sábado, 10 de novembro de 2012

OS MUITOS TONS DA TRAIÇÃO



MIL PERDÕES
Chico Buarque

Te perdoo
Por fazeres mil perguntas
Que em vidas que andam juntas
Ninguém faz
Te perdoo
Por pedires perdão
Por me amares demais

Te perdoo
Te perdoo por ligares
Pra todos os lugares
De onde eu vim
Te perdoo
Por ergueres a mão
Por bateres em mim

Te perdoo
Quando anseio pelo instante de sair
E rodar exuberante
E me perder de ti
Te perdoo
Por quereres me ver
Aprendendo a mentir (te mentir, te mentir)

Te perdoo
Por contares minhas horas
Nas minhas demoras por aí
Te perdoo
Te perdoo porque choras
Quando eu choro de rir
Te perdoo
Por te trair

LP "Baby Gal", Gal Costa, PolyGram - 814854-1, 1983.
"Mil perdões" está na trilha do filme "Perdoa-me por me traíres", baseado na obra de Nelson Rodrigues.


O beijo de Judas Iscariotes em Jesus Cristo, pintura anônima do século 12 (Galeria dos Ofícios, Florença, Itália)


OS MUITOS TONS DA TRAIÇÃO 
Por Fábio Brito


"Era" para eu ter escrito algo sobre “traição” há muito tempo, tamanho é o incômodo que esse assunto provoca em mim. Antes, porém, de focar meu desconforto, vale lembrar que tal assunto é bastante explorado nas artes de modo geral: a literatura, o cinema, o teatro, as novelas de TV, por exemplo, não se cansam de dissecá-lo. Todos nos lembramos de pelo menos uma novela que explorou a “traição” em sua trama e, exatamente por isso, teve uma audiência estupenda. Como dizem, ela, a traição, “dá ibope” e continua rendendo bastante...
Shakespeare e suas peças são uma prova disso. Assim como muitos outros poetas e dramaturgos, ele impressionou deveras ao explorar a traição em seus trabalhos. “Otelo, o mouro de Veneza” é um dos mais lembrados. A falsa amizade do alferes Iago por Otelo, um nobre mouro a serviço do Estado de Veneza, rendeu, e ainda rende, inúmeras encenações mundo afora. Sentindo-se injustiçado porque seu comandante nomeou outro para o posto de tenente, Iago decide vingar-se: leva Otelo a pensar que Desdêmona, sua esposa, traiu-o. Enciumado, Otelo mata-a. Ao descobrir a trama de Iago, suicida-se. Evidenciam-se aí dois ângulos, digamos assim, da traição: a de Iago e a de Desdêmona, inventada, que levou Otelo a matá-la.  
Pensando na traição - que não houve - de Desdêmona, lembro-me da tão polêmica “traição amorosa”, que, em verdade, nem me interessa muito, e não é porque continuo não acreditando no “amor romântico”, à la Tristão e Isolda, mas porque a pior das traições, para mim, é a  “da confiança”. Traiu minha confiança? Era uma vez! Para tanto, vale, aqui, o que, com outras palavras, disse-nos Maria Dolores (Pires do Rio Duarte) em Travessia: a vida de Milton Nascimento"era" fácil conquistar a confiança de Bituca, mas era ainda mais fácil perdê-la... e resgatá-la, impossível. É assim que penso. Exatamente assim. 
Se traem minha confiança, tenho uma resistência mortal ao perdão. A despeito de nossa tradição religiosa, que nos ensina que “é preciso perdoar” sempre, minha inflexibilidade quanto ao perdão a quem trai minha confiança não diminui. Será que é preciso perdoar sempre? Não sei. Decididamente não sei. Só sei que não me esqueço de uns versos de “Cada tempo em seu lugar”, que é, para mim, a melhor canção do Gil: “A bondade, quando for bom ser bom / A justiça, quando for melhor / O perdão: / se for preciso perdoar”.  E aí? Vão dizer – com todos os “esses” e “erres”- que, se não houver perdão, o destino reservado é o fogo do inferno. Desde a mais tenra idade, ouço isso. E o pior de tudo é que não sei se tenho medo. 
Taí: nesse caso, o do não perdão quando minha confiança é traída, minha falta de medo do inferno - ou de outras punições - decorre da obviedade de que, para mim, as traições não são um descuido. Qualquer traição não é um descuido. Não me venham dizer que, em certos casos, “houve apenas um deslize” e mais nada. Confiança não se trai nunca! As traições, não raro, são premeditadas, principalmente as “da confiança”. Ninguém trai por acaso. Normalmente, tudo começa com pequenos delitos. À medida que o tempo vai passando, os tais pequenos delitos ganham ‘corpo’, até que chega o dia em que não mais é possível esconder todas as lorotas e embromações. O traidor, então, tropeça em suas próprias pernas, “embola-se” nelas. Cambaleia e dá com a cara no chão, porque, como diz o ditado, "o 'encardido' faz a panela, mas a tampa ele não faz". Mesmo assim, o infeliz levanta-se e, pior de tudo, continua com a mesma cara de pau.
Talvez o mundo seja mesmo “bão, Sebastião”, como canta Nando Reis. O problema é o povo que está nesse mundo tão “bão”, principalmente os caras de pau. Sempre duvidei da velha história de que “todo homem nasce bom”. Sei não! Há pessoas que parecem trazer no DNA traços de maldade, de rancor, de ódio, de inveja. E tudo isso leva à traição. Dá para confiar novamente em alguém que trai? Dá não, gente! Talvez por pura incapacidade ou falta de fé, não consigo confiar em quem, um dia, traiu. Regenerou-se, dizem. É?! Então leve para casa o regenerado. Dê-lhe papinha e banho tépido. Vai dormir tranquilo? Se sim, vá em frente! No entanto, comigo, a história é outra: se alguém me trair, pode esquecer que existo. É bem verdade que não conhecemos as pessoas com as quais 'convivemos'. Não são poucos os relatos de muita gente que se deita ao lado de um santo (com halo e tudo) e, quando acorda, há um bandido na cama. "Eu, hein, Rosa"! Muitos continuam com o bandido (às vezes, apaixonam-se mais ainda). Para mim, a "bandinha toca diferente": uma vez descoberta a verdadeira identidade, não há razões que me façam continuar ao lado de quem não presta. Aturar? Para quê? Sou bem mais eu! Meu mundo é outro.
Em muitos casos, a tal segunda chance é decorrente do medo que muitos têm da solidão. Já ouvi histórias – estarrecedoras, para mim – de pessoas que, apesar de terem passado por inúmeras traições, principalmente “da confiança”, e por medo da “sozinhez”, voltam a ficar ao lado do traidor e carregá-lo vida afora. Que peso, Deus meu! Que medo é esse? De onde ele vem? Como diz Regina Navarro Lins em A cama na varanda, somos condicionados a formar um par. Estamos convencidos de que essa história de "formar um par" é pré-requisito para que as pessoas sejam felizes. Todavia, quando alguém descobre que é prazeroso estar sozinho, constata que ocorreu uma significativa mudança interna, o que requer, constantemente, que seja exercitada a autonomia pessoal. Sobre isso, não posso deixar de citar um fragmento da crônica É tempo de pós-amor, de Marina Colasanti: “O mundo só andou geometricamente aos pares na Arca de Noé. Fora disso, anda emparelhado quem pode, quando pode. E o resto espera uma chance, sem nem por isso viver na escuridão”. Muita gente por aí está precisando “conhecer-se” melhor. Nem sempre andar emparelhado é o melhor caminho. Pode ser até suicídio... Ih!



BRIGA NO BECO
Adélia Prado

Encontrei meu marido às três horas da tarde
com uma loura oxidada.
Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.
Ataquei-os por trás com mãos e palavras
que nunca suspeitei conhecer.
Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,
gritei meu urro, a torrente de impropérios.
Ajuntou gente, escureceu o sol,
a poeira adensou como cortina.
Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,
sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea-ofendida,
uivava.
Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.
Quando não pude mais fiquei rígida,
as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,
eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,
as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.
Desde então faço milagres.

Fonte: PRADO, Adélia. Bagagem. 5ª edição. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986.



HÁ UM DEUS
Lupicínio Rodrigues

A minha dor é enorme / Mas eu sei que não dorme / Quem vela por nós / Há um Deus, sim, há um Deus / E este Deus lá do céu / Há de ouvir minha voz / Se eles estão me traindo / E andam fingindo que é só amizade / Hão de pagar-me bem caro / Se eu algum dia souber a verdade / O que fazem comigo / Vejam que não é normal / Justamente falsa amiga / Há de ser minha rival / Se eles estão me traindo / E andam fingindo que é só amizade / Hão de pagar-me bem caro / Se eu algum dia souber a verdade

Fonte: CDs “Pássaro da manhã”, Maria Bethânia, 8489402 - Universal, 2006 (P): 1977 e "Saudade...", Dalva de Oliveira, RVCD-050, Revivendo - s/d.

OLHO POR OLHO
Zé do Maranhão e Daniel Santos
A justiça dos homens / Condena a bigamia / Nenhuma mulher pode ter dois Josés / Nenhum homem ter duas Marias (por isso) // Dente por dente / Olho por olho / Se tentar me enganar / Bota a barba de molho (eu falei) // Você que se diz malandro / Malandro você não é / Porque não existe homem malandro pra mulher // Você já fez a primeira / Mas a segunda não faz / A partir de hoje os direitos são iguais (eu falei) // Dente por dente / Olho por olho / Se tentar me enganar / Bota a barba de molho (eu falei) // Diz o velho ditado / Com muita sabedoria / Gato escaldado sente medo de água fria // Meu amor vê se manera / Não é hora de brigar / Dançou fora do compasso eu pra lá você pra cá (e por isso) // Dente por dente / Olho por olho / Se tentar me enganar / Bota a barba de molho (eu falei)

Fontes: LP “Nos botequins da vida”, Beth Carvalho, RCA, 1977.
http://www.bethcarvalho.com.br

PRA QUE MENTIR?
Noel Rosa e  Oswaldo Gogliano (Vadico)- 1937

Pra que mentir

Se tu ainda não tens
Esse dom de saber iludir?
Pra quê? Pra que mentir,
Se não há necessidade de me trair?

Pra que mentir,
Se tu ainda não tens
A malícia de toda mulher?
Pra que mentir, se seu sei
Que gostas de outro
Que te diz que não te quer?

Pra que mentir tanto assim
Se tu sabes que eu já sei
Que tu não gostas de mim?
Se tu sabes que eu te quero
Apesar de ser traído
Pelo teu ódio sincero
Ou por teu amor fingido?

Fonte: Noel Rosa pela primeira vez. Noel Rosa (vol. 6, CD 11), Velas-270.126 - Ministério da Cultura e Funarte (Fundação Nacional da Arte), 2000.


DOM DE ILUDIR
Caetano Veloso

Não me venha falar
Na malícia de toda mulher
Cada um sabe a dor e a delícia
De ser o que é

Não me olhe como se a polícia
Andasse atrás de mim
Cale a boca
E não cale na boca
Notícia ruim

Você sabe explicar
Você sabe entender
Tudo bem
Você está, você é
Você faz, você quer
Você tem
Você diz a verdade
E a verdade é seu dom de iludir

Como pode querer que a mulher
Vá viver se mentir?

Fonte: VELOSO, Caetano. Letra só: sobre as letras. Organização: Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.


REMORSO
Noel Rosa

Remorso todos nós temos na vida
Para marcar a quadra dolorida
Que não se pode olvidar
Remorso muitas vezes é saudade
Da felicidade
Que não se soube aproveitar
Remorso é acompanhar o enterro
De um grande erro
Que não se pôde consertar.

Remorso é sonhar acordado
É sentir, no presente, o passado
É ver nas trevas um vulto
Que ameaça descobrir o segredo mais oculto.

Remorso é aquilo que tu sentes
Perto de alguém na hora em que tu mentes
Com sutilezas sem fim
Remorso é veneno em poesia
E eu hoje em dia
Vivo com ódio até de mim
Eu sofro com pena do teu remorso
E muito me esforço
Pra não ter tanta pena assim
(Remorso é aquilo que tu sentes...)

Fonte: Noel Rosa pela primeira vez. Noel Rosa (vol. 6, CD 11), Velas-270.126 - Ministério da Cultura e Funarte (Fundação Nacional da Arte), 2000.




 "O traidor não admite que trai, ao obedecer a impulso natural."

"Todos traímos um sonho, um ideal, uma ideia, e não sentimos desconfortáveis por isso."

Carlos Drummond de Andrade (In: O avesso das coisas - aforismos. Rio de Janeiro: Record, 1987)


Todas as pessoas deveriam aprender muito com a história de Frei Tito...

FREI TITO
Texto de Frei Betto musicado por Madan
Frei Tito de Alencar Lima
Foi preso em novembro de 1969, acusado de oferecer infraestrutura a Carlos Marighella. Tito é submetido a palmatória e choques elétricos, no Deops, em companhia de seus confrades.
Em fevereiro do ano seguinte, quando já se encontra em mãos da Justiça Militar, é retirado do presídio Tiradentes e levado para Operação Bandeirantes, mais tarde conhecida como DOI-Codi, "à" Rua Tutoia.
Durante três dias, batem sua cabeça na parede, queimam sua pele com brasa de cigarros e dão-lhe choques por todo o corpo, em especial na boca, "para receber a hóstia", gritam os algozes.
Fernando Gabeira, preso ao lado, tudo percebe. Querem que Tito denuncie quem o ajudou a conseguir o sítio em Ibiúna para o congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), em 1968, e assine depoimento atestando que dominicanos participaram de assalto a bancos. 
No limite de sua resistência, Tito corta com a gilete que lhe emprestaram para fazer a barba a artéria interna do cotovelo esquerdo. É socorrido a tempo no hospital militar, no Cambuci.
As incessantes torturas não abrem a boca do frade de 28 anos, mas lhe cindem a alma. Cumpre-se a profecia do capitão Albernaz, da Oban: "Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia".
Em dezembro de 1970, incluído na lista de presos políticos trocados pelo embaixador suiço Giovanni Bucher, sequestrado pela VPR de Lamarca, Tito é banido do Brasil pelo governo Médici.
De Santiago do Chile ruma para Paris, sem jamais recuperar sua harmonia interior.
Nas ruas da capital francesa, ele "vê" o espectro de seus torturadores.
... contorce-se em calafrios sob o fantasma do delegado Fleury. Sua mente naufraga em delírios.
No dia 10 de agosto de 1974, um estranho silêncio paira sob o céu azul do verão francês, envolvendo folhas, ventos, flores e pássaros. Nada se move. Entre o céu e a terra, sob a copa de um álamo, balança o corpo de Frei Tito, dependurado numa corda.
Do outro lado da vida, ele encontra a unidade perdida. Deixa registrado em seus papéis que "é melhor morrer do que perder a vida".
Fonte: CD "Madan", DB 0022, Dabliú Discos, 1997.