quarta-feira, 27 de julho de 2011

BEM 'PERTO DO FOGO'


PERTO DO FOGO
Rita Lee – Cazuza

Perto do fogo
Como faziam os hippies
Perto do fogo
Como na Idade Média
Quero queimar minha erva
Eu quero estar perto do fogo
Fogo, fogo, fogo, fogo

Perto do fogo
Quando tudo explodir
É, mas não vai explodir nada
Vão ficar os homens se olhando
E dizendo: O momento está chegando
Perto do fogo, meu amor
Ai ai meu amor, ai ai meu amor,ai ai ai…

Perto do fogo
Eu queria ficar perto do fogo
No umbigo do furacão
E no peito um gavião
Gavião, gavião
Perto do fogo
Eu queria ficar perto do fogo
E no peito um gavião

No coração da cidade
Defendendo a liberdade
Eu quero ser uma flor
Nos teus cabelos de fogo
Quero estar perto do poder
Eu quero estar perto do fogo
Fogo, fogo, fogo, fogo

Mais, perto do fogo, meu amor
Perto do fogo, meu amor…
Meu amor!



NOITE ESCURA
Luiz Fernando Verissimo

Imagine-se vivendo no tempo em que ainda não sabíamos fazer fogo. Num mundo sem fogo, não existe luz. Depois que o sol se põe, não se enxerga mais nada. Até o sol reaparecer, não se enxergará mais nada. Você estará numa escuridão total e irremediável. A luz das estrelas não o ajudará a saber se aquele escuro mais espesso que parece se mover é um parente, um amigo ou um leão. Uma lua cheia melhorará a sua percepção, mas não muito: cada sombra indefinida continuará a ser uma ameaça e um possível terror. Quando não houver estrelas ou lua, você só saberá o que acontece à sua volta pela audição, o olfato ou, meu Deus, o tato. Imagine uma noite inteira de ruídos estranhos dos quais você não pode fugir, pois como encontrará uma árvore para subir no escuro? Imagine-se aninhado numa árvore para passar a noite com segurança e descobrindo, ao amanhecer, que dormiu enrolado numa cobra.
Quantos anos os pré-homens terão vivido assim, só conhecendo o fogo dos incêndios provocados na mata por relâmpagos e desesperados por algum meio de domesticá-los, os relâmpagos ou o fogo, para iluminar as suas noites? O sol seria adorado pelos primitivos porque era a fonte da vida e, afinal, qualquer bola incandescente daquele tamanho passando diariamente pelo céu fatalmente causaria admiração, mas desconfio que o que era adorado, acima de tudo, era a luz. Não a grande lâmpada mas a sua dádiva, o poder de enxergar. O fim do terror do invisível, ainda mais do invisível que roncava.
O sono é uma decorrência dos anos sem fogo e sem luz. Dormimos porque nossos antepassados não tinham o que fazer no escuro a não ser dormir. Como continuamos a dormir como fazíamos na savana africana, ou pelo menos a ter sono a intervalos regulares, isto significa que o cérebro humano não tomou conhecimento nem da invenção da fogueira, quanto mais da lamparina, da lâmpada a gás e da luz elétrica. Para o nosso cérebro, a escuridão da noite continua total e irreversível. Temos sono porque a notícia de que agora podemos enxergar no escuro ainda não chegou ao nosso cérebro.
Sabemos algumas coisas com absoluta certeza sobre os nossos antepassados genéticos. Sabemos com absoluta certeza que todos viveram até a maturidade sexual, que todos tiveram pelo menos uma relação sexual na vida e que todos, sem exceção, eram férteis. Mas só podemos imaginar o que passaram para sobreviver aos terrores do mundo primevo - como os terrores da noite - portando o nosso DNA.
Se pudéssemos viajar no tempo, o que diríamos para esses antepassados, em que língua, com que gestos? Só agradecer por terem resistido ao duro início da vida humana, inclusive aos leões, e assim iniciado a nossa linhagem não seria o bastante. O momento requereria alguma solenidade. Talvez um discurso, dizendo que não os tínhamos desapontado, que também tínhamos vivido o suficiente para passar adiante nossos genes e assegurar a sua descendência, milhões de anos depois. E trocaríamos presentes.
Que presente poderíamos levar da nossa era para eles? Eu levaria uma caixa de fósforos.

O GLOBO, 20-01-2008

sexta-feira, 22 de julho de 2011

SEMPRE OS POETAS



CHORO BANDIDO
Chico Buarque / Edu Lobo
Mesmo que os cantores sejam falsos como eu
Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo miseráveis os poetas
Os seus versos serão bons
Mesmo porque as notas eram surdas
Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
Que animou todos os sons
E daí nasceram as baladas
E os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim:
Você nasceu para mim
Você nasceu para mim

Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido
Minha musa vai cair
em tentação
Mesmo
porque estou falando grego
Com sua imaginação
Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão
E eis que, menos sábios do que antes
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
Me leve até o fim
Me leve até o fim

Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons

 Hollanda, Chico Buarque de. Chico Buarque letra e música 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.


FRATERNIDADE
Newton Braga

É tua esta cantiga, meu irmão mendigo.
Meu irmãozinho jornaleiro, bom-dia.
E tu, varredor de ruas, ouve esta canção.
Carvoeiro, saxofonista, guarda-chaves:
- é esta a oração da minha solidariedade.
Não, meus irmãos, não é comício eleitoral,
é o desabafo dessa onda de ternura que me invade,
e transborda pelo olhos, ao pensar nas vossas vidas miseráveis,
em vossas vidas anônimas em que ninguém se fixa.
Bombeiro, que despertas precípite para ir ao fogo;
guarda-noturno que dormitas de pé, na noite fria;
linotipista que passas as madrugadas martelando as colunas dos jornais,
operário que conservas o calor no forno da olaria;
sertanejo que capinas aos mei-dias escaldantes
eu compreendo, e, porque compreendo, exalto o vosso heroísmo perdido,
a vossa resignação quase bovina,
esse jeito de sofrer a que já vos acostumastes.
Eu sinto as vossas lágrimas, meus irmãos desgraçados,
e me embriago convosco, e vou convosco às macumbas e aos cangarês,
buscar um remédio para a minha vida e para a minha dor.
Meus irmãos sem nome, meus irmãos de vida obscura e desconhecida,
tendes felicidades que eu não tenho:
tendes um deus que vos faz crer nele,
tendes uma alma sem ambições desvairadas,
tendes esperanças... tendes ilusões...
E só o que eu tenho, e que vós não tendes,
- que consolo triste! -
é esta sensibilidade dolorosa que se comove
com misérias que às vezes mesmo os que as carregam desconhecem,
esta sensibilidade que é uma antena delicadíssima,
captando pedaços de todas as dores do mundo,
e que me fará morrer de dores que não são minhas.


AUTOPSICOGRAFIA
 Fernando Pessoa

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

Fonte: De Nicola, José; Infante, Ulisses. Fernando Pessoa. São Paulo: Scipione, 1995. 

quinta-feira, 21 de julho de 2011

POETAS



Voz: Natália Correia
“A defesa do poeta", Vinicius / Amália, Biscoito Fino, BF 943, Rio de Janeiro, 2009.

A DEFESA DO POETA
Natália Correia
Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto
Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim
Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes
Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei
Senhores professores que puseste
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição
Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis
Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além
Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs na ordem ?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?
Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa
Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.


TESTAMENTO

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros - perdi-os...
Tive amores - esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me desde eu menino,
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!
BANDEIRA, Manuel. Lira dos cinquent’anos.


domingo, 17 de julho de 2011

BETHÂNIA, PESSOA, BERNADETTE LYRA e NEWTON BRAGA

â


Lembro-me de quando era criança e via,
como hoje não posso ver,
a manhã raiar sobre a cidade.
Ela não raiava para mim,
mas para a vida.
Porque então eu, não sendo consciente, eu era a vida.
E via a manhã e tinha alegria.
Hoje eu vejo a manhã, tenho alegria
e fico triste.
Eu vejo como via,
mas por trás dos olhos, vejo-me vendo.
E só com isso, se obscurece o sol,
o verde das árvores é velho,
e as flores murcham antes de aparecidas.

Do livro do “Desassossego”, de Fernando Pessoa

Ó sino da minha aldeia
Dolente na tarde calma
Cada tua badalada
Soa dentro de minh'alma
e é tão lento o teu soar
Tão como o triste da vida
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida

Por mais que me tanjas perto
Quando passo sempre errante
És para mim como um sonho
Soas-me na alma distante
A cada pancada tua
Vibrante no céu aberto
Sinto mais longe o passado
Sinto a saudade mais perto

Poema de Fernando Pessoa musicado por Roberto Mendes

Maria Bethânia. Imitação da vida, EMI MUSIC LTDA. 857309-2, Rio de Janeiro, 1997.


HAVERÁ OUTRAS ASSIM...

Minha terra? Bem... haverá outras assim, no mundo de Deus. Não; seu céu não tem mais estrelas que outros céus, nem é de um azul sem par. Não; nossos bosques não têm mais flores que os outros (talvez nem haja bosques), nem suas flores têm mais perfume que as de outros jardins.
Bonita? Não. Talvez mesmo feia; pesa-me confessá-lo. Há morro, para todo lado que se olhe: assim o horizonte é curto (embora certos crepúsculos bem mereçam um olhar embevecido). Entre os morros, fazendo curvas, vem um rio que tem personalidade. Tem. Por quê? Não saberia explicar. É dessas coisas que a gente sente e não acha jeito de explicar bem.
O que eu sei é que, se me fora dado a escolher, no vasto mundo de Deus, um lugar para eu nascer... Bem; escolheria este: Cachoeiro de Itapemirim. Por quê? Sabe-se lá o porquê das coisas do coração?...

(Artigo publicado na revista ‘Cachoeiro de Itapemirim’, em 29 de junho de 1939, quando houve o primeiro ‘Dia de Cachoeiro’, criado por Newton Braga).

BRAGA, Newton. Histórias de Cachoeiro. Vitória, ES: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1986

ESTRANHICES DA BARRA
Bernadette Lyra

Nem sempre foi assim como agora, ameaçada, alicerçada em pedras foreiras para deter o mar. Antes, a Barra era uma cidadezinha amena, preguiçosamente estirada debaixo do sol, na areia. E o mar, ah, o mar era daqueles que, na maré baixa, precisava que se andasse muito para chegar até as ondas e que, na maré cheia, batia comportadamente como um cavalheiro educado nas delicadas colinas brancas, cobertas de conchas e raízes de salsa da praia.

E isso não faz tanto tempo. Porém já viajei tanto e já andei tanto por esse mundo sem tranqueira que sei que todos os lugares passam por mudanças. E as pessoas também. As pessoas, essas, tadinhas! não só se transformam - às vezes para o bem, às vezes para o mal. As pessoas se findam.

Que fazer? A vida é um sonho, já dizia Calderón de La Barca. Ou melhor, a vida é como Gringo, herói de um faroeste de Afonso Brazza. A vida não perdoa, mata.

Então, vou tratando de viver e de acender a memória. Enquanto der, enquanto eu não me findar, enquanto eu me considerar escritora. Pois que é próprio da memória de quem escreve (quem escreve por ofício; não para obter nebulosas vantagens: é triste dizer isso, mas tem gente por aí que faz da literatura uma cavação ignóbil...) é próprio da memória o contrato virtual com as coisas que, depois, as palavras revestem corporalmente. De beleza ou de horror.

Ora, tudo que tenho no baú da memória, eu devo à Barra. À minha Conceição da Barra, aqui nomeada com nome e sobrenome para que não a confundam os desavisados com outras Barras que de outros são. Devo à Barra tudo de que me lembro. Mesmo o que está para além de seus pontos cardeais: Atlântico, Cricaré, Guaxindiba, Pontal do Sul.

Minha intimidade com o assunto de rememorança barrense vem com o selo de legitimidade. E há muita matéria de recordação. No momento atual, ando coletando algumas estranhices ocorridas na Barra. Como a aparição de gente vinda do estrangeiro e logo desaparecida. Fatos e casos de viajantes arribados que eu ouvia desde a infância ou que pude acompanhar também.

Tem a chegada de um espanhol, com botas enormes e uma sacola pesada, que saiu do convés de um navio e sumiu por dentro das matas e quando retornou vinha sem as botas e com a sacola vazia. O sujeito tomou o rumo do cais, embarcou e jamais retornou à cidade. Iniciou-se uma romaria de escavações à cata das tais botas, pois se acreditava que, em algum lugar, dentro delas, o espanhol havia enterrado um tesouro.

Espanhóis, tem ainda aqueles três que surgiram do nada e que se instalaram em uma casinha da Rua da Praia. Mal falavam a língua da terra. Ninguém sabia ao certo o que eles faziam. Eram retraídos, porém eram gentis. Do mais sociável dos três, as moças fugiam nos bailes, pois dançava de mãos espalmadas, como um camponês catalão.

E tem muito mais que talvez eu continue contar a vocês, em outra crônica. Porque nunca se deve deixar de contemplar o mistério das lembranças de uma criatura. Ainda que venham impressas sobre uma página quente.

A GAZETA Vitória (ES), 10 de julho de 2011.

sábado, 9 de julho de 2011

BETHÂNIA e JOSÉ RÉGIO



Poema e vídeo: minha homenagem a José Manuel Douradinha, meu amigo português e uma das pessoas mais cultas, sensíveis e inteligentes que conheço.
José Régio, ao lado de Miguel Torga, Branquinho da Fonseca e Adolfo Casais Monteiro, entre outros, é um dos integrantes do grupo "presencista" português.

CÂNTICO NEGRO
José Régio

“’Vem por aqui’ – dizem-me alguns com olhos doces,
estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: ‘vem por aqui’!Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: ‘vem por aqui’?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos? ...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém,
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe,
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: ‘vem por aqui’!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!

sexta-feira, 8 de julho de 2011

PERNOSTICIZAR



CALUDA, TAMBORINS!
Mário Lago
Caluda, tamborins, caluda!
Um biltre meu amor arrebatou.
No paroxismo da paixão ignota
Supu-la um querubim, não era assim.
Caluda, tamborins, caluda...
Soai plangentemente, ai de mim.
Vimo-nos num ror de gente
E, sub-repticiamente,
O olhar seu me dardejou.
Cáspite, por suas nédias madeixas
Que suaves endechas
Em pré-delíquio o pobre peito meu trinou.
Fomo-nos de plaga em plaga,
Pedi-lhe a mão catita,
Em ais de êxtase m'a deu.
E o dealbar de um amor
Em sua pulcra mirada resplandeceu, olarila!
Férula, ignara sorte
Solerte a garra adunca
Em minha vida estendeu!
Trêfaga ia a minha natércia,
Surge o biltre do demo,
Rendida à sua parlanda, ela se escafedeu.
Vórtice no imo trago.
São gritos avernais
Que no atro ódio exclamei.
Falena sou, desalada...
Ó numes ouvi-me: aqui del-rey!


MESTRE AURÉLIO ENTRE AS PALAVRAS
Ora, resolvi enriquecer o meu vocabulário e adquiri o livro Enriqueça o seu vocabulário que o sábio Professor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira fez, reunindo o material usado em sua página de Seleções.
Afinal de contas nós, da imprensa, vivemos de palavras; elas são nossa matéria-prima e nossa ferramenta; pode até acontecer (pensei eu) que, usando muitas palavras novas e bonitas em minhas crônicas, elas sejam mais bem pagas.
Confesso que não li o livro em ordem alfabética; fui catando aqui e ali o que achava mais bonito, e tomando nota. Aprendi, por exemplo, que a calhandra grinfa ou trissa, o pato gracita, o cisne arensa, o camelo blatera, a raposa regouga, o pavão pupila, a rola turturina e a cegonha glotera.
Tive algumas desilusões, confesso; sempre pensei que trintanário fosse um sujeito muito importante, talvez da corte papal, e mestre Aurélio afirma que é apenas o criado que vai ao lado do cocheiro na boléia do carro, e que abre a portinhola, faz recados, etc. enfim, o que nos tempos modernos, em Pernambuco, se chama calunga de caminhão. E sicofanta, que eu julgava um alto sacerdote, é apenas um velhaco. Cuidado, portanto, com os trintanários sicofantas!
Aprendi, ainda, que Anchieta era um mistagogo e não um arúspice, que os pêlos de dentro do nariz são vibrissas, e que diuturno não é o contrário de noturno nem o mesmo que diário ou diurno, é o que dura ou vive muito.
Latíbulo, gigajoga, julavento, gândara, drogomano, algeroz... tudo são palavras excelentes que alguns de meus leitores talvez não conheçam, e cujo sentido eu poderia lhes explicar, agora que li o livro; mas vejo que assim acabo roubando a freguesia de mestre Aurélio, que poderia revidar com zagalotes, ablegando-me de sua estima e bolçando-me contumélias pela minha alicantina de insipiente.
Até outro dia, minhas flores.

BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. 19 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.

MUNDO CÃO

                        

                          
MUNDO CÃO
Zeca Baleiro e Sérgio Natureza

ouço seu latido
mundo pequinês
mundo comprimido
um midas por mês

neste grande imenso pet shop
a cultura é um sabão
artigo de fim de estoque
aproveite a ocasião
mundo mundo mundo cão
mundo mundo cão

A EPIDEMIA DA BELEZA

Movidos pela vaidade, pelo menos 130 mil crianças e adolescentes submeteram-se, no ano passado, a operações plásticas.

Essa é a estimativa da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, que, em pesquisa realizada entre seus 4.000 associados, detecta o aumento a cada ano de crianças e adolescentes dispostos a entrar na faca para ficar mais bonitos.

Qual a extensão desse servilismo à estética? A situação é mais grave do que se imagina. Pesquisa quantitativa e qualitativa (conversas em grupo) feita pela MTV sobre o perfil dos jovens brasileiros de 15 a 30 anos de idade, divulgada na quinta-feira, revela uma epidemia de preocupação com a beleza física.

Em parceria com o Datafolha, a MTV perguntou aos entrevistados, por exemplo, se trocariam 25% de inteligência pela mesma proporção de beleza. Resultado: 15% foram francos o suficiente para admitir a troca. Nem se preocuparam com o fato óbvio de que a beleza física passa rapidamente, mas a inteligência fica.

Fiquei me perguntando se os jovens dispostos à troca já não teriam um QI não muito elevado. A julgar pela pesquisa, o problema não está no QI. Trata-se de um mal que afeta parte expressiva de uma geração das classes A, B e C, ou seja, da fatia da sociedade em que se inclui a elite.

O principal resultado desse perfil é ter detectado até que ponto vai a reverência exacerbada à beleza física. Convidados a definir os traços que melhor definem a atual geração, os entrevistados colocaram em primeiro lugar -e bem na frente- a vaidade. Depois, aparecem o consumismo, o individualismo e o comodismo.

Por que está ocorrendo essa "epidemia da beleza"? A resposta é óbvia -e nós, da mídia, somos, em parte, responsáveis por isso.

Há uma supervalorização da aparência. Seres anoréxicos e fúteis, quase inumanos, como Gisele Bündchen, são apresentados como padrão de beleza e de sucesso. A mídia, por sua vez, não se limita a fotografá-los, mas freqüentemente busca suas opiniões sobre os mais diversos temas, de política a transgênicos.

Dissemina-se um culto à celebridade, que dá lugar ao surgimento de uma espécie de casta na sociedade, a casta dos "famosos". E, para ser famoso, não é preciso necessariamente fazer algo de relevante -basta aparecer.

É o domínio da fugacidade. A internet, na sua extraordinária velocidade em tempo real, é a síntese tecnológica da voracidade do presente, do agora.

A pesquisa mostra, de um lado, o narcisismo entre jovens e, de outro, um ceticismo. São as duas faces de uma mesma moeda. Políticos são sempre ruins, independentemente dos partidos. Logo os governos são iguais. Na opinião de 64% dos entrevistados, o governo Lula está igual ou pior do que o de seu antecessor.
O jeito, portanto, é o salve-se-quem-puder. Se não existem utopias -e toda utopia é um pacto com o futuro- nem se acredita na política, sobra apenas a saída individual.
Até porque a mensagem predominante é a do consumismo como fonte de prazer e de realização. Vale perguntar se esse imediatismo não é um estímulo ao consumo de drogas.

As próprias relações pessoais acabam refletindo esse imediatismo individualista. "Ficar" significa namorar sem estabelecer nenhum laço emocional -laços emocionais implicam compromisso. Vale a pena reproduzir consideração dos pesquisadores da empresa Wilma Rocca & Associados, responsável pela análise dos dados do levantamento, sobre o tópico "ficar": "O próprio ficar já está derivando seu sentido para algo mais superficial, onde sentimentos, ainda que momentâneos, já chegam a estar totalmente ausentes". Servis ao ideal da beleza física, pais abrem mão da condição de adultos, como se quisessem prolongar a adolescência. Não querem ser pais de seus filhos, mas amigos. Não cobram, não dão limites, não exigem -assim como, quando eram adolescentes, não queriam cobranças paternas. O pai muito amigo é, porém, um candidato a futuro inimigo do filho. "Os filhos já evidenciam certo desconforto com a ausência da porção pai e o excesso do lado amigo", observam os pesquisadores.

O culto à futilidade é não só um transtorno individual -em que a pessoa passa a viver apenas em função do superficial e do fugaz- mas também um transtorno coletivo.

Em comparação com o levantamento realizado em 1999, houve uma redução do número de jovens dispostos a realizar trabalhos comunitários. Explicável: na lógica do narcisismo, o outro só serve de espelho. Será que essa onda vai diminuir ? Talvez.

Registraram-se, nas conversas da fase qualitativa da pesquisa, sinais de esgotamento decorrentes dessa multiplicidade de estímulos fugazes, sem laços. Começa-se a perceber que tudo, intenso e imediato, resulta em nada.

PS - Em meio a essa cultura da futilidade, tenho visto um movimento de resistência de jovens que, atentos ao que ocorre ao seu redor, estão querendo fazer a diferença. Tenho visto também escolas e educadores colocarem na prática escolar o estímulo à colaboração. Esse deveria ser o padrão de comportamento, não a exceção, numa comunidade civilizada. Podem me chamar de nostálgico, mas, se ser jovem é ficar obcecado pela beleza e viver em regime alimentar ou achar que se comunicar é ficar na frente de um computador, prefiro ser velho. Sou dos que acham que um dos bons prazeres da vida é ouvir, pessoalmente, sem tela nem terminais, conversa de gente falando das dores, delícias e encantamentos das experiências.

Gilberto Dimenstein, Folha de S.Paulo, 08-05-2005