domingo, 24 de março de 2013

"SÃO DEMAIS OS PERIGOS DESTA VIDA PRA QUEM TEM PAIXÃO...: 100 ANOS DE VINICIUS"

 

"SÃO DEMAIS OS PERIGOS DESTA VIDA PRA QUEM TEM PAIXÃO PRINCIPALMENTE..."¹
Por Fábio Brito
Vinicius, que é o poeta do encontro, como bem disse Otto Lara Resende, faria, em 19 de outubro, 100 anos. Exatamente por causa do centenário de nosso “Poetinha”, resolvemos marcar um encontro com ele. Onde? Num boteco. Quer lugar melhor para encontrar alguém que recusou todas as “pompas”? Dia 14 de março, exatamente o “Dia da Poesia”, professores, coordenação e alunos do curso de Letras/Português do Centro Universitário São Camilo/ES, em Cachoeiro de Itapemirim, tiveram um encontro com Vinicius no sarau “São demais os perigos desta vida pra quem tem paixão...: 100 anos de Vinicius”.
O cenário, um “botequim” com direito a mesas, garçons, bebidas, petiscos e violão, foi tomado de uma euforia sem par, trazida por poemas e canções de nosso Vinicius, o poeta de todas as paixões. Logo após a leitura do texto “Vinicius, poeta do encontro”, de Otto Lara Resende, que abriu o sarau, a interpretação “a capela” da belíssima “Se todos fossem iguais a você”, parceria de Vinicius com Tom Jobim, estendeu o tapete vermelho para a homenagem que tomaria conta de todos. Após dizer ao “Poetinha” que, se todos fossem iguais a ele, seria uma maravilha viver, o sarau guiou-se por temas recorrentes na obra do homenageado: a infância, a mulher amada, a exaltação ao amor, a separação, a saudade, a volta, o gozar a vida, a morte/”a hora íntima”.
Em “Aquarela”, entoada logo após o poema “O poeta aprendiz”, o auditório foi tomado de uma comoção ímpar: todos cantaram a bela letra de Vinicius, parceria com Toquinho, seu “irmãozinho” mais fiel, Guido Morra e Maurizio Fabrizio. “O pato”, do especial e do disco “Arca de Noé”, também contou com o auxílio luxuoso de todo o auditório. Tal canção é a prova de que não há quem não conheça a obra infantojuvenil de Vinicius, em especial as canções que integram as “Arcas” (I e II), lançadas em 1980 e 1981, e “Casa de brinquedos”. Bons tempos em que a criançada podia se dar o luxo de receber canções de um compositor/poeta do porte de Vinicius, entoadas por intérpretes como Chico Buarque, Elis Regina, Tom Zé, Clara Nunes, Tom Jobim, Ney Matogrosso, Paulinho da Viola, Milton Nascimento e muitos outros. “Pedro, meu filho” e a canção “O filho que eu quero ter” fecham a primeira etapa do sarau.
Na sequência, o “Soneto do Corifeu”, de Orfeu da Conceição, que marca o início da parceria Vinicius/Jobim, dá início a um dos temas mais profícuos da obra do poeta: a mulher amada. “Minha namorada”, “A brusca poesia da mulher amada II”, “Poema dos olhos da amada” (com direito a uma letra em francês), “Garota de Ipanema” (uma das canções brasileiras mais conhecidas no mundo), “Lamento no morro” (também de Orfeu da Conceição) e o conhecidíssimo “Soneto de fidelidade” (“De tudo, ao meu amor serei atento / Antes...”) fecham o bloco dedicado à mulher, sempre amada e exaltada. Para arrematar, é a vez de “Como dizia o poeta”, parceria com Toquinho e por meio da qual o poeta nos ensina que “a vida só se dá pra quem se deu / pra quem amou, pra quem chorou pra quem sofreu”. Quem ousa, então, depois de Vinicius, não rasgar o coração?
“Regra três” e “Soneto de separação”, que vêm logo depois de “Como dizia o poeta”, provam que, em se tratando de Vinicius de Moraes, toda separação não dura muito; não dura, em verdade, quase nada. Por isso, é o próprio poeta quem pergunta: “E por falar em saudade, onde anda você?” No sarau, a canção, uma parceria com Hermano Silva, transformou-se em texto 'declamado em forma de diálogo'. Momento brilhante do espetáculo. O “Samba da volta”, que também chegou separado da melodia, disse tudo: “Você voltou, meu amor / Alegria que me deu...”. Separação? Que nada! Então, para comemorar a volta, é hora de uma das mais belas declarações de amor: “Eu sei que vou te amar”, que ganhou o requinte de um violino. Pungente momento.
E por falar em exaltação ao amor, nós, pobres mortais, não temos a mínima noção acerca de como é viver um grande amor, não é mesmo? Vamos vivendo e pronto. Vinicius, no entanto, tem a “receita”. Em “Para viver um grande amor”, eis o que ele nos diz: “Para viver um grande amor, é muito / Muito importante viver sempre junto / E até ser, se possível, um só defunto / Pra não morrer de dor (...)”. Alguém, por acaso, conhece receita melhor? Mesmo assim, longe de qualquer soberba ou pretensão, o “Poetinha” prova que a razão está, de fato, com a vida: “A vida tem sempre razão”. E, se ela tem tanta razão, por que não a gozar? Como? Passando uma “Tarde em Itapuã”. Nada de tédio ou chateação, claro! Assim, constatamos que a vida gosta de quem gosta “dela” e pronto.
Em “Testamento”, que dá início à última etapa do sarau, nosso poeta é categórico: “Você que só ganha pra juntar / O que é que há, diz pra mim, o que é que há? / Você vai ver um dia / Em que fria você vai entrar / Por cima uma laje / Embaixo a escuridão / É fogo, irmão! É fogo, irmão!”. Depois de ler tais versos, muita gente deveria escrevê-los no teto que fica sobre a cama. Para quê? Para, ao acordar, lê-los todos os dias e, de preferência, em voz alta. É... há um povo por aí que desconhece a brevidade da vida... “E tome gravata!” Em “A hora íntima” (“Quem pagará o enterro e as flores / Se eu me morrer de amores?”) e “Deixa” (“Ninguém vive mais do que uma vez”), Vinicius vem total, assim como em “O haver” (“Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto / Esse eterno levantar-se depois de cada queda / Essa busca de equilíbrio no fio da navalha / Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo / Infantil de ter pequenas coragens”), este um dos mais belos poemas em língua portuguesa. Quase fechando a noite, é a vez de “Chega de saudade”, uma das canções mais conhecidas, e gravadas, da dupla Vinicius/Tom (“Vai, minha tristeza /E diz a ela que sem ela não pode ser / Diz-lhe, numa prece / Que ela regresse / Porque eu não posso mais sofrer”). Como não poderia deixar de ser, ela também teve como coro todo o auditório.
No encerramento, a leitura de “Recado de Primavera”, de nosso adorável cachoeirense Rubem Braga, “o sabiá da crônica nacional”, que também faria 100 anos em 2013. Tal carta é de 1980, ano em que o “Poetinha” retirou-se de cena. De lá ‘pra’ cá, já se vão 32 (quase 33) primaveras.
Ao fim do espetáculo, fica a certeza de que Vinicius, como poucos, conseguiu ser popular e simples, mas sem ser “simplório ou estúpido”, como disse José Castello, seu biógrafo. Vinicius é raro. Ah, Vinicius, que falta você nos faz...

¹ Título extraído do "Soneto do Corifeu"
Foto: http://www.cifraclub.com.br/vinicius-de-moraes/fotos.htm
VINICIUS, POETA DO ENCONTRO
Otto Lara Resende
Homem de bem com a vida, a favor da vida. A quem a vida nada negou e que também não se nega à vida. Criador de um lirismo em prosa e verso, falado e cantado, e sempre de exaltação à vida. A canção em Vinicius nasce de um encontro, não vem de um conflito. Encontro consigo mesmo, com o outro, com a sua cidade. Com o menino livre e feliz que foi, com o tempo da infância, fonte inesgotável quando tudo era indizivelmente bom. Menino de beira mar, os carinhos de vento no rosto e as frescas mãos de maré nos seus dedos de água. Encontro com o próximo, com aquele que se dá à vida. O que não se defende, o que não se fecha, o que não se recusa a participar do espetáculo fascinante da grande e da pequena ventura de viver. Encontro com os amigos, parceiros da vida em comum, e encontro com os parceiros, amigos da arte em comum. Encontro com a mulher amada, a amiga infinitamente amiga e encontro com a mulher do povo entre moringas e cenouras emolduradas de vassouras. Com o operário em construção, dono de uma nova dimensão, a dimensão da poesia. Encontro da sensibilidade pessoal com o sentimento popular da inspiração e da técnica pessoais com o ritmo e a inspiração gerais. Encontro da mulher com o homem, do amor. Das palavras com a música, da poesia com a canção. Poesia de aliança com a vida e canção de aliança com a multidão. Voz pessoal, mas ponto de reunião de muitas vozes. Encontro de uma voz com todas as vozes. Poeta do encontro, cantor da vida. Vinicius tomou partido do sentimento contra o ressentimento. Por isso, ele não semeia pedras como aquele que não ama. Semeia canções, poesia. Porque lhe foi dado perder-se de amor por tudo o que é vivo e que vale a pena. Vinicius canta o povo. O povo canta Vinicius. A bênção, Vinicius de Moraes.


SE TODOS FOSSEM IGUAIS A VOCÊ
Vinicius de Moraes - Tom Jobim

(...)
Se todos fossem iguais a você
Que maravilha viver
Uma canção pelo ar
Uma mulher a cantar
Uma cidade a cantar
A sorrir, a cantar, a pedir
A beleza de amar
Como o sol, como a flor, como a luz
Amar sem mentir, nem sofrer

Existiria a verdade
Verdade que ninguém vê
Se todos fossem no mundo iguais a você
AQUARELA
Vinicius de Moraes – Toquinho – Guido Morra – Maurizio Fabrizio
(...)
E o futuro é uma astronave
Que tentamos pilotar
Não tem tempo nem piedade
 Nem tem hora de chegar
Sem pedir licença muda nossa vida
E depois convida a rir ou chorar
Nessa estrada não nos cabe
 Conhecer ou ver o que virá
O fim dela ninguém sabe
 Bem ao certo onde vai dar
Vamos todos numa linda passarela
De uma aquarela que um dia enfim
Descolorirá

PEDRO, MEU FILHO...
Vinicius de Moraes

Como eu nunca lutei para deixar-te nada além do amanhã indispensável: um quintal de terra verde onde corra, quem sabe, um córrego pensativo; e nessa terra, um teto simples onde possas ocultar a terrível herança que te deixou teu pai - a insensatez de um coração constantemente apaixonado.
E porque te fiz com o meu sêmen homem entre os homens, e te quisera para sempre escravo do dever de zelar por esse alqueire, não porque seja meu, mas porque foi plantado com os frutos da minha mais dolorosa poesia.
Da mesma forma que eu, muitas noites, me debrucei sobre o teu berço e verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas mais indefesas lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que cravassem na minha carne as farpas feitas para a tua.
E porque vivemos tanto tempo juntos e tanto tempo separados, e o que o convívio criou nunca a ausência pôde destruir.
Assim como eu creio em ti porque nasceste do amor e cresceste no âmago de mim como uma árvore dentro de outra, e te alimentaste de minhas vísceras, e ao te fazeres homem rompeste meu alburno e estiraste os braços para um futuro em que acreditei acima de tudo.
E sendo que reconheço nos teus pés os pés do menino que eu fui um dia, em frente ao mar; e na aspereza de tuas plantas as grandes pedras que grimpei e os altos troncos que subi; em tuas palmas as queimaduras do Infinito que procurei como um louco tocar.
Porque tua barba vem da minha barba, e o teu sexo do meu sexo, e há em ti a semente da morte criada por minha vida.
E minha vida, mais que ser um templo, é uma caverna interminável, em cujo recesso esconde-se um tesouro que me foi legado por meu pai, mas cujo esconderijo eu nunca encontrei, e cuja descoberta ora te peço.
Como as amplas estradas da mocidade se transformaram nestas estreitas veredas da madureza, e o Sol que se põe atrás de mim alonga a minha sombra como uma seta em direção ao tenebroso Norte.
E a Morte me espera em algum lugar oculta, e eu não quero ter medo de ir ao seu inesperado encontro.
Por isso que eu chorei tantas lágrimas para que não precisasse chorar, sem saber que criava um mar de pranto em cujos vórtices te haverias também de perder.
E amordacei minha boca para que não gritasses e ceguei meus olhos para que não visses; e quanto mais amordaçado, mais gritavas; e quanto mais cego, mais vias.
Porque a poesia foi para mim uma mulher cruel em cujos braços me abandonei sem remissão, sem sequer pedir perdão a todas as mulheres que por ela abandonei.
E assim como sei que toda a minha vida foi uma luta para que ninguém tivesse mais que lutar:
Assim é o canto que te quero cantar, Pedro meu filho...


O FILHO QUE EU QUERO TER
Vinicius de Moraes - Toquinho

É comum a gente sonhar, eu sei
Quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer
Vejo um berço e nele eu me debruçar
Com o pranto a me correr
E assim, chorando, acalentar
O filho que eu quero ter

Dorme, meu pequenininho
Dorme que a noite já vem
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem

De repente o vejo se transformar
Num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar lá de onde vim
Um menino sempre a me perguntar
Um porquê que não tem fim
Um filho a quem só queira bem
E a quem só diga que sim

Dorme, menino levado
Dorme que a vida já vem
Teu pai está muito cansado
De tanta dor que ele tem

Quando a vida enfim me quiser levar
Pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar
No derradeiro beijo seu
E ao sentir também sua mão vedar
Meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar
Num acalanto de adeus

Dorme, meu pai, sem cuidado
Dorme que ao entardecer
Teu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter


SONETO DO CORIFEU
Vinicus de Moraes

São demais os perigos desta vida
Pra quem tem paixão principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida
E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher

Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita
Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua


POEMA DOS OLHOS DA AMADA
Vinicius de Moraes - Paulo Soledade

Oh, minha amada
Que os olhos teus

São cais noturnos
Cheios de adeus
São docas mansas
Trilhando luzes
Que brilham longe
Longe nos breus

Oh, minha amada
Que olhos os teus

Quanto mistério
Nos olhos teus
Quantos saveiros
Quantos navios
Quantos naufrágios
Nos olhos teus

Oh, minha amada
Que olhos os teus

Se Deus houvera
Fizera-os Deus
Pois não os fizera
Quem não soubera
Que há muitas eras
Nos olhos teus

Ah, minha amada
De olhos ateus

Cria a esperança
Nos olhos meus
De verem um dia
O olhar mendigo
Da poesia
Nos olhos teus

POEME AUX YEUX DE LA BIEN-AIMÉE
Versão e adaptação: Jeanne Morreau e Dominique Dreyfus
Ô ma bien aimée, quels yeux tes yeux
Embarcadères la nuit, bruissant de mille adieux
Des digues silencieuses qui guettent les lumières
Loin, si loin dans le noir
Ô ma bien-aimée, quels yeux tes yeux
Tous ces mystères dans tes yeux
Tous ces navires, tous ces voiliers
Tous ces naufrages dans tes yeux
Ô ma bien-aimée aux yeux païens
Un jour, si Dieu voulait
Un jour, dans tes yeux je verrais
De la poésie, le regard implorant
Ô ma bien-aimée, dans tes yeux (quells yeux tes yeux)


SONETO DE FIDELIDADE
Vinicius de Moraes

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


COMO DIZIA O POETA
Vinicius de Moraes – Toquinho

Quem já passou
 Por esta vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá
Pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou
Pra quem sofreu, ai

   Quem nunca curtiu uma paixão
Nunca vai ter nada, não

Não há mal pior
Do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa
 É melhor que a solidão

Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir?
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer

Ai de quem não rasga o coração
Esse não vai ter perdão


REGRA TRÊS
Vinicius de Moraes - Toquinho

Tantas você fez
Que ela cansou
Porque você, rapaz
Abusou da regra três
Onde menos vale mais

Da primeira vez
Ela chorou
Mas resolveu ficar
É que os momentos felizes
Tinham deixado raízes
No seu penar
Depois perdeu a esperança
Porque o perdão também cansa
De perdoar

Tem sempre o dia em que a casa cai
Pois vai curtir seu deserto, vai
Mas deixe a lâmpada acesa
Se algum dia a tristeza
Quiser entrar
E uma bebida por perto
Porque você pode estar certo
Que vai chorar


SONETO DE SEPARAÇÃO
Vinicius de Moraes

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.


EU SEI QUE VOU TE AMAR
Vinicius de Moraes – Tom Jobim

Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida, eu vou te amar
Em cada despedida, eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que eu vou te amar

E cada verso meu será
Pra te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida

Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua, eu vou chorar
Mas cada volta tua, há de apagar
O que esta tua ausência me causou

Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
À espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida


PARA VIVER UM GRANDE AMOR
Vinicius de Moraes – Toquinho

Eu não ando só
Só ando em boa companhia
Com meu violão
Minha canção e a poesia
Falado
Para viver um grande amor, preciso
É muita concentração e muito siso
Muita seriedade e pouco riso
Para viver um grande amor
Para viver um grande amor, mister
É ser um homem de uma só mulher
Pois ser de muitas - poxa! - é pra quem quer
Nem tem nenhum valor
Para viver um grande amor, primeiro
É preciso sagrar-se cavalheiro
E ser de sua dama por inteiro
Seja lá como for
Há que fazer do corpo uma morada
Onde clausure-se a mulher amada
E postar-se de fora com uma espada
Para viver um grande amor
Cantado
Eu não ando só
Só ando em boa companhia
Com meu violão
Minha canção e a poesia
Falado
Para viver um grande amor direito
Não basta apenas ser um bom sujeito
É preciso também ter muito peito
Peito de remador
É sempre necessário ter em vista
Um crédito de rosas no florista
Muito mais, muito mais que na modista!
Para viver um grande amor
Conta ponto saber fazer coisinhas
Ovos mexidos, camarões, sopinhas
Molhos, filés com fritas, comidinhas
Para depois do amor
E o que há de melhor que ir pra cozinha
E preparar com amor uma galinha
Com uma rica e gostosa farofinha
Para o seu grande amor?
Cantado
Eu não ando só
Só ando em boa companhia
Com meu violão
Minha canção e a poesia
Falado
Para viver um grande amor, é muito
Muito importante viver sempre junto
E até ser, se possível, um só defunto
Pra não morrer de dor
É preciso um cuidado permanente
Não só com o corpo, mas também com a mente
Pois qualquer "baixo" seu a amada sente
E esfria um pouco o amor
Há que ser bem cortês sem cortesia
Doce e conciliador sem covardia
Saber ganhar dinheiro com poesia
Não ser um ganhador
Mas tudo isso não adianta nada
Se nesta selva escura e desvairada
Não se souber achar a grande amada
Para viver um grande amor!
Cantado
Eu não ando só
Só ando em boa companhia
Com meu violão
Minha canção e a poesia


SEI LÁ, A VIDA TEM SEMPRE RAZÃO
Vinicius de Moraes – Toquinho

Tem dias que eu fico
Pensando na vida
E sinceramente
Não vejo saída
Como é, por exemplo
Que dá pra entender
A gente mal nasce
Começa a morrer
Depois da chegada
Vem sempre a partida
Porque não há nada
Sem separação

Sei lá, sei lá
A vida é uma grande ilusão
Sei lá, sei lá
Só sei que ela está com a razão

A gente nem sabe
Que males se apronta
Fazendo de conta
Fingindo esquecer
Que nada renasce
Antes que se acabe
E o sol que desponta
Tem que anoitecer
De nada adianta
Ficar-se de fora
A hora do sim
É o descuido do não

Sei lá, sei lá
Só sei que é preciso paixão
Sei lá, sei lá
A vida tem sempre razão


TESTAMENTO
Vinicius de Moraes – Toquinho

Você que só ganha pra juntar
O que é que há, diz pra mim, o que é que há?
Você vai ver um dia
Em que fria você vai entrar

Por cima uma laje
Embaixo a escuridão
É fogo, irmão! É fogo, irmão!
Falado
Pois é, amigo, como se dizia antigamente, o buraco é mais embaixo...
E você com todo o seu baú, vai ficar por lá na mais total solidão, pensando à beça que não levou nada do que juntou: só seu terno de cerimônia. Que fossa, hein, meu chapa, que fossa...
Cantado
Você que não para para pensar
Que o tempo é curto e não para de passar
Você vai ver um dia
Que remorso! Como é bom parar
Ver um sol se pôr
Ou ver um sol raiar
E desligar, e desligar
Falado
Mas você, que esperança... Bolsa, títulos, capital de giro, public relations (e tome gravata!), protocolos, comendas, caviar, champanhe (e tome gravata!), o amor sem paixão, o corpo sem alma, o pensamento sem espírito
(e tome gravata!) e lá um belo dia, o enfarte; ou, pior ainda, o psiquiatra
Cantado
Você que só faz usufruir
E tem mulher pra usar ou pra exibir
Você vai ver um dia
Em que toca você foi bulir!

A mulher foi feita
Pro amor e pro perdão
Cai nessa não, cai nessa não
Falado
Você, por exemplo, está aí com a boneca do seu lado, linda e chiquérrima, crente que é o amo e senhor do material. É, amigo, mas ela anda longe, perdida num mundo lírico e confuso, cheio de canções, aventura e magia. E você nem sequer toca a sua alma. É, as mulheres são muito estranhas, muito estranhas
Cantado
Você que não gosta de gostar
Pra não sofrer, não sorrir e não chorar
Você vai ver um dia
Em que fria você vai entrar!

Por cima uma laje
Embaixo a escuridão
É fogo, irmão! É fogo, irmão

A HORA ÍNTIMA
Vinicius de Moraes

Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: — Nunca fez mal...
Quem, bêbado, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: — Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: — Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançará um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: — Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: — Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?

Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?

O HAVER
Vinicius de Moraes
Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem [hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

A VOCÊ, COM AMOR
Vinicius de Moraes 
O amor é o murmúrio da terra
quando as estrelas se apagam
e os ventos da aurora vagam
no nascimento do dia...
O ridente abandono,
a rútila alegria
dos lábios, da fonte
e da onda que arremete
do mar...

O amor é a memória
que o tempo não mata,
a canção bem-amada
feliz e absurda...

E a música inaudível...

O silêncio que treme
e parece ocupar
o coração que freme
quando a melodia
do canto de um pássaro
parece ficar...

O amor é Deus em plenitude
a infinita medida
das dádivas que vêm
com o sol e com a chuva
seja na montanha
seja na planura
a chuva que corre
e o tesouro armazenado
no fim do arco-íris

Fonte: MORAES, Vinicius de. Poesia completa e prosa: volume único. Organização: Eucanaã Ferraz. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

RECADO DE PRIMAVERA – Rubem Braga a Vinicius de Moraes –      1980

Meu caro Vinicius de Moraes:

Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: a Primavera chegou. Você partiu antes. É a primeira primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação [Hoje, são trinta e duas primaveras, quase 33]. Seu nome virou placa de rua; e nessa rua, que tem seu nome na placa, vi ontem 3 garotas de Ipanema que usavam minissaias. Parece que a moda voltou nessa primavera. Acho que você aprovaria. O mar anda virado; houve uma lestada muito forte, depois veio um sudoeste com chuva e frio. E daqui de minha casa vejo uma vaga de espuma galgar o costão sul da Ilha das Palmas. São violências primaveris.
O sinal mais humilde da chegada da Primavera, vi aqui junto de minha varanda. Um tico-tico com uma folhinha seca de capim no bico. Ele está fazendo ninho numa touceira de samambaia, debaixo da pitangueira. Pouco depois vi que se aproximava, muito matreiro, um pássaro preto, desses que chamam de chopim. Não trazia nada no bico; vinha apenas fiscalizar, saber se o outro já havia arrumado o ninho para ele pôr seus ovos. Isso é uma história tão antiga que parece que só podia acontecer lá no fundo da roça, talvez no tempo do Império. Pois está acontecendo aqui em Ipanema, em minha casa, poeta. Acontecendo como a Primavera. Estive em Blumenau, onde há moitas de azaleias e manacás em flor; e em cada mocinha loira uma esperança de Vera Fischer. Agora vou ao Maranhão, reino do Ferreira Gullar, cuja poesia você tanto amava, e que fez 50 anos [Hoje, está com 82, quase 83]. O tempo vai passando, poeta. Chega a Primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua música e de seus versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui — a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor. Adeus.

Rubem Braga
Fonte: LP (duplo): Marcos Vinicius da Cruz de Mello Moraes. 422.1001. Som Livre, 1990. (com adaptações).