quarta-feira, 30 de março de 2016

COMO NASCEM OS LINCHADORES



CANTORIA
Ivan Lins - Vitor Martins

 Nossa cantoria
 Nosso coração
 Nosso bloco, nossa folia
Contra a solidão

Nossa teimosia
Nossa louvação
Nosso fogo, nossa magia
Contra a escuridão

Somos a aroeira
Madeira dura de se cortar
Mesmo depois de morta, ela brota
Só pra desafiar

Somos a correnteza
Que começa num gotejar
Mesmo que se represe, ela segue
E vai transbordar o mar.



COMO NASCEM OS LINCHADORES
Por Fábio Brito

Outro dia, uma pessoa conhecida de nossa família, ao encontrar sobre uma das mesas aqui de casa um exemplar de uma inclassificável “revista”, pegou-o e, imediatamente, ao olhar a capa, que é sempre grotesca, disse-nos: “– Vocês precisam ler isto aqui”! Não perdi tempo: “– Porque sou Leitor (com inicial maiúscula), não li e não lerei esse tipo de publicação". Minha estrada de leitura, a esta altura da vida, já é considerável. Dos livros que estão em minha biblioteca, noventa por cento já foram lidos por este jovem senhor aqui. Posso e devo, portanto, prescindir da leitura de tudo o que é publicado pela imprensa marrom. Para essa pessoa que se dirigiu a mim (e para muitas, infelizmente), a tal revista não é uma revista, mas a “verdade das verdades” (nota: porque lugar de lixo é no lixo, a “bendita” revista, que não assino, não deveria estar aqui em casa e muito menos sobre a mesa. Alguém de minha casa, inadvertidamente, pegou-a na caixa de correspondência e, talvez por algum inexplicável pudor, não a atiçou, imediatamente, na lixeira. Vez em quando, insistem em deixar essa publicação aqui em casa. Desconheço o porquê). Tal publicação, vale dizer, integra o “pig” (partido da imprensa golpista), com minúsculas mesmo.  
Qual a razão de meu repúdio a certas “revistas” e a certos "jornais" (impressos ou não)? Simples: faltam-lhes jornalistas. Falta-lhes seriedade. Estou cansado de espetáculos desprezíveis cujo único objetivo é o oba-oba, a venda e o "ibope" a qualquer custo. O julgamento prêt-à-porter é a tônica dessas revistas e desses jornais, que só enxergam ruína e destruição. A imprensa precisa ser séria. E como! A mídia (o jornalismo "em particular") anda carecendo de seriedade (há exceções, lógico!). Em encontro no TUCA (Teatro da Universidade Católica) de São Paulo, a filósofa Marilena Chaui, dias atrás, foi categórica ao fazer um diagnóstico de nossa mídia. Vale transcrever um trecho de sua fala: “(...) A mídia brasileira é obscena. A mídia brasileira é um escárnio. Ela impede não só o exercício efetivo da liberdade de expressão e de direito à palavra e à expressão, como ela manipula todas as informações para produzir não a desinformação: é para produzir a falsa informação, que é muito mais grave”. Em se tratando da corrupção, por exemplo, que grassa em nosso país há muito tempo, é necessário que se tenha o máximo de seriedade nas investigações, na apuração dos fatos. Uma notícia de um fato não é um fato. Entretanto, é com as notícias de muitos fatos que boa parte da mídia vem trabalhando há tempos. E aí?
Sobre o jornalismo, especificamente, e sua esperada seriedade, a jornalista Cosette Alves, em artigo publicado em 1991, no jornal “Folha de S.Paulo”¹, chama a atenção para o fato de que a imprensa precisa ser séria ao denunciar casos de corrupção. Precisa apresentar “o máximo possível de provas”, que não podem, obviamente, ser forjadas. Para ilustrar, Alves cita o caso Watergate, nos EUA, que resultou de sérias investigações dos jornalistas do The Washington Post. Seriíssimos, tais jornalistas apresentaram fatos em lugar de insinuações, que, quase sempre, pelo menos por estas bandas, são salpicadas aqui e ali por inconformados adversários políticos. É da seriedade (jornalística também) que nasce a “saudável indignação”. Do oba-oba e do show midiático, nascem os xingamentos, a histeria, o ódio, a truculência e a alucinação. Se o jornalismo não é sério, ele vira “brincadeirinha”, atrás da qual vai uma multidão, que sai por aí espancando e matando todos que pensam de maneira contrária à sua. Nascem, assim, os linchadores.
Alguns vídeos a que andei assistindo sobre a “manifestação” do dia 13 de março deixaram-me assustado (espantado mesmo!). Na Avenida Paulista, por exemplo, um jovem de dezessete anos teve de ser escoltado por policiais até encontrar um lugar em que pudesse ficar protegido de alguns que vociferavam contra ele. O rapaz, acuado, dizia ser “contra o golpe” (o pedido de impeachment da Presidenta Dilma), mas, segundo os que o agrediam, ele estava impedido de manifestar-se. Lembrando o que disse Marilena Chaui acerca dessa manifestação do dia 13, o que vimos foi uma multidão com ódio, “sem freio e trava de segurança e que está à procura de um líder, que apareça com essa universalidade, essa transcendência e poder de unificação que impede a existência efetiva das contradições (...) e impede o que é o coração da política democrática: o trabalho dos conflitos”. 
Para completar, dias atrás, cheguei a “ler” (não tive estômago forte o bastante para concluir a leitura) alguns “textos” que andaram escrevendo sobre as passeatas em defesa da “ética e da moral” na política. Quem escreveu os tais textos não viu o mesmo que vi. Por que será? Vi pessoas bradando contra a corrupção, mas com a moral “toda enterrada na lama”². É muita cretinice! Gente que só não é mais corrupta por falta de espaço e oportunidade empunhando bandeira para “salvar” o país dos políticos. Deus meu! Tente subornar esse povo! Tente! Sou capaz de apostar no seguinte: segurando a “bandeira da moral” com uma das mãos, o calhorda vai aceitar o suborno com a outra. Claro! Corrupto é só o vizinho. Corrupto é só o político.
Voltando ao que disse Chaui, a multidão que saiu às ruas pedindo o fim da corrupção está à procura de um líder, uma salvador da pátria. Olhando a história de nossos salvadores, fica evidente, para mim, que, no cenário político brasileiro atual, redesenha-se, mais uma vez, “o mito do sebastianismo”. Essa multidão, como frisa Chaui, “não está articulada a nenhum movimento social, popular e partido político”. Só está a fim de um “salvador”, um novo D. Sebastião. Ergue-se, então, um grande manicômio, que já nasce superlotado. Fanáticos não faltam. E esses fanáticos – tentando ser bem gentil em minhas observações - são moldados, não raro, por uma mídia irresponsável, que finge não saber que está fomentando o ódio, a loucura e o desrespeito total e irrestrito. O povo, para essa mídia, não passa de “massinha de modelar”.  
É triste constatar que, na mídia, o número de gente fútil, vazia, despreparada é estarrecedor (há honrosas exceções, volto a frisar!). E esse pessoal sem preparo está capitaneando um barco perigoso: o que se vê, hoje, nada mais é do que uma gigantesca uniformização, uma alienação gritante e uma total incapacidade de criticar. Nesse cenário em que a identidade está em crise, assiste-se ao triunfo do lixo midiático e ao espetáculo da TV dominando simbolicamente as pessoas. Tal domínio se dá, muito claramente, por meio do sensacionalismo, que é só o que grande parte da mídia sabe fazer. Se falta profundidade e se há uma completa desconstrução de uma cultura consistente, posso dizer, por exemplo, que, com exceções, “jornalista raso”, hoje, é pleonasmo. Qual terá sido o critério de seleção desse povo? Desconheço completamente. Não dá para escolher um pessoal que lê, que estuda de fato, que pondera, que sabe argumentar, que é sensato?
Ainda fico espantado (graças a tudo, ainda não perdi o espanto e a perplexidade) com o nível a que chegou certa parcela do jornalismo aqui no Brasil. Se alguém quiser saber como muitos jornalistas andam escrevendo, é fácil: com os textos em mão, vá ao “Google”, o “oráculo” da maioria, e “veja com os olhos” que, um dia, alimentarão minhocas ou a cremação transformará em pó: não escrevem nada! Simplesmente copiam um trechinho aqui, um fragmento acolá e, como se fosse de sua autoria, publicam o tal “texto”, que é uma baita colagem. Ninguém vê isso na redação (ou finge que não vê). Quem deveria ver não sabe nada também. Simples assim. Ergue-se, então, o império da hipocrisia: fulano finge que escreve, beltrano finge que o que fulano escreve é bom. Estamos combinados? Não! O problema maior é que quem lê não vai fingir. Vai, sim, acreditar em tudo o que está ali. Se “deu no jornal”, camarada, virou lei. Quando esses pseudojornalistas fazem barba, sou capaz de jurar que, em vez de pelos, sai puro pó de serra.  
 Se a mídia é tão irresponsável a ponto de incitar uma nação a odiar certas pessoas, o que faremos com os “linchadores” que ela cria e também nos quais ela se transforma? Para muitos, linchadores são apenas delinquentes que merecem punição severa. Os cidadãos de bem e cumpridores da lei - mesmo guiados por ódio e preconceito, "dando de ombros" para suas ações e atropelando a justiça - não são linchadores: são apenas pais de família que pagam seus impostos (nem sempre em dia). A massa que tem saído às ruas clamando por justiça acha (“teoria do achismo” mesmo) que está acima da lei. Tem, portanto, direito de desrespeitá-la. O que tenho visto não é nada menos que fascismo. Como li dias atrás, “a pata viscosa e pestilenta do fascismo” está nas ruas e nas redes sociais. Querem exemplos de atitudes fascistas? São muitos! Nas redes sociais, então...
 Dia desses, uma amiga chamou minha atenção para uma postagem no Facebook que mostrava a Presidenta Dilma vestida de governanta. O texto escrito era este: “Uma coisa é certa: a presidente que exigia ser chamada de presidenta, deixa de ser governante para ser governanta.” (o uso incorreto da vírgula depois de “presidenta” está no texto original. Porque gosto de respeito, não o alterei. Deve ser "estilo"). Pausa para uma pequena digressão: aos que ainda implicam com o termo “presidenta”, devo dizer que ele está corretíssimo! Esse feminino é absolutamente correto, como afirma Luiz Antonio Sacconi em Não erre mais. Tão correto como parenta, ajudanta e hóspeda. Pior do que desconhecer o feminino “presidenta” (muitos insistem em negar a força feminina!), é a divisão de classes que, infelizmente, ainda é gritante aqui no Brasil. No subtexto dessa postagem, governanta é uma profissão menor, exercida por uma classe inferior. Apenas os bem-afortunados patrões das governantas, que vivem nos shoppings da vida e não saem da Disney, pertencem a uma classe superior (a classe média se acha a burguesia...). Pois é, para “diminuir” a Presidenta, a partir de agora, é só “vesti-la” de governanta. Ou melhor: por que não a vestir de “empregada doméstica”? Seria mais engraçadinho e jocoso, principalmente agora, quando todos estão demitindo suas “escravas do lar”. É... agora, elas têm direitos! No entanto, com os direitos assegurados, as despesas dos patrões (pobres patrões!) aumentaram “muito”! Assim, está difícil pagar mais às domésticas... Ufa! Sem dó ou piedade, a pata do fascismo pisoteia tudo o que encontra pela frente, principalmente pessoas que pensam. Salvemo-nos!

¹ Mil e uma noites, Cosette Alves, Folha de S.Paulo, 12 jul. 1991.
² Lama: composição de Mauro Duarte  e sucesso na voz de Clara Nunes (“Canto das três raças”, 1975). 


Apesar de você
Chico Buarque

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar

Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal