sexta-feira, 9 de maio de 2014

"É PRECISO CANTAR"... E CONTAR








                                                           Fotos: Fábio Brito

        "É PRECISO CANTAR"... E CONTAR
        Ao amigo Marcos Lúcio, que, assim como eu, é "devoto" da Ithamara...

        Por Fábio Brito                       
“Simplesmente a melhor cantora brasileira e uma das melhores do mundo. Ithamara tem uma enorme extensão vocal, o que é raro. Isso sem contar a interpretação e a beleza cristalina da voz, que são únicas."
Mario Castro-Neves
"E no entanto é preciso cantar / Mais que nunca é preciso cantar / É preciso cantar e alegrar a cidade"
Vinicius de Moraes / Carlos Lyra

            Mais uma vez, a universal voz de Ithamara Koorax comoveu e encantou o público que, dia 3 de maio, compareceu ao Horse’s Neck, um dos aconchegantes bares do hotel Sofitel de Copacabana, no Rio, para assistir a mais uma das arrebatadoras apresentações dessa diva do jazz, do clássico e da MPB. Nestes tempos cinzentos, em que a velha MPB cedeu espaço à “música ‘pra’ pular (e gritar) brasileira”, ouvir uma cantora/intérprete do porte Ithamara é um privilégio.
Com uma camiseta que trazia estampada a imagem de Dave Brubeck, Koorax, uma das melhores cantoras de jazz do mundo, segundo a revista Down Beat, apresentou mais um ‘show’ impecável. Acompanhada de Lulu Martin nos teclados, Jaime Aklander no contrabaixo e dirigida por Arnaldo DeSouteiro, um de nossos melhores produtores, se não o melhor, Ithamara encantou-nos, mais uma vez, com sua arte maior e sua privilegiadíssima voz. Muitas foram as canções que deixaram em êxtase o público que lotou o Horse’s Neck.
Meditação (Tom Jobim / Newton Mendonça) abriu a noite. E que noite! Com a delicadeza de que sempre lança mão para interpretar esse clássico da Bossa Nova, nossa estrela, já de início, foi de uma precisão incrível, de metrônomo mesmo, mas sem abandonar a emoção. Enquanto interpretava, ela “pousava” de nota em nota. Puro deleite.
Sem sair da trilha da emoção, eis que Ithamara nos traz outro clássico a que ela sempre recorre: All of me / Disse alguém (Seymour Simons / Gerald Marks – Haroldo Barbosa), garimpada do repertório de Billie Holiday e também gravada por Frank Sinatra. Impossível não lembrar que João Gilberto, um dos incontestáveis gênios da Bossa Nova, também ‘a’ registrou. É só conferir o disco Brasil, lançado em 1981. Nessa canção, Ithamara nos diz, melhor do que todos, que, no coração, há mesmo “um salão dourado onde o amor descansa”. Convence-nos perfeitamente disso! 
 Outro belo momento – e todos o são, claro! – é quando ela nos presenteia com mais um clássico: Um homme et une femme (Francis Lai / Pierre Barough), que está no álbum Serenede in blue – my favorite songs, o qual, segundo a própria Ithamara, abriu-lhe as portas (e as janelas) do mercado internacional. Inegavelmente, essa canção antológica da dupla Barough / Lai é de uma beleza ímpar, e Ithamara a interpreta com o coração na garganta.  
Na sequência, eis que nos chega Lugar comum (João Donato / Gilberto Gil), que é, para mim, uma canção bastante imagética. Na interpretação de Ithamara, conseguimos “ver”, perfeitamente, as imagens que a letra evoca: o fundo azul, o vento soprando, o fogo do Sol. Vale – e como! – recordar alguns de seus belos versos: “Beira do mar / Lugar comum / Começo do caminhar / Pra beira de outro lugar / Beira do mar / Todo mar é um / Começo do caminhar / Pra dentro do fundo azul (...)”. Lembrando outra canção da nobre parceria Donato / Gil, posso dizer que, depois de Lugar comum, “a paz invadiu o meu coração”.
E é apascentados que também nos chegam os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle: Samba de Verão foi a próxima canção da noite. Com letra contagiante e melodia idem, é impossível não sairmos assoviando-a, dias e dias seguidos, depois de ouvirmos a interpretação de nossa diva: “Você viu só que amor / Nunca vi coisa assim / E passou, nem parou / Mas olhou só pra mim / Se voltar, vou atrás / Vou pedir, vou falar / Vou dizer que o amor / Foi feitinho pra dar / Olha, é como o verão / Quente o coração (...)”. Resistir?! Quem há de?
Ainda dos irmãos Valle, Preciso aprender a ser só é, sem dúvida, a canção mais conhecida da dupla. Inúmeros intérpretes a gravaram, como Flora Purim, por exemplo, que a registrou em um disco excelente gravado em 1964, “Flora é M.P.M”. Ithamara, como sempre, deu sua inconfundível assinatura a mais esse clássico. Uma perfeição. 
Em nada destoando do universo de Marcos e Paulo Sérgio Valle, All Blues, da lenda Miles Davis, recebeu um auxílio luxuoso: como o fez noutras vezes, Jaime Aklander explicou o porquê de essa canção ser tão importante, principalmente para os apaixonados pelo jazz. E a interpretação foi refinadíssima, como a canção pede. Mais um banho de nossa diva.
Na sequência, Koorax nos mostra que é hora de outra lenda ‘se’ fazer presente: o “papa” João Gilberto, de quem ela e DeSouteiro escolheram Bim Bom, que deu nome ao disco que ela gravou com Juarez Moreira. Bim bom: the complete João Gilberto songbook já ganhou o mundo. É mais uma obra-prima que continua abrindo muitas portas para Ithamara no mercado internacional.
Se “João” é um dos gênios da Bossa Nova, um dos mais importantes “movimentos” da MPB, o outro é, sem a menor dúvida, Tom Jobim. E são de nosso “maestro soberano” as canções seguintes, Lígia, que abre um dos mais belos discos de Ithamara, o Love dance, e Ela é carioca, esta em parceria com Vinicius de Moraes, o "Poetinha". Embora sejam canções bem conhecidas – porque presentes no repertório de muitos artistas – elas são sempre novas na interpretação de Koorax. Por mais antiga e regravada que seja uma canção, Ithamara consegue imprimir-lhe um quê de novidade que nos arrebata e nos deixa certos de que ela fez uma escolha acertadíssima.
Encerrando a primeira parte do espetáculo, ou encerrando o primeiro ‘show’, é a vez de Never can say goodbye (Clifton Davis), que está em Go to be real, álbum aclamadíssimo no exterior. A languidez de Ithamara nessa canção é algo impressionante.  
Fotografia (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), que é, junto com Corcovado, minha canção preferida do Jobim, abre a segunda parte do espetáculo. Ouvi-la com Ithamara e de frente para a “Princesinha do mar” é inebriante. Não dá para narrar. Só vendo... e ouvindo com a alma.
Novamente, Ithamara visita a obra dos irmãos Valle, Pigmalião 70, que também conta com Novelli na parceria. Da trilha da novela homônima de Vicente Sesso, apresentada exatamente em 1970, a canção foi interpretada por Ithamara como uma homenagem ao ator Marcos Paulo, um dos galãs dessa novela, e ao músico José Roberto Bertrami, que integrou o lendário grupo Azimuth. Ambos nos deixaram não faz muito tempo. Vale lembrar que essa canção está no Go to be real.
Composta um pouquinho antes de 1970, eis que nos chega Sabiá (Tom Jobim / Chico Buarque), que Ithamara não canta há vinte e um anos. Ela a gravou em seu primeiro disco, “It(h)amara Koorax ao vivo – com Paulo Malaguti e Maurício Carrilho”, de 1993. Essa obra de arte ganhou, no ‘show’, uma interpretação mais contida, mas igualmente linda, se comparada ao primeiro registro. Esse clássico venceu, em 1968, o “III Festival Internacional da Canção Popular”. Como esquecer os versos refinados de Chico e a melodia transcendental de Jobim?
Refinamento também é o que não falta à próxima canção: Baubles, Bangles and Beads (Wright / Foorest / Borodine). Gravada por Eliane Elias em Dreamer e por vários outros artistas, está ainda em Francis Albert Sinatra e Antonio Carlos Jobim: the complete reprise recordings. Pouco conhecida em sua voz, é mais um item requintado de um repertório internacional que Ithamara sabe pinçar como ninguém. Está aí uma criação original, totalmente pessoal. Pura genialidade...
Bem mais conhecida, porém, é Que maravilha, uma das canções mais lembradas, ao lado de Mas que nada e País tropical, de nosso Jorge Ben(jor). Sempre que Ithamara a interpreta, não posso deixar de exclamar: “- Que maravilha!”. É sempre um prazer viajar “no” ritmo e na musicalidade de Koorax nessa canção, que sempre conta com o acompanhamento do público.
Em seguida, é tempo de mais maravilhas. Recado Bossa Nova (Djalma Ferreira / Luís Antonio), de Wave 2001 – Bossa Nova Songbook, é uma das canções de que mais gosto na voz de Ithamara. Letra, melodia e interpretação casam-se perfeitamente. Não me canso de dizer que adoro esta bela metáfora: “Saudade, meu moleque de recado / não diga que eu me encontro nesse estado”. Falar em saudade é também falar em amor, amor, um tema inesgotável.
Na voz de Ithamara, esse sentimento é redimensionado e ganha contornos de algo sagrado. A canção Setembro (Amada) (Ivan Lins / Gilson Peranzzetta / Vitor Martins), por exemplo, é prova disso: “Vai, amada / Mesmo a vida sendo perigosa / Mesmo que não seja um mar de rosas / Nunca queira desistir de um grande amor (...)”. Está em “O grande amor”, um CD premiadíssimo. Nos EUA, por exemplo, recebeu quatro estrelas e meia da revista Down Beat de maio de 2011. Raríssimos artistas conseguem tal proeza. No ‘show’, Ithamara interpretou-a a capela, o que não é para qualquer um. Poucos intérpretes atrevem-se a dar um salto assim, sem redes. Só os gênios o fazem.  
Logo em seguida, é a vez de Zum-Zum (Fernando Lobo / Paulo Soledade), uma marcha que, em 51, fez sucesso na voz de Dalva de Oliveira e homenageou Carlos Eduardo de Oliveira, carnavalesco e comandante da Panair, falecido um ano antes em decorrência de um acidente de avião. Sempre que Ithamara a canta, o público a acompanha com muito entusiasmo. De fato, a letra e a melodia são contagiantes.
Voltando ao universo jobiniano, chega-nos Insensatez (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), que é uma das mais requintadas canções da profícua parceria Jobim / Moraes. É deslumbrante ouvi-la com Ithamara! “A insensatez que você fez / Coração mais sem cuidado / Fez chorar de dor o seu amor / Um amor tão delicado (...)”. Dizer mais o quê?
Sem sair da seara do mestre Jobim, brindemos a chegada de Corcovado (Tom Jobim / Vinicius de Moraes). Ithamara gravou-a em “A Casa da Bossa”, com o extraordinário grupo “Os Cariocas”. Desnecessário eu dizer que, quando nossa diva a interpreta, fico à flor da pele, porque a interpretação é delicada ao extremo.
Quase fechando a noite, é a hora e a vez de Got To Be Real. Sempre ao fim dessa canção, quando atinge agudos inimagináveis, Ithamara comprova, mais uma vez, que sua voz é um instrumento valiosíssimo, daqueles que têm de ser muito bem cuidados, porque voz assim só aparece a cada cem anos... e olhe lá! Sua exuberância vocal nessa canção – e em muitas outras – leva-nos, imediatamente, a algumas outras divas, como a peruana Yma Sumac e sua “voz de sino”.
Fechando a noite, um momento ‘pra’ lá de solene e que pede, portanto, silêncio absoluto: Ária na corda sol da suíte nº 3 (Johann Sebastian Bach). Do repertório clássico de Koorax, essa canção sempre ‘me’ comove. Às primeiras notas, já preparo meu coração para as coisas que Ithamara vai “contar”. Durante a interpretação, não escutamos um ruído sequer. Respiração suspensa de todos...
E por falar em “contar”, lembrei-me de um depoimento – excelente, por sinal - de Ivan Lins para o DVD “Elis por eles”. Para falar da excelente intérprete que foi (que é) a inesquecível Elis Regina, Lins narra um episódio envolvendo a atriz Romy Schineider e o diretor de cinema Luchino Visconti. Este, depois de ouvi-la cantar, disse-lhe que ela havia cantado muito bem, mas não “contou” (uma história). Ou seja, não interpretou. Elis, ao contrário, sabia – e como! - cantar e “contar”. Ithamara, assim como Elis, consegue unir uma técnica raríssima a uma interpretação de altíssimo nível. Ou seja, ela canta e “conta” extraordinariamente bem. É uma intérprete rara. É única.   
Pois é, são muitos os aspectos que fazem de Ithamara uma cantora/intérprete única no cenário da música no mundo. A dramaticidade de suas interpretações, a técnica apuradíssima e a "leitura" exata das canções são alguns desses aspectos. Não só ouvimos, mas “vemos” e sentimos tudo o que ela canta, porque a voz não é só a da cabeça, mas a “do corpo todo”, como eu já disse noutros textos. Na escolha do repertório, ela também é impecável. Jamais tropeçou. Nunca se vendeu ao sucesso fácil ou fez concessões.
 Depois de ouvirmos Ithamara, temos a certeza de que o Ministério da Saúde deveria advertir: ouvir boa música faz bem à saúde... da alma, principalmente. Mais uma vez, obrigado, Ithamara, por sua voz abençoada por todas as divindades. Obrigado por seu carinho. Obrigado por sua existência tão plena.
                                                    SABIÁ
Tom Jobim / Chico Buarque

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
Cantar uma sabiá

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
Cantar uma sabiá


CORCOVADO
Tom Jobim

Um cantinho, um violão
Esse amor, uma canção
Pra fazer feliz a quem se ama
Muita calma pra pensar
E ter tempo pra sonhar
Da janela vê-se o Corcovado
O Redentor, que lindo!
Quero a vida sempre assim
Com você perto de mim
Até o apagar da velha chama
E eu que era triste
Descrente desse mundo
Ao encontrar você
Eu conheci o que é felicidade
Meu amor

Songbook Antonio Carlos Jobim - vol. 3; Lumiar; LD 04/96; 


INSENSATEZ
Tom Jobim / Vinicius de Moraes

A insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor
O seu amor
Um amor tão delicado
Ah, porque você foi fraco assim
Assim tão desalmado
Ah, meu coração quem nunca amou
Não merece ser amado

Vai meu coração ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade
Vai, meu coração pede perdão
Perdão apaixonado
Vai porque quem não
Pede perdão
Não é nunca perdoado


ELA É CARIOCA
Tom Jobim / Vinicius de Moraes

Ela é carioca
Ela é carioca
Basta o jeitinho dela andar
Nem ninguém tem carinho assim para dar

Eu vejo na cor dos seus olhos
As noites do Rio ao luar
Vejo a mesma luz, vejo o mesmo céu
Vejo o mesmo mar

Ela é meu amor, só me vê a mim
A mim que vivi para encontrar
Na luz do seu olhar
A paz que sonhei
Só sei que sou louco por ela
E pra mim ela é linda demais
E além do mais
Ela é carioca
Ela é carioca
MORAES, Vinicius de. Vinicius de Moraes: poesia completa e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

MEDITAÇÃO
Tom Jobim / Newton Mendonça

Quem acreditou
No amor, no sorriso, na flor
Então sonhou, sonhou...
E perdeu a paz
O amor, o sorriso e a flor
Se transformam depressa demais

Quem, no coração
Abrigou a tristeza de ver
Tudo isto se perder
E, na solidão
Procurou um caminho e seguiu
Já descrente de um dia feliz

Quem chorou, chorou
E tanto que seu pranto já secou

Quem depois voltou
Ao amor, ao sorriso e à flor
Então tudo encontrou
Pois, a própria dor
Revelou o caminho do amor
E a tristeza acabou



PRECISO APRENDER A SER SÓ
Marcos Valle / Paulo Sérgio Valle

Ah! se eu te pudesse fazer entender
Sem teu amor eu não posso viver
E sem nós dois
O que resta sou eu
E assim, tão só
E eu preciso aprender a ser só
Poder dormir sem sentir teu calor
E ver que foi só um sonho e passou
Ah! o amor quando é demais
Ao findar leva a paz
Me entreguei sem pensar que a saudade existe
E se vem é tão triste
Vê, meus olhos choram a falta dos teus
Estes teus olhos que foram tão meus
Por Deus entenda
Que assim eu não vivo
Eu morro pensando no nosso amor

Songbook Marcos Valle - vol. 2; Lumiar Discos; LD 3904/98.


"Cantar: / É mover o dom / Do fundo de uma paixão / Seduzir / As pedras, catedrais, coração"
Djavan