sábado, 14 de fevereiro de 2015

BODAS DE PRATA




           
          BODAS DE PRATA
Por Fábio Brito
Sobre “show” e CD que comemoram os vinte e cinco anos de carreira de Ithamara Koorax
  
        Em Piaf: no baile do acaso¹, obra sobre Édith Piaf, a grande dama da canção francesa,  encontramos um ensinamento (ou lição) que poderia servir de "lei" para todos os artistas de quaisquer áreas. Nossa diva alerta para o perigo das concessões: sabemos exatamente onde (e quando) elas começam, mas aonde elas nos levarão... é algo desconhecido.    
        Édith Piaf não se tornou a maior intérprete francesa de todos os tempos por mero acaso. Ninguém, em verdade, é extraordinário, ou excepcional, por acaso. Além, é claro, de um talento acima de qualquer modismo, o artista tem de saber administrar, ou conduzir, sua carreira. A meu ver, visando à eternidade não só da obra, mas do próprio artista, certos requisitos são imprescindíveis. Um deles é não fazer concessões a um mercado que, para amealhar seus milhões, trata arte como lixo não reciclável.
Sem fazer concessões e tratando ARTE como deve ser tratada, Ithamara Koorax, uma das grandes damas da canção no mundo, chega aos vinte e cinco anos de carreira desfrutando de um prestígio e um respeito de que poucos cantores/intérpretes no mundo desfrutaram ou desfrutam. Para comemorar, nossa diva lança o CD All around the world, sob a batuta de Arnaldo DeSouteiro, um dos mais competentes produtores musicais que já conheci. No repertório, guardado a sete chaves durante o período de gravação, somente obras-primas: Água de beber (Vinicius de Moraes / Tom Jobim), Black is beautiful (Marcos Valle / Paulo Sérgio Valle), A rã (Caetano Veloso / João Donato), Ela é carioca (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), Butterfly (H. Hancock / B. Maupin / J. Hancock), Primavera (Vai, chuva) [Cassiano / Sílvio Rochael], Cala boca menino (Cala a boca, menino) [Dorival Caymmi], Up from the skies (J. Hendrix), Brazilian birds / Amazing Grace / My favorite things (Trad./ R. Rodgers/ O. Hammerstein II), Brazilian Rhyme / What’s going on? (EW&F / M. Gaye / R. Benson / A. Cleveland), Mas que nada / A carrocinha pegou (Jorge Ben / Trad.).
            A casa “Aqua Bossa Lounge”, na Prudente de Moraes, esquina com a charmosa Farme de Amoedo (Ipanema/RJ), foi o local escolhido para o “show” de lançamento do CD. Mantendo o formato do espetáculo apresentado há poucos meses no “Santo Scenarium”, aconchegante espaço no centro do Rio, e acompanhada dos mesmos extraordinários músicos, Jorjão Carvalho (‘baixo’), Reinaldo Arias (teclados) e César Machado (bateria), nossa estrela, mais uma vez, esbanjou talento, carisma e simpatia.
            Entre os destaques da noite, uma impagável interpretação de A rã (Caetano Veloso / João Donato) que, conforme eu já disse noutros textos, foi a primeira canção que ouvi com IK, que a transformou num “hip hop” delicioso (CD “Elas cantam Caetano”, Continental/Warner Music Brasil, 1994). Daí meu mais que especial carinho por essa canção, que jogou um tapete vermelho para o desfile de um repertório único ao qual eu seria apresentado e que me comove deveras. No “show”, IK faz o que quer com a canção e com a voz: “Coro de cor / Sombra de som de cor / De malmequer / De malmequer de bem / De bem me diz / De me dizendo assim / Serei feliz de flor / De flor em flor / De samba em samba em som / De vai e vem / De verde verde ver / Pé de capim / Bico de pena pio de bem-te-vi / Amanhecendo sim / Perto de mim / Perto da claridade da manhã / A grama a lama tudo é / minha irmã / A rama o sapo o salto de / uma rã”. Dona de uma segurança musical incomparável, IK nos deixa boquiabertos com seus improvisos e seus agudos que lancinam. Quanto a estes, vale ressaltar que o momento em que ela “entoa o pio do bem-te-vi” é um delírio só. A plateia, com a respiração suspensa, agradece aos deuses essa garganta abençoada.  
            E foram muitas as canções que fizeram do lançamento do All around the worl uma noite incomparável: Recado bossa-nova (Durval Ferreira / Luís Antonio), que não poderia faltar, é sempre muito bem-vinda, não só pela melodia deliciosa, mas também pela letra simples e inteligente. Adoro essa canção! Ik canta-a com tanta naturalidade, que, quando a ouvimos, somos levados a achar que cantar é fácil. Ledo engano! A Lenda do guaraná, que ouvi pela primeira vez no Santo Scenarium, é parte de um projeto de Reinaldo Arias sobre as lendas amazônicas. Se as forças da natureza derem uma mãozinha, esse projeto virará CD e, quiçá, DVD. O que dizer de Human nature (John Bettis / Steve Porcaro)? Simplesmente um momento arrebatador do ‘show’. Do disco Thriller, de Michael Jackson, essa canção foi gravada aqui no Brasil por Dulce Quental, ex-integrante do grupo Sempre Livre. Ik, como não poderia ser diferente, recriou-a. Coautoria de verdade! Un homme et une femme (Francis Lai / Pierre Barouh), um clássico da canção francesa que IK gravou no festejado Serenade in blue – my favorite songs, é arrebatadora. The shadow of your smile (Johnny Mandel / Paul F. Webster), também do Serenade in blue, é outra pérola que está em praticamente todos os ‘shows’ de IK. Aos primeiros acordes, já sentimos que seremos enredados por uma atmosfera de puro prazer e inteligência interpretativa. Com arranjo sofisticado, Primavera (Vai, chuva) [Cassiano / Sílvio Rochael], um dos sucessos do primeiro disco de Tim Maia, lançado em 1970, ganhou de IK uma leitura requintada: porque mais lenta, conseguimos “viajar” na e com a melodia. Que maravilha (Jorge Ben[jor] / Toquinho), segundo o público, transforma-se sempre em “Ithamaravilha”. Além do talento costumeiro para interpretá-la, IK acrescenta doses consideráveis de charme à canção, em especial no verso “milhões de buzinas tocando em harmonia sem cessaaar”. Mas que nada, outro clássico de Jorge Ben(jor), é sempre um dos pontos altos dos espetáculos de IK. Perfeitamente entrosada com os músicos e repetindo um dos momentos mais aplaudidos nos “shows” do “Santo Scenarium”, Koorax, ao responder com precisão aos chamados da bateria de César Machado, improvisou de forma arrebatadora e contagiante. Com nossa diva, vamos ao céu!
Depois do “show” (depois de todos os “shows” de IK), fica a certeza de que Ithamara, apontada pela revista Downbeat como uma das melhores cantoras de jazz do mundo, deveria, aqui no Brasil, além de vender muito, lotar estádios e ginásios. Todavia, por estas bandas, ela ainda é vista por certas pessoas como uma cantora elitista (aqui, apenas as “cantoras de laboratório”, fabricadas em tempo recorde por “hábeis” produtores, lotam grandes espaços e vendem à beça). De onde vem essa ideia errônea e reacionária de que IK é admirada somente por uma elite? De sua ligação com o jazz? Talvez. Entretanto, é preciso que se perca esse ranço, esse “pré-conceito”, uma vez que, conforme lembra Gonçalo Junior em Quem samba tem alegria³, biografia do mestre Assis Valente, a música brasileira sofreu certa influência do jazz e do blues, cuja forma melódica, que não se perde, agrada às pessoas. Ou seja, se o jazz, assim como outros gêneros, está na raiz dessa mistura que se convencionou chamar de MPB, por que, então, o preconceito? Por que considerá-lo algo a que só uma elite tem acesso? Negar a história é inadmissível.
 Depois de assistir aos espetáculos da Ithamara e de ouvir seus discos, depois de tanto prazer, de tanto enleio, de tanto enlevo, resta-nos pedir a nossa diva que nos adapte, para sempre, a seu ne me quittes pas².   

¹ Piaf: no baile do acaso / Édith Piaf; prefácio de Jean Cocteau; posfácio de Fred Mella; apresentação e notas de Marc Robine; tradução Estela dos Santos Abreu. – São Paulo: Martins Fontes, 2007. – (Coleção Prosa). Obs.: embora narrado em primeira pessoa, o livro, segundo o apresentador, não foi escrito por Piaf, mas por Louis–René Dauven, jornalista “que se encarregou de dar forma à imensa matéria recolhida”. 
² Referência à canção “Rapte-me, camaleoa”, de Caetano Veloso. 
³ Gonçalo Junior. Quem samba tem alegria: a vida e o tempo do compositor Assis Valente. 1ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
  
T’avais un nom d’oiseau et tu chantais comm’ cent
Comm’ cent dix mille oiseaux
qu’auraient la gorge em sang...
  
Tinhas um nome de pássaro e cantavas como cem
Como cento e dez mil pássaros
Com a garganta em sangue...
Léo Ferré

Fonte: Piaf: no baile do acaso / Édith Piaf; prefácio de Jean Cocteau; posfácio de Fred Mella; apresentação e notas de Marc Robine; tradução Estela dos Santos Abreu. – São Paulo: Martins Fontes, 2007. – (Coleção Prosa).

“(...) Uma obra de arte é uma coisa viva. Qualquer obra de arte. Será viva ou não será arte. Uma sinfonia, uma peça teatral, um poema, um romance, um edifício. Alguém negará a força de vida (que ganha expressão às vezes extravagante) da arquitetura de Antonio Gaudí? ou da arquitetura de Oscar Niemeyer, onde a vida se quer voo, ondula e quer ganhar o espaço infinito? (...)”

Fonte: GULLAR, Ferreira. A obra necessária. In: Sobre arte, sobre poesia (uma luz do chão). Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.


"(...) A arte pode elevar o homem de um estado de fragmentação a um estado de ser íntegro, total. A arte capacita o homem para compreender a realidade e o ajuda não só a suportá-la como a transformá-la, aumentando-lhe a determinação de torná-la mais humana e mais hospitaleira para a humanidade. A arte, ela própria, é uma realidade social. A sociedade precisa do artista, este supremo feiticeiro, e tem o direito de pedir-lhe que ele seja consciente de sua função social. (...)"

Fonte: FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.


Fotos: Fábio Brito