domingo, 14 de dezembro de 2014

APOTEOSE

Foto: Fábio Brito





Foto: Fábio Brito 

       
APOTEOSE
Por Fábio Brito
Sobre ‘show’ de Ithamara Koorax no “Santo Scenarium”...
                Um santuário é um lugar de segredos. Para Fílon, entrar num santuário equivale a adentar os mistérios divinos. Trata-se de um local praticamente intocável, que guarda tesouros essenciais.
E foi exatamente num santuário que entramos dia 29 de novembro: o Santo Scenarium. Localizado estrategicamente na Rua do Lavradio, na mítica Lapa, na mais encantadora das cidades brasileiras, o Rio de Janeiro, esse restaurante é um maravilhoso espaço com ótima gastronomia e onde reinam o jazz e a música instrumental. Na companhia de muitas imagens e pinturas de santos, quem lá compareceu teve a oportunidade de avaliar uma vez mais a real dimensão da importância de Ithamara Koorax no cenário da música no mundo. Em verdade, a apresentação foi mais que um show: foi um espetáculo!, como todos que ela vem apresentando ao longo de sua iluminada carreira, iniciada oficialmente em 1993 com o disco “It(h)mara Koorax ao vivo – com Maurício Carrilho e Paulo Malaguti” (em sua edição japonesa, esse disco foi batizado de “Luiza”, canção do mestre Jobim que integra o repertório).
Desta vez, para acompanhá-la, Koorax convidou três músicos com larga experiência: César Machado (bateria), Jorjão Carvalho (baixo) e Reinaldo Arias (teclados). Lembrando um pouco a trajetória desses três mestres, é imprescindível dizer, por exemplo, que Carvalho participou do "Love dance", gravado por Ithamara em 2003: seu baixo extraordinário está na faixa "Man Alone" (Luiz Bonfá), da qual também participam o próprio Bonfá, John McLaughlin, Nelson Angelo (pianista e arranjador), João Palma, Sidinho Moreira, José Carlos "Big Horn" Ramos, Bigorna, J. C. Ramos e Zé Carlos;  Arias, junto com Cazuza, é coautor do clássico "Codinome Beija-flor", gravada pelo próprio Cazuza e pelo extraordinário Luiz Melodia; Machado é um dos fantásticos músicos do “Autumn in New York & Jurgen Friedrich Trio”, de 2004. Além desses competentísimos músicos, há um quarto: a própria Ithamara, cujo instrumento é a soberana voz. A integração, a harmonia entre cantora/intérprete e músicos é algo impressionante, que ficou comprovado durante todo o espetáculo, da primeira à última canção.
 Sabemos que o jazz prima pela improvisação instrumental, que é uma de suas grandes marcas. No momento em que interpretou “Mas que nada” [Jorge Ben(jor)], por exemplo, fechando a primeira parte do espetáculo e comprovando o perfeito entrosamento entre ela e os músicos, Ithamara, com “todos os sons na garganta”, improvisou como nunca com seu “instrumento” e respondeu, com  precisão, a todas as “provocações” de César Machado. Foi um “dueto/duelo” inebriante. Ambos os “músicos” estavam em momento iluminado. Certamente, Ithamara é capaz de compor duos com qualquer instrumento musical, até com bateria, como ficou provado nesse 'show'. À semelhança de Yma Sumac, ela consegue, de maneira impressionante, atingir umas oitavas acima, transformando em puro deleite suas apresentações: não há quem não fique boquiaberto com tanta exuberância vocal. No momento do duo com a bateria de Machado, foi inevitável não nos lembrarmos de outros dois “duetos/duelos” inesquecíveis de nossa MPB: entre Elis, nossa “Pimentinha”, e Hermeto Paschoal, nosso adorado “Bruxo”, no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, em 1979, e entre Gal e a guitarra de Robertinho de Recife em “Meu nome é Gal” (Erasmo Carlos / Roberto Carlos), do disco “Gal Tropical”, também de 79. Tanto Ithamara quanto Gal e Elis são cantoras/intérpretes raras e estão entre as melhores do mundo de todos os tempos.
Ainda na primeira parte do ‘show’, uma das grandes surpresas trazidas por Koorax – um belo presente para seus fãs – foi a interpretação, “pessoal e intransferível”, de “Primavera [Vai, chuva]” (Cassiano / Sílvio Rochael), gravada por Tim Maia em 1970 e que estará no próximo CD da estrela. Para muitos cantores, ir ao baú e resgatar um sucesso popular como esse acaba sendo um risco, uma vez que, não raro, o que se constata é apenas uma reles imitação do original, o que nos leva a pensar nos cantores de churrascaria, que temos aos montes! Em se tratando de Ithamara, o que se vê é um trabalho de recriação. Foi outra a canção que ouvimos: foi uma “Primavera” com a ‘assinatura Ithamara’, com seu estilo inconfundível e sua voz inigualável. Suas interpretações, aliás, são todas, sem exceção, originais e preciosas.
 “Autumn in New York” (Vernon Duke), que também esteve na primeira parte do show, é do disco “Autumn in New York & Jurgen Friedrich Trio”, de 2004, que citei anteriormente. Dedicada, no CD, a Ella Fitzgerald e Nelson Riddle, é simplesmente uma canção sublime. Não há outra palavra. Aliás, o CD é sublime. Produzido por Arnaldo DeSouteiro, é, sem dúvida, um dos melhores trabalhos de Koorax e que também conta com o talento de César Machado. Riqueza harmônica e originalidade melódica estão aí. É só comprovar. Ouvir Koorax interpretar essa canção ao vivo, e num santuário, é como ir ao céu.
Outra viagem ao céu foi “Amor em Jacumã” (Dom Um Romão / Luiz Ramalho), que está em “Tributo à Stellinha Egg” (e “Brazilian Buterfly”). Mesmo não sendo muito recorrente nos espetáculos de nossa diva, é uma bela canção que exige, além de muito ritmo (seu senso rítmico é algo incomum), velocidade e inteligência interpretativa, atributos que Koorax tem de sobra. Foi um dos pontos altos da noite (e todos 'o' foram). Aliás, vale, aqui, um breve comentário: por meio dessa canção, Koorax foi apresentada a Reinaldo Arias: Dom Um Romão, outro mestre e um dos autores, comentou que Arias foi um dos primeiros a gravar essa canção... ainda nos anos 70, quando ele liderava um grupo chamado "Cravo e Canela". A preciosidade está no LP "O preço e cada Um", já relançado na Europa e no Japão. The shadow of your smile (Johnny Mandell / Paul F. Webster), Une home et une femme (Francis Lai / Pierre Barouh), Que maravilha [Jorge (Ben)jor / Toquinho], Bim bom (João Gilberto), Never can say goodbye (Clifton Davis), entre outras obras-primas, completaram a primeira parte do espetáculo.
Abrindo o segundo momento da noite, nada melhor do que a Lenda do guaraná, que eu ainda não conhecia e que integra um projeto de Arias sobre as lendas amazônicas. Foi outro destaque dessa segunda parte. Se os deuses derem uma mãozinha, tal projeto virará CD, que, se tiver a participação de Ithamara, estará, certamente, entre os melhores trabalhos de todos os tempos já produzidos aqui no Brasil.
E por falar em destaque, há que se dar relevância a outra canção muito importante que também integrou a segunda parte do 'show'. DeSouteiro e Koorax trouxeram de volta “A rã”, que adoro e é perfeita, é sob medida, para a voz number one deste país. Com Ithamara, ouvi-a pela primeira vez em “Elas cantam Caetano Veloso”, CD lançado pela Continental em 1994. De longe, é a melhor faixa do disco. No ano seguinte, essa canção integrou a trilha da novela “Cara & Coroa”. Bingo! Quem disse que Koorax não canta hip hop? Canta, sim, mas a grife é “Donato & Veloso & Koorax”. É, caros amigos, o verdadeiro intérprete também é coautor, e poucos ‘o’ são nestes tempos de cantantes que, sem talento, só têm olhos para o mercado. Mercado barato, que só promove o que há de pior, diga-se de passagem.
“All blues”, da lenda Miles Davis, foi outro momento esplêndido: quando a ouvimos, comprovamos o talento exuberante de Arias, que solou divinamente. Koorax, como sempre, impressionou deveras. “Taí” uma canção sofisticada, que não é para qualquer um. "Human nature" (John Bettis / Steve Porcaro), do disco "Thriller", de Michael Jackson, também foi outro destaque, que contou com improvisos fantásticos de Koorax ao adicionar trechos de "A-Tisket, A-Tasket" (Ella Fitzgerald / Van Alexander), "A carrocinha pegou" e "Dona Baratinha". Love for sale (Cole Porter), Ela é carioca (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), Hô-bá-lá-lá (João Gilberto) e Recado bossa nova (Djalma Ferreira / Luís Antonio) completaram o quadro de preciosidades que desfilaram pela voz número um do Brasil na segunda parte de um espetáculo raro. Encerrando a noite, uma bela homenagem ao Sivuca, "Ain't no sunshine" (Bill Withers), o maior sucesso internacional desse que é, há décadas, um de nossos mais aclamados músicos.
Depois de termos ido ao NIRVANA com esse show espetacular, ficam as palavras de Lorenzo Mammì, ao afirmar que o “jazz rejuvenesce a cada volta do giro harmônico, porque ele faz o tempo – é um triunfo sobre o tempo”¹. Trata-se de uma música atemporal, que, heroicamente, sobrevive a todos os modismos e a todas as cafonices. Ithamara e seus músicos são a prova inconteste de que o jazz, de fato, triunfa sobre o tempo. No Santo Scenarium, esse quarteto “fez” o tempo, reinventou-o, redesenhou-o com os melhores contornos. Já assisti a muitos shows de Koorax, todos deslumbrantes, mas esse aí, ouso dizer, foi o melhor. Foi apoteótico!
¹ Uma promessa ainda não cumprida, artigo de Lorenzo Mammì (Folha de S. Paulo, caderno “mais!”, 10 de dezembro de 2000).

SOLAR
Minha mãe cozinhava exatamente:
Arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.
Mas cantava.

Prado, Adélia. O coração disparado. 4.ª edição. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.

QUALQUER MÚSICA

Qualquer música, ah, qualquer,
Logo que me tire da alma
Esta incerteza que quer
Qualquer impossível calma!

Qualquer música – guitarra,
Viola, harmônio, realejo...
Um canto que se desgarra...
Um sonho em que nada vejo...

Qualquer coisa que não vida!
Jota, fado, a confusão
Da última dança vivida...
Que eu não sinta o coração!

Pessoa, Fernando. O eu profundo e os outros eus. 13.ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

“Que significa o jazz para mim? A alegria de se comunicar além das palavras, pela mais pura criação coletiva surpreendida no seu nascedouro. A convivência incorruptível, a comunhão através do som. Eles, quando estão tocando, falam uma linguagem que é a minha e que eu gostaria de poder falar. Sérgio Porto me inicou no jazz de Chicago (Muggzy Spanier, George Brunis). Lúcio Rangel me iniciou em Armstrong (Hot Five). Jorginho Guinle ia às últimas de uma raridade em solo de clarineta (Hohnny Dodds). Em Belo Horizonte, Eloy Lima ouvia The Pearls (Wilbur de Paris), no Rio José Sanz ouvia The Pearls (Jelly Roll Morton). No Paraguai, o Conselheiro Tabajara trauteando Perdido (Johnny Hodges), ao som da vitrola. E Sílvio Túlio Cardoso escrevendo, Paulo Santos irradiando. O próprio Vinicius, no limiar da bossa nova, indo às origens do blues (Jimmy Yancey), Hélio Pellegrino no meio da noite pedindo pelo amor de Deus que tocássemos Body and Soul (Colleman Hawkins). Narceu de Almeida em Londres, siderado pela clarineta de George Lewis. José Guilherme Mendes, no Leblon, envolvido pelo sax de John Coltrane.”
Sabino, Fernando. Gente. Rio de Janeiro: Record, 1996.

PRIMAVERA (Vai, chuva)
Silvio Rochael / Cassiano

Quando o inverno chegar
Eu quero estar junto a ti
Pode o outono voltar
Eu quero estar junto a ti

Porque (é primavera)
Te amo (é primavera)
Te amo, meu amor

Trago esta rosa (para lhe dar)
Meu amor

Hoje o céu está tão lindo (vai, chuva)
É primavera...
Hoje o céu está tão lindo (vai, chuva)
É primavera...

Fonte: CD Tim Maia (1970). Universal, 2010.

sábado, 1 de novembro de 2014

ITHAMARAVILHA


Foto: Fábio Brito

ITHAMARAVILHA
Por Fábio Brito
Ao amigo Marcos Lúcio, também “kooraxnático”.

“Se é verdade que cada música tem sua alma, essa admirável cantora tem o dom de criar uma voz que parece ter nascido com a alma da própria canção.”                               Armando Nogueira

Sofitel, Rio de Janeiro, início da primavera e uma lua prateada saindo do mar de Copacabana. “Taí” o cenário ideal para mais um ‘show’ da temporada de lançamento de "Ithamara Koorax - Sings Getz/Gilberto", no Horse's Neck, da diva Ithamara Koorax, que, há anos e indisputavelmente, ocupa o posto de melhor cantora do Brasil e uma das melhores do mundo. Quando Jaime Aklander (contrabaixo) e Lulu Martin (teclados), os músicos que a acompanham, deram os primeiros acordes, foi impossível não lembrar Fernando Pessoa: “Ah, toca suavemente / como a quem vai chorar / qualquer canção tecida / de artifício e luar (...)”.
            E a primeira canção da noite, “tecida de artifício e luar”, foi exatamente “Fotografia”, do maestro Tom Jobim, um dos mais importantes músicos que o mundo já viu/ouviu, e Vinicius de Moraes, nosso eterno “Poetinha”: “Eu, você, nós dois / aqui neste terraço à beira-mar / (...) E uma grande lua saiu do mar (...)”. Com sua letra carregada de belas e expressivas imagens, essa canção, uma de minhas preferidas (ao lado de “Corcovado”) da extensa, sofisticada e nobre safra jobiniana, ganhou de Ithamara uma interpretação leve, delicada, como penso que deve ser a leitura desse clássico. Foi o tapete vermelho de que o espetáculo precisava. Por ele, desfilou um repertório irretocável a cargo do extraordinário produtor Arnaldo DeSouteiro. A noite enluarada prometia muito mais que um espetáculo nobre e refinado: prometia coração na garganta.
             “All of me / Disse alguém” (Seymour Simons / Gerald Marks – Haroldo Barbosa) foi a segunda canção da noite. Já gravada por Billie Holiday, Frank Sinatra e João Gilberto, é daquelas canções que não saem de nós, que não nos deixam. Sempre que a ouço, principalmente nos ‘shows’ da Ithamara, fico cantarolando a melodia dias e dias seguidos. Ithamara parece acarinhar e acariciar as palavras e as notas musicais. Incrível sua intimidade com o canto. Ouvindo-a, parece facílimo cantar.
            “Un homme et une femme” (Francis Lai / Pierre Barough ) é a faixa que abre a edição coreana do Serenade in blue, “disco-cartão-postal” de Koorax no mercado internacional. Foi o terceiro presente inebriante da noite e é mais um clássico que Ithamara não esquece: está sempre presente em suas apresentações.
            “Fly me to the moon” (Bart Howard), do repertório do Sinatra, foi a próxima canção e uma das ótimas surpresas da noite. Foi a primeira vez que a ouvi com nossa diva e, como sempre, ela deixou a alma a serviço da canção. Eis aí mais uma prova cabal de que não basta o grande cantor exibir uma técnica impecável: é preciso interpretar, o que só é possível quando o sentimento não fica de lado, esquecido num canto qualquer do palco ou do estúdio.
E, depois de um clássico de Sinatra, os olhos azuis mais famosos da música americana, Koorax nos traz “Desafinado” (Tom Jobim / Newton Mendonça), que é um deslumbre. Composta sobre notas “erradas” (não esqueçam as aspas!), é um presente para qualquer intérprete, em especial para aqueles que estão numa região sagrada da música, caso de Ithamara, Elis e Elizeth, por exemplo.
“Só danço samba”, mais uma do Tom, nosso “maestro soberano”, tem uma das letras mais simples do Vinicius, mas o balanço é irresistível. Ithamara, com a segurança que lhe é peculiar, faz o que quer com a canção. Aliás, ela faz o que quer com qualquer canção. Às vezes, vira-as do avesso e dá aulas nada tradicionais de interpretação. Qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento musical e de sensibilidade, ao ouvir Koorax, sabe que está diante de uma cantora/intérprete única.
“Vivo sonhando” é mais uma do Tom Jobim, mas só ‘dele’. Foi a segunda novidade da noite, depois de “Fly me to the moon”. Eu já era apaixonado por essa canção... e ouvi-la com Ithamara só fez aumentar – e muito! – a paixão. Viver sonhando “mil horas sem fim” é só o que quero, mas não dá para ser sem trilha sonora, que já está escolhida: Ithamara Koorax.  
 “Recado Bossa Nova” (Djalma Ferreira / Luís Antonio), de “Wave 2001 – Bossa Nova Songbook”, é sempre muitíssimo bem-vinda. Ouço-a sempre. “Saudade, meu moleque de recado” já entrou para a galeria dos versos mais bonitos da MPB. Se, porventura, Raul Corrêa da Silva quiser lançar uma segunda edição de “MPB – versos para sua prosa”, sugiro-lhe incluir essa bela metáfora, que, na voz da Ithamara, ganha ‘cor e textura’ excepcionais.
“Ela é carioca” (Tom Jobim / Vinicius de Moraes) é sempre deslumbrante. Que canção leve! Ithamara, de fato, incorpora-a quando a interpreta. Essa moça, nascida em Niterói, transforma-se, vez ou outra, numa carioca da gema. Descontração é a senha para uma interpretação perfeita de mais um clássico de nossa rica e extensa MPB.
“Goin’ out of my head” (Teddy Randazzo / Bobby Weinstein), que vem logo depois da descontração de “Ela é carioca”, é uma canção desafiadora. Só Ithamara para captar, com perfeição, as sutilezas dessa música. Mais um gol de bicicleta de nossa diva.
“Samba de verão” (Marcos Valle / Paulo Sérgio Valle) é mais uma que requer descontração de quem se atreve a interpretá-la. Não se trata, aqui, de enxergar descontração como simples brincadeira. É bom que se brinque, sim, mas levando a sério a brincadeira, como dizem.  
“Never can say Goodbye” (Clifton Davis), de Go to be real, é mais um momento sublime do espetáculo, assim como “Nice Work if you can get it” (George / Ira Gershwin), esta do CD “Mario Castro Neves & Samba S. A. – On a clear Bossa day”, de 2004, obra primorosa que tem Ithamara e Ana (Leu)zinger nos vocais. Estão aí duas canções extraordinárias que ganham roupagem nova na voz de nossa diva: um tubinho preto e um fio de pérolas no pescoço. Querem algo mais chique? Impossível!  
“On a clear day” (Burton Lane / Alan Jay Lerner), também do disco de Castro Neves, é outro momento primoroso do ‘show’: vê-se perfeitamente que nossa Ithamara é, sem dúvida, da escola de Ella Fitzgerald, em que o ritmo e a musicalidade são insuperáveis.  
“O grande amor” (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), a música favorita de Stan Getz, é mais uma que chegou para brindar os cinquenta anos de lançamento do clássico “Getz / Gilberto – Stan Getz, João Gilberto”. E chegou em grande estilo: Ithamara, numa interpretação ‘pra’ lá de impressionante, faz a escansão de todos os versos. A canção desliza com muita delicadeza em sua voz. No momento em que Ithamara a interpretava, a lua parou para ouvi-la. Naquele instante, cumpriu-se, para nós, um dos mais belos e poéticos ensinamentos de Caetano: “Lua lua lua lua / Por um momento / Meu canto contigo compactua”. A lua rendeu-se ao belo e altaneiro canto.
“Up, up and away” (Jimmy Webb), uma das faixas mais conhecidas e badaladas do CD “Got to be Real”, é sucesso em mais de 30 países. Dizer mais o quê? Que Ithamara transformou essa canção, originalmente um “jingle”, num clássico.
E por falar em clássico, eis mais uma que já está na lista das mais belas canções eternizadas na voz de Koorax: “Valsa de Pangrati” (Antenor Bogéa), do CD Renaître, do próprio Bogéa, lançado em 2013. A essa canção, uma das mais aplaudidas do ‘show’, Ithamara, mais uma vez, entregou-se como nunca.
“Aos pés da santa cruz” (Marino Pinto / Zé da Zilda) ganhou gravações magistrais: do Orlando Silva, o cantor preferido do João Gilberto, em 1941, do próprio João Gilberto e da Ithamara, que sempre a interpreta em seus ‘shows’. Ouvi-la é sempre um prazer que se renova.
“Zum-zum” (Fernando Lobo / Paulo Soledade) é uma marcha que, em 1951, fez sucesso na voz de Dalva de Oliveira e homenageou Carlos Eduardo de Oliveira, carnavalesco e comandante da Panair, falecido um ano antes em decorrência de um acidente de avião. É comovente ver as pessoas, nos ‘shows’, acompanharem Ithamara. Prova de que a música, quando é boa, não pode ser datada: é atemporal, assim como a boa literatura.
 “Que maravilha”, uma das canções mais conhecidas do Benjor, quando ele ainda assinava Jorge Ben, é sempre interpretada em clima de muita descontração, mas sempre com uma competência ímpar. É impossível não mudarmos a letra do refrão quando a ouvimos com Koorax: “Ithamaravilha”!
“Bim bom”, do mestre João Gilberto, é mais um item essencial nos ‘shows’ de Ithamara, assim como “Can’t take my eyes off of you” (Bob Crewe / Bob Gaudio), que sempre recebe o “auxílio luxuoso” do público. Não há quem fique indiferente a uma canção tão arrebatadora.
“Ária na corda sol da suíte nº 3”, de Johann Sebastian Bach, fecha o espetáculo e sempre ‘me’ deixa muito comovido. Chego às lágrimas, inclusive. Nessa canção, que estará em seu próximo disco, Ithamara vai a regiões a que só os iluminados conseguem ir. Trata-se de um espetáculo à parte. Momento único e de beleza rara nos ‘shows’ dessa diva que o mundo aplaude e reverencia.
De Chiquinha Gonzaga a Ithamara Koorax, somos muito bem representados em termos de vozes femininas, com exceção, é claro!, de umas “cantantes” inexpressivas e sem voz que “apareceram” há bem pouco tempo e não saem da mídia.
Surgida no início da década de 90 com o disco “It(h)amara Koorax ao vivo” (com Maurício Carrilho e Paulo Malaguti), lançado em 93 e gravado um ano antes, nossa diva atingiu uma maturidade artística como nenhuma outra de sua geração. Dona de um currículo invejável, com um trabalho sério e seguro que já chegou aos quatro cantos do mundo, Koorax contribui deveras para a nobreza da grande Música (com inicial maiúscula mesmo). Para avaliarmos a real dimensão de sua obra, basta que observemos sua discografia impecável e suas apresentações em que a excelência do canto e a qualidade do repertório preponderam. Se quisesse, nossa diva poderia até cantar o que ditam as regras do mercado. Poderia até estar dando pulinhos no palco e cantando algo inclassificável e medíocre. No entanto, ela prefere “seguir marginal”, como diria Elis Regina. Ela não se acovarda diante de um mercado perverso em que o vulgar e o grotesco dão a tônica. Prefere, como poucos, seguir caminhos pouco ortodoxos a vender-se ao sucesso fácil e descaracterizar sua carreira.  Com o talento e a altivez dos grandes gênios, Ithamara Koorax é essencial.

Ferido pela sua arte o artista sonha e se imola por nós. Tocha acesa num palco, pastagem que se estende como uma tela de cor ou folha que voa no vento da música, ele abre caminho para os nossos sonhos. O artista arde por nós e nisso se consome e se refaz, sagrada salamandra.
No escuro da plateia respiramos com o seu pulmão, sobrevivemos com seu sangue, e com seu coração lutamos nossas guerras pessoais: ele se exaure enquanto nós nos refazemos, e saímos para a rua, para o conforto das casas, ainda conduzidos pela sua vara de condão.
Ele, despedaçado e depois refeito, recebe aplausos e abraços, descansa em seu camarim e volta para a sua vida cotidiana - andando cuidadosamente para que não se percebam essas asas em seus ombros, e essas nuvens debaixo de seus pés.

Fonte: LUFT, Lya. Secreta mirada. São Paulo: Mandarim, 1997.
VIVO SONHANDO
Tom Jobim
Vivo sonhando
Sonhando mil horas sem fim
Tempo em que vou perguntando
Se gostas de mim
Tempo de falar em estrelas
Falar de um mar
De um céu assim
Falar do bem que se tem, mas você não vem
Não vem
Você não vindo
Não vindo, a vida tem fim
Gente que passa sorrindo, zombando de mim
E eu a falar em estrelas, mar, amor, luar
Pobre de mim, que só sei te amar.
Fonte: Songbook Antonio Carlos Jobim, vol. 2, Lumiar Discos, 1996.

ELA É CARIOCA
Tom Jobim / Vinicius de Moraes
Ela é carioca, ela é carioca
Basta o jeitinho dela andar
E ninguém tem carinho assim para dar
Eu vejo na luz dos seus olhos
As noites do Rio ao luar
Vejo a mesma luz
Vejo o mesmo céu
Vejo o mesmo mar
Ela é o meu amor só me vê a mim
A mim que vivi para encontrar
Na luz do seu olhar a paz que sonhei
Só sei que sou louco por ela
E pra mim ela é linda demais
E além do mais ela é carioca
Ela é carioca.
Fonte: Songbook Vinicius de Moraes, vol. 3, Lumiar Discos, 1993.

"Resta essa vontade de chorar diante da beleza." (Vinicius de Moraes)

ALGUMA VOZ
Dori Caymmi / Paulo César Pinheiro

Quando eu ouço a voz da fonte
Não sei que canto que encerra
Parece o gozo do monte
Dentro do ventre da terra

Quando eu ouço a voz do rio
Me lembro de passarinho
Um é livre, outro é vadio
Cantando pelo caminho

Quando eu ouço a voz do vento
Não acerto nem me engano
Não é mágoa nem alento
É cantiga de cigano

Quando eu ouço a voz do mar
Tanto é mansa quanto ataca
Não sei quando é de ninar
Nem sei quando é de ressaca

Quando eu ouço alguma voz
Na janela do horizonte
De alguém cantando por nós
É Deus cantando de fronte

Fonte: CD "Meus quintais", Maria Bethânia, Biscoito Fino, BF 304-2, 2014.





domingo, 5 de outubro de 2014

FORA, ALIENADO, E LEVE A FALTA DE OPINIÃO COM VOCÊ




TIPO ZERO
Noel Rosa

Você é um tipo que não tipo
Com todo tipo você se parece
E sendo um tipo que assimila tanto tipo
Passou a ser um tipo que ninguém esquece
(Tipo zero... não tem tipo!)

Quando você penetra no salão
E se mistura com a multidão
Esse seu tipo é logo observado
E admirado todo mundo fica
E o seu tipo não se classifica
E você passa a ser um tipo desclassificado.

Para integrar a opereta "A noiva do condutor", este samba ganhou rotoques na segunda parte e mais uma estrofe.
Fonte: Caixa Noel Rosa pela primeira vez. Velas, 2000.





FORA, ALIENADO, E LEVE A FALTA DE OPINIÃO COM VOCÊ
Por Fábio Brito
Em entrevista à revista CULT nº 182, de agosto de 2013, a filósofa Marilena Chaui, ao falar da “desorganização de uma classe revolucionária” aqui no Brasil, cita Lênin: “Há uma coisa que a burguesia deixou e que nós não vamos destruir: o bom gosto e as boas maneiras”.
Há mais ou menos um mês, lembrei-me dessas “boas maneiras” de que nos falou Lênin quando comecei a observar que alguns carros que trafegam por minha cidade passaram a ostentar um adesivo extremamente grosseiro: “Fora Fulana de tal e leve o partido tal com você”.  Bom, primeiramente, não deveriam ter “tropeçado” na língua. A “Fulana de tal” aí do texto é vocativo e deveria, portanto, estar entre vírgulas. O respeito à língua é primordial, até nas “guerras” mais chinfrins, como essa do adesivo.
E por falar em guerra, vamos lá! Se quer declará-la, faço-o, mas, parafraseando Cazuza, escolha as armas mais bonitas. Também recebi, via “e-mail” e “facebook”, algo que poderíamos chamar de “resposta” a esse adesivo chulo a que me referi: “Fora fulana de tal e leve determinado banco com você”. Adivinhe por que levar junto “determinado banco”? Um presentaço a quem adivinhar! Pois bem, fiquei “na minha”, como dizem. Não respondi e não curti. Não vou usar as mesmas armas feias e vulgares. Determinado candidato não lhe agrada? Ok. Divulgue o seu então! Cole adesivos e mais adesivos em seu carro. Transforme-o, se assim for de seu agrado, num imenso “outdoor”. Vou achar brega, claro!, mas vou respeitar. Por que consumir todo o seu vigor pedindo que o candidato de quem ‘você’ não gosta “caia fora”? Gaste quanta energia quiser, mas não escorregue no desrespeito. Ocupe seu tempo dando visibilidade a seu candidato, que, a esta altura dos acontecimentos, deve andar meio ostracizado. Coitado! Não o despreze! Quanto fel, não?! Esse povo deve ter sido “criado a leite de jaguatirica”. Quanta raiva, meu Deus! E quanta alienação também...
E “alienação”, segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa significa, entre outras acepções, “indiferença aos problemas políticos e sociais”. Ah, algum desavisado pode perguntar: “ – Opa! Se alguém está ‘criticando’ um candidato, não está indiferente”. Está! Claro que está! Trata-se de agressão pura e simplesmente. É algo vazio. E quem é desprovido de argumentos só sabe agredir. Esse pessoal que só agride nunca leu nada. Sua única fonte de informação é, muitas vezes, um “grande” e tendencioso jornal de TV... e mais nada.  Eis aí um terreno fertilíssimo para a alienação.
Para ilustrar essa tal alienação, tentei, dia desses, manter, num nível elegante, uma discussão sobre escolha de candidatos. Eis alguns fragmentos da conversa:  
- Por que você rejeita o candidato “fulano de tal”?
- Porque ele não presta!
- Por que ele não presta?
- Porque não presta. Acabou com o Brasil. A economia está ruim e mais um monte de coisas. Ah, e ‘tem’ a corrupção também.
- OK. Cite, pelo menos, um caso de corrupção que o tenha deixado indignado nos últimos quatro anos (também não defendo a corrupção e não fecho os olhos para os deslizes de qualquer partido). Que pontos da economia você aponta como ruins?
- Não lembro, mas foram muitos casos de corrupção. Muitos mesmo! E a economia está ruim e pronto!
- Por que você gosta do candidato “sicrano”? O que o levou a escolher determinado candidato?
- Porque acho (“teoria do achismo”) que ele vai ser bom para o Brasil.
- Bom em que sentido?
- Em todos os sentidos. 
E a conversa continuou por mais alguns minutos, mas enquanto tive paciência, é lógico! E vale ressaltar o seguinte: meu interlocutor não era um “joão ninguém”. Está aí, na cara, o analfabetismo político.
Sabe o que evidenciamos aí nessas respostas? O discurso anônimo do senso comum, a voz geral corrente, a fala de todos, que, em verdade, é a fala de ninguém. Ou seja, a pessoa não tem argumentos. Não sabe por que detesta certo candidato, não sabe por que prefere outro. Essas pessoas – ou seriam “criaturas”? – apenas repetem. Repetem, repetem, repetem. E, como sabemos, quem apenas repete não se expressa. É só “montaria de ideias externas”¹. É apenas um bom “cavalo” e mais nada. Vive no que alguns chamam de “penumbra cinzenta”, mas “se acham”! Por trás disso tudo, a onipotente e onipresente ignorância, que imobiliza, que paralisa, que torna a pessoa agressiva e rude.
É fácil “ir na onda”. E “ir na onda” é o que muita gente faz. Pensar dói. Analisar programas de partidos/candidatos dá trabalho e, por isso, dói também. Aprender dói. Tudo dói. Gente que “vai na onda” não sabe por que motivos rejeita ou prefere determinado candidato. Apenas segue o fluxo. E, como já bem disseram, para quem não sabe aonde vai, qualquer caminho serve.
Pior que “ir na onda”, é sair por aí dogmatizando e doutrinando. Há um povo que não diz ter a verdade: simplesmente afirma que “é” a Verdade (aqui, é com inicial maiúscula mesmo). E o tal pensamento dogmático não ficou circunscrito a certas instituições religiosas. Faz muito tempo que ele ganhou as ruas e... chegou até o discurso político, é óbvio! Falsos “profetas-políticos” nascem todos os dias. Eles vêm travestidos de “salvadores da pátria” e, toda vez que surge uma dessas “figuras”, é inevitável não lembrar D. Sebastião, personagem importantíssima na história do povo português.
A compreensão do nascimento, em Portugal, em fins do século XVI, do “sebastianismo”, ajuda-nos a entender – e muito! – o porquê de esse mito, o do “sebastianismo”, ser constantemente redesenhado em nossa história, em especial a política. Em 1554, os nove filhos do rei João III morreram “uns após os outros”. Depositaram, então, todas as esperanças no neto – D. Sebastião - que nasceria naquele mesmo ano e de quem viriam também os milagres que o povo tanto esperava. Em 1578, numa batalha no Marrocos, D. Sebastião “desaparece”. Nasce, assim, o mito. D. Sebastião, que, com o passar dos anos, vem “reencarnando” também por aqui. Não faltam políticos oportunistas que se dizem os “desejados”, os “encobertos”, os “ungidos do Senhor”, os que “participaram da cerimônia da sagração”. Todos com histórias tristíssimas, de miséria e desespero. Argh!
Atrás desses escolhidos de Deus, muita gente está indo. Está indo “na onda”. Quando há o casamento do discurso político com o religioso, as consequências são desastrosas, nefastas. Como eu mesmo já disse noutro texto, o discurso religioso é mais forte que o político. E, se “bem conduzido”, é mais virulento, contamina mais. “Faz a cabeça” mesmo! “Tô” fora! Não preciso – como faço questão de afirmar - que ninguém me conduza. Não me venham com dogmas! Quero criar minhas “verdades” e nelas acreditar.  
¹ Expressão utilizada por Gustavo Bernardo em seu livro Redação Inquieta (Ed. Globo, 1991). 

 

                                                                                 A Antonio Candido
"Porque há para todos nós um problema sério...
 Este problema é do medo."
Antonio Candido, Plataforma de uma geração
 
 
                                                                                                                                                       
O MEDO
 
Em verdade temos medo.
Nascemos no escuro.
As existências são poucas;
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
Vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
doenças galopantes, fomes.
 
Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
 
eo amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.

Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno.
e nós, de vós; e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses.
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?

E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,
Vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.

Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo, e calma.

E com asas de prudência
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo

de nossa cauta subida.

O medo com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.

Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.



Fonte: ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. São Paulo: Círculo do Livro, 1986.
 
 
"Mas, enfim, eu estava do lado certo, isso bastava para a paz da minha consciência. O sentimento do direito, a satisfação de ter razão, a alegria de nos estimarmos a nós próprios são, meu caro senhor, impulsos poderosos para nos manter de pé ou nos fazer avançar. Pelo contrário, privar os homens desses impulsos é transformá-los em cães raivosos. Quantos crimes cometidos, simplesmente porque o seu autor não podia suportar o fato de estar errado! Conheci, em outros tempos, um industrial que tinha uma mulher perfeita, admirada por todos e que, no entanto, ele traía. Este homem ficava literalmente raivoso ao se descobrir culpado, na impossibilidade de receber, ou de passar a si próprio uma certidão de virtude. Quando mais a mulher se mostrava perfeita, mais ele se enraivecia. Finalmente, seu erro se tornou insuportável. Que pensa que fez então? Parou de enganá-la? Não. Matou-a. Foi deste modo que travei conhecimento com ele."

Fonte: CAMUS, Albert. A Queda. Tradução de Valerie Rumjanek. 16ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.


"(...) O rival deseja o mesmo objeto que o outro, não por acaso ou por mera coincidência, mas por uma estrutura de fundo, ligada ao próprio desejo humano. Este é tendencialmente infinito. Deseja-se não somente isto e aquilo, mas a totalidade, tudo. É um projeto aberto ao infinito.
Por isso, o ser humano não sabe concretamente o que deseja. O ser, o todo, a parte? Aristóteles já observava que o objeto do desejo é o ápeiron, o todo indeterminado. Por essa porta, entra Girard ao dizer: o desejo se determina somente a partir do rival. Cada pessoa deseja aquilo que seu rival deseja. Destarte, o desejo deixa o vago e ganha configuração concreta. Portanto, o desejo é essencialmente mimético (mimesis = imitação). O ser humano deseja o que o outro deseja. Um umita o outro (...)"

Fonte: BOFF, Leonardo. A violência da sociedade capitalista e do mercado mundial. In: A voz do arco-íris. Brasília: Letraviva, 2000.



Foto: Fábio Brito


VAMOS VER, CHAMEI A MINHA TRIBO

Vamos ver, chamei a minha tribo e disse:
vamos ver, quem somos, que fazemos, que pensamos.
O mais pálido deles, de nós,
me respondeu com outros olhos,
com outra sem-razão, com sua bandeira.
Esse era o pavilhão do inimigo.
Aquele homem, talvez, tinha direito
a matar minha verdade, assim aconteceu
comigo e com meu pai,
e assim acontece.
Mas sofri como se me mordessem.

NERUDA, Pablo. Últimos poemas. L&PM: Porto Alegre, 1997.



SÁBIO É O QUE SE CONTENTA...

Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre.

Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta à flor como a ele
De Átropos a tesoura.

Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgíaco
Apague o gosto às horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.

e ele espera, contente quase e bebedor tranquilo.
E apenas desejando
Num desejo mal tido
Que a abominável onda
O não molhe tão cedo.

PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 

 
"(...) Ai, Viramundo de minha vida, que vira Minas pelo avesso sem revelar aos meus olhos o seu mais impenetrável mistério. Ai, Minas de minha alma, alma de meu orgulho, orgulho de minha loucura, acendei uma luz no meu espírito, iluminai os desvãos do meu entendimento e mostrai-me onde se esconde esse vagabundo maravilhoso, esse meu irmão desvairado que no fundo vem a ser o melhor da minha razão de existir. Foi ele, esse iluminado de olhos cintilantes e cabelos desgrenhados que um dia saltou dentro de mim e gritou basta! num momento em que meu ser civilizado, bem penteado, bem vestido e ponderado dizia sim a uma injustiça. (...) Esse ser engasgado, contido, subjugado pela ordem iníqua dos racionais é o verdadeiro fulcro da minha verdadeira natureza, o cerne da minha condição de homem, herói e pobre-diabo, pária, negro, judeu, índio, cigano, santo, poeta, mendigo e débil mental, Viramundo! que um dia há de rebelar-se dentro de mim, enfim liberto, poderoso na sua fragilidade, terrível na pureza da sua loucura. (...)"

SABINO, Fernando. O grande mentecapto. 46ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.