vejo nitidamente o tempo brincando ao redor daqueles meninos. Ele, o tempo, ainda não era um monstro devorador que saía engolindo tudo. E a saudade vai matando a gente aos pouquinhos... Sem digressões, Fábio!
Voltemos ao lanche! Porque a tal da falta de fome sempre me acompanhou (feito minha mãe!), nem sempre eu passava em casa no mesmo horário em que meus amiguinhos tinham aquela “fome de anteontem” e nem pestanejam: da porta da cozinha mesmo, num alvoroço de passarinhada, berravam pela mãe. Para não ter de passar em casa, tomar café e depois voltar às brincadeiras, geralmente eu ficava por ali mesmo, junto com os moleques que devoravam o que vinha pela frente. A mãe da meninada sempre me convidava para lanchar. Não só pela falta de fome, mas, principalmente, pela timidez, eu nunca aceitava. Entretanto, sempre que eu os via lanchando, algo me intrigava: que tipo de fritura era aquela que eles comiam? Eu nunca cheguei a ver, por exemplo, pão com manteiga naquela casa, ou “bolinho de chuva”, que era bem comum aqui em casa e que adorávamos. Aliás, aos “bolinhos de chuva”, minha mãe preferia “rosquinhas” com cobertura de açúcar e canela. A propósito: por que “bolinhos de chuva”? Ouvi, não sei onde e quando, duas possíveis explicações: ou porque os bolinhos são parecidos com gotas de chuva, ou porque eles são normalmente preparados em dias chuvosos. Assunto para outra crônica. Sem digressões, Fábio!
Novamente, voltemos ao lanche! O fato de eu não ter fome ou não aceitar lanchar na casa dos tais vizinhos não me impedia de, às vezes, ficar até “com água na boca” imaginando o sabor do tal bolinho que eles comiam com tanto prazer. Excitação até, arrisco dizer. Em verdade, nem era um “bolinho”, mas algo parecido com panqueca, só que num tom meio transparente, ou uma pizza pequena. Opa! Panqueca e pizza são mais dois luxos para aqueles tempos! Bom, findo o lanche, ou o “café da tarde”, voltávamos às brincadeiras, que, daí a pouco, chegariam ao fim. Uma pena o dia ser tão curto para tão longa vida e tão excitantes brincadeiras. Ao entardecer, com os pardais já procurando seus galhos nas árvores que, aos montes, transformavam meu bairro pobre no perfeito “paraíso perdido” do Rousseau, eu voltava para casa (só atravessava a rua), mas não conseguia esquecer o lanche dos meninos: que comida era aquela, meu Deus?
Bom, anos – muitos anos – depois, conversando com uma prima de minha mãe, não sei por que cargas d’água, eis que surge o assunto sobre o que a mãe dessa prima fazia para o café da tarde quando todos os filhos – 11! - eram pequenos e moravam na roça. Nem sombra de pão, claro!, a não ser o que preparavam em casa mesmo. Quando faltava até esse pão caseiro, o jeito era improvisar: a mãe preparava o que chamavam de “pelanca”, cuja receitinha dou agora: trigo, água, sal e, quando havia, um pouquinho de óleo ou banha de porco. Dava-se só uma mexidinha no trigo com o sal e a água e punha o resultado na frigideira. Pronto! Na falta do pão (pão mesmo!) nosso de cada dia, um substituto – não à altura, é lógico – entrava em campo: a tal da “pelanca”. Que nome esquisito, pensei.
Bom, a melhor parte vem agora. Nessa conversa aí, decifrei o enigma do lanche dos meus amiguinhos lá na década de 70. O que minha vizinha fazia para seus meninos era... “pelanca”. Só o que eu não sabia é que eles só comiam a tal pelanca exatamente porque não podiam comer “bolinhos de chuva” ou “rosquinhas com açúcar e canela”, como aqui em casa. Em minha ingenuidade quase santa, aquilo era apenas uma questão de preferência. Não era, Fábio! Com alguma estranha ternura até, mas “com espanto e horror”, constatei, tempos depois, que o que eu achava ser preferência naquela época era o flagelo da fome. Eu não sabia, menino ainda, que a pobreza rolava pneu comigo pelas ruas de meu bairro, saltava de barrancos em terra vermelha, pulava “carniça” e  brincava de pique-esconde. Para mim, éramos todos iguais, sem quaisquer distinções, como prega nossa Constituição. Pura mentira! Pura mentira naquela época, auge do regime militar, pura mentira hoje, nesta “pátria amada, Brasil”, que insiste em "enfeitar a pobreza", ostentando-a nos carros que abrem as alas de muitos "carnavais" país afora.
P. S.:
Ah, só não posso me esquecer de dizer que, outro dia, às 10 da noite, levantei-me da cama e fui preparar uma “pelanca”. Comi o sabor da infância com um prazer indescritível.