domingo, 16 de dezembro de 2012

SEJAMOS, POIS, BOBOS



DAS VANTAGENS DE SER BOBO

- O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo.
- O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."
- Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.
- O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem.

- Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas.
- O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver.
- O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.
- Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro.

- Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.
- O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não nota que venceu.
- Aviso: não confundir bobos com burros.

- Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"
- Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
- Os bobos, com suas palhaçadas, devem estar todos no céu.

- Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
- O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.

- Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos.
- Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham vida.
- Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.
- Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita o ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!
- Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.

- É quase impossível evitar excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.


A FÚRIA DA BELEZA

Estupidamente bela
a beleza dessa maria-sem-vergonha rosa
soca meu peito esta manhã!
Estupendamente funda,
a beleza, quando é linda demais,
dá uma imagem feita só de sensações,
de modo que, apesar de não se ter a consciência desse todo,
naquele instante não nos falta nada.
É um pá. Um tapa. Um golpe.
Um bote que nos paralisa, organiza,
dispersa, conecta e completa!
Estonteantemente linda
a beleza doeu profundo no peito essa manhã.
Doeu tanto que eu dei de chorar,
por causa de uma flor comum e misteriosa do caminho.
Uma delicada flor ordinária,
brotada da trivialidade do mato,
nascida do varejo da natureza,
me deu espanto!
Me tirou a roupa, o rumo, o prumo
e me pôs a mesa...
é a porrada da beleza!
Eu dei de chorar de uma alegria funda,
quase tristeza.

Acontece às vezes e não avisa.
A coisa estarrece e abre-se um portal.
É uma dobradura do real, uma dimensão dele,
uma mágica à queima-roupa sem truque nenhum.
Porque é real.
Doeu a flor em mim tanto e com tanta força
que eu dei de soluçar!
O esplendor do que vi era pancada,
era baque e era bonito demais!

Penso, às vezes, que vivo para esse momento
indefinível, sagrado, material, cósmico,
quase molecular.
Posto que é mistério,
descrevê-lo exato perambula ermo
dentro da palavra impronunciável.
Sei que é dessa flechada de luz
que nasce o acontecimento poético.

Poesia é quando a iluminação zureta,
bela e furiosa desse espanto
se transforma em palavra!
A florzinha distraída
existindo singela na rua palelepípeda esta manhã
doeu profundo como se passasse do ponto.
Como aquele ponto do gozo,
como aquele ápice do prazer
que a gente pensa que vai até morrer!
Como aquele máximo indivisível,
que, de tão bom, é bom de doer,
aquele momento em que a gente pede pára
querendo e não podendo mais querer,
porque mais do que aquilo
não se aguenta mais,
sabe como é?

Violenta, às vezes, de tão bela, a beleza é!

LUCINDA, Elisa. A fúria da beleza. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.


FLUÊNCIA

Eu fiz um livro, mas oh meu Deus,
não perdi a poesia.
Hoje depois da festa,
quando me levantei pra fazer café,
uma densa neblina acinzentava os pastos,
as casas, as pessoas com embrulho de pão.
O fio indesmanchável da vida tecia seu curso.
Persistindo, a necessidade dos relógios,
dos descongestionantes nasais.
Meu livro sobre a mesa contraponteava exato
com os pardais, os urinóis pela metade,
o antigo e intenso desejar de um verso.
O relógio bateu sem assustar os farelos sobre a mesa.
Como antes, graças a Deus.

PRADO, Adélia. O coração disparado. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.


FELICIDADE

A doce tarde morre. E tão mansa
Ela esmorece,
Tão lentamente no céu de prece,
Que assim parece, toda repouso,
Como um suspiro de extinto gozo
De uma profunda, longa esperança
Que, enfim cumprida, morre, descansa...

E enquanto a mansa tarde agoniza,
Por entre a névoa fria do mar
Toda a minh’alma foge na brisa:
Tenho vontade de me matar!
Oh, ter vontade de me matar...
Bem sei é cousa que não se diz.
Que mais a vida me pode dar?
Sou tão feliz!

- Vem, noite mansa...

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.


PÁTIO

Com a tarde
Cansaram-se as duas ou três cores do pátio.
A grande franqueza da lua cheia
Já não entusiasma o seu habitual firmamento.
Hoje que o céu está frisado,
Dirá a crendice que morreu um anjinho.
Pátio, céu canalizado.
O pátio é a janela
Por onde Deus olha as almas.
O pátio é o declive
Por onde se derrama o céu na casa.
Serena
A eternidade espera na encruzilhada das estrelas.
Lindo é viver na amizade obscura
De um saguão, de uma aba de telhado e de uma cisterna.

BORGES, Jorge Luís Borges
(Trad.: Manuel Bandeira. In: BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007)

APROXIMAÇÕES


Clair de lune, chiaro de luna, claro de luna... mas os franceses, os italianos e os espanhóis saberão mesmo o que seja o luar, que nós bebemos de um trago numa palavra só?

QUINTANA, Mario. Caderno H. 2 ed. São Paulo: Globo, 2006.


TARDE DE DOMINGO

Tarde de domingo.
A vida escorrendo sob minha janela;
Rio de águas barrentas, preguiçoso.
Sei que ele se move porque, na parede,
Minha mãe tem um sorriso de moça.
A Morte vestiu o Movimento
E passeia fingindo ser a Vida
Nas ruas do mundo que eu vejo todo dia.
Mas, para mim, ela está desnuda.
É por isso que estou triste, e por isso quando
Pedaços das mortes de outras vidas caem
- Cinzas fugidas da Fogueira –
Na minha vida,
Tenho vontade de me derramar sobre o mundo
Como um copo que se derrama sobre a toalha...
                                                                              
 Rio, 1947.
FÉLIX, Moacyr. Singular plural. Rio de Janeiro: Record, 1998.


(...) Ai, Viramundo de minha vida, que vira Minas pelo avesso sem revelar aos meus olhos o seu mais impenetrável mistério. Ai, Minas de minha alma, alma de meu orgulho, orgulho de minha loucura, acendei uma luz no meu espírito, iluminai os desvãos do meu entendimento e mostrai-me onde se esconde esse vagabundo maravilhoso, esse meu irmão desvairado que no fundo vem a ser o melhor da minha razão de existir. Foi ele, esse iluminado de olhos cintilantes e cabelos desgrenhados que um dia saltou dentro de mim e gritou basta! num momento em que meu ser civilizado, bem penteado, bem vestido e ponderado dizia sim a uma injustiça. (...) Foi ele quem sofreu quando jovem a emoção de um desencanto, e chorou quando menino a perda de um brinquedo, debatendo-se na camisa-de-força com que tolhiam o seu protesto. Este ser engessado, contido, subjugado pela ordem iníqua dos racionais é o verdadeiro fulcro da minha verdadeira natureza, o cerne da minha condição de homem, herói e pobre-diabo, pária, negro, judeu, índio, cigano, santo, poeta, mendigo e débil mental, Viramundo! que um dia há de rebelar-se dentro de mim, enfim liberto, poderoso na sua fragilidade, terrível na pureza da sua loucura.
(...)
               SABINO, Fernando. O grande mentecapto. 46. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.


Em Cachoeiro

Chego à janela de minha casa e vejo que umas coisas mudaram. Ainda está ali a longa casa das Martins, a casa surpreendente de Dona Branquinha. Relembro os bigodes do coronel, e as moças que estavam sempre brigando porque nossa bola batia nas vidraças. Jogávamos descalços nas ruas de pedras irregulares e tínhamos os dedos e unhas dos pés escalavrados e fortes. Vista de fora, aquela casa podia parecer quente; mas ainda sinto na planta dos pés o frio bom de ladrilhos da ampla sala toda aberta para a sombra doce do pomar de romãs e carambolas; atrás do pomar o rio chorando. Ali está ainda a casa de meus tios onde antes moraram os Leões e os Medeiros. Agora até meu tio morreu, e no lugar do pé de cajá-manga há uma mangueira; e um renque de acácias espanholas, amarelas e vermelhas, corre sob as janelas do lado. Vão construir no terreno em frente, onde havia aquela interminável família de negros e depois os cachorros de caça do Nilo Nobre.
Estou cercado de lembranças - sombras, murmúrios, vozes da infância, preás, mandis e sanhaços; gosto de ingá na ilha do rio, fruta-pão assada com manteiga, fumegante no café da tarde, lagostins saindo das locas e passeando na areia nas tardes quentes, piaus vermelhos, lua atrás do Itabira, nomes que esquecera, aquela menina lourinha, filha de Seu Duarte, que morreu, enterro alegre de meu irmão, acho que Francisquinho, com nós todos esperando debaixo do caramanchão; e meu pai na cadeira de balanço, Zina guiando o Ford, pois passando para o matadouro, mulheres de lenço na cabeça descendo o Amarelo, vendendo ovos a um "florim" a dúzia; e escorregamos em folha de pita pelo morro abaixo até o açude... Mergulho nesse mundo misterioso e doce e passeio nele como um pequeno rei arbitrário que desconhece o tempo; ainda existe o colégio de Tia Gracinha, ainda existe o coqueiro junto da ponte do córrego; esfregamos nossos braços com urucu, e, para evitar frieira, temos sempre um barbante amarrado no tornozelo. São dezenas, centenas de lembranças graves e pueris que desfilam sem ordem, como se eu sonhasse. Entretando uma parte desse mundo perdido ainda existe e de modo tão natural e sereno que parece eterno; agora mesmo chupei um caju de 25 anos atrás.
É extraordinário que eu esteja aqui, nesta casa, nesta janela, e ao mesmo tempo é completamente natural e parece que toda minha vida fora daqui foi apenas uma excursão confusa e longa; moro aqui. Na verdade onde posso morar senão em minha casa?
(...)
        BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. 19 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.


QUERO
Thomas Roth

Quero ver o sol atrás do muro
Quero um refúgio que seja seguro
Uma nuvem branca, sem pó nem fumaça
Quero um mundo feito sem porta, vidraça
Quero uma estrada que leve à verdade
Quero a floresta em lugar da cidade
Uma estrela pura de ar respirável
Quero um lago limpo de água potável 
Quero voar de mãos dadas com você
Ganhar o espaço em bolhas de sabão
Escorregar pelas cachoeiras
Pintar o mundo de arco-íris 
Quero rodar nas asas do girassol
Fazer cristais com gotas de orvalho
Cobrir de flores campos de aço
Beijar de leve a face da lua

Fonte (LP) : "Quero", Elis Regina, Falso Brilhante, Philips 6349159, Rio de Janeiro, 1976.

http://youtu.be/Lhr4vb94vgY


PÉTALAS
Herbert Azul / Alceu Valença

As borboletas voam sobre o meu jardim
São cores vivas, pousam sobre as onze-horas
Nas rosas claras, violetas e jasmins
Um beija-flor traindo a rosa amarela
Beijou a bela margarida infiel
Papoula e dália estão cravadas de ciúmes
E o beija-flor beijando flores a granel
Pétalas, asas amareladas
Pétalas, espinho seco, folha, flor, lagarta
Pétalas
As flores voam e voltam na outra estação
Só serei flor quando tu flores no verão

Fonte (CD): "Pétalas", Clara Becker, Pétalas, Trama VP 001-2, s/d





quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

A VIDA É UMA ENCRENCA



O QUE É? O QUE É?
Luiz Gonzaga Jr.
Viver e não ter a vergonha de ser feliz
Cantar, e cantar, e cantar
A beleza de ser um eterno aprendiz
ai meu Deus, eu sei (eu sei)
Que a vida devia ser bem melhor
E será, mas isso não impede que eu repita
É bonita, é bonita, é bonita

E a vida, e a vida o que é diga lá meu irmão
Ela é a batida de um coração
Ela é uma doce ilusão, ê ô
E a vida, ela é maravilha ou é sofrimento
Ela é alegria ou lamento
O que é, o que é meu irmão
A quem fale que a vida da gente
É  um nada no mundo
É uma gota, é um tempo que nem dá um segundo
Há quem fale que é um divino mistério profundo
É o sopro do criador numa atitude repleta de amor
Você diz que é luta e prazer
Ele diz que a vida é viver
Ela diz que melhor é morrer
Pois amada não é, e o verbo é sofrer
Eu só sei que confio na moça
E na moça eu ponho a força da fé
Somos nós que fazemos a vida
Como der ou puder ou quiser
Sempre desejada
Por mais  que esteja errada
Ninguém quer a morte
Só saúde e sorte
A pergunta roda
E a cabeça agita
Eu fico com a pureza da resposta das crianças
É a vida, é bonita, é bonita
Viver
Fonte:  http://www.gonzaguinha.com.br


(...)
É difícil morrer com vida,
é difícil entender a vida,
não amar a vida impossível.
Infinita vida que para continuar desaparece
e toma outra forma e rebrota,
árvore podada se abrindo,
a raiz mergulhada em Deus.
(...)

PRADO, Adélia. O coração disparado. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.

 
          A VIDA É UMA ENCRENCA
          Por Fábio Brito
Lendo “A queda – as memórias de um pai em 424 passos”, de Diogo Mainardi, eis que, na p. 97, encontro um petardo de Giacomo Leopardi: “O que é a vida? A viagem de um manco e enfermo que, com um pesadíssimo fardo, caminha dia e noite, sem jamais repousar, pelas encostas de montanhas íngremes, na neve, no gelo, na chuva, no vento e no ardor do sol, até chegar à beira de um precipício ou de um fosso, e inevitavelmente cair”. Que soco na “boca do estômago”!, pensei.
Outro dia, num programa de TV, ouvi a atriz Imara Reis dizer que a vida é uma encrenca. É uma luta, uma batalha sairmos de uma etapa e chegarmos à seguinte. Tive de concordar com ela. Quando chegamos a uma “idade mais boazinha”, ou quando dela aproximamo-nos, as dificuldades parecem aumentar.
E essas dificuldades são infindas. Dias atrás, por exemplo, às pressas, resolvi comprar uma calça “jeans”. Ingenuamente, perguntei à vendedora se ela poderia mostrar-me algumas que tivessem cintura alta e pernas “largas” (eu não procurava uma "boca de sino", muito na moda na década de 70). Enfático, disse que não queria pernas “apertadinhas” e “cintura baixa”. Bobinho, achei que ela encontraria várias, ainda mais que a loja tinha – ou aparentava ter – um bom estoque. Engano meu. Depois de tirar calças e mais calças da prateleira, a moça disse que todas tinham cintura baixa e pernas apertadas. Eu lhe disse que todas as que me foram apresentadas até ficariam legais em mim, desde que eu usasse um “correntão” de prata no pescoço e boné com o “bico” voltado para trás. Mais: eu teria ainda de usar uma cueca “de marca”, claro!, com bons centímetros para fora da calça.  Aí, sim, eu estaria perfeito. Pediu-me, então, um tempo até que ela fosse procurar a calça “lá dentro”. O “lá dentro”, imaginei, ‘devia’ ser o almoxarifado do “refugo”, das peças que quase ninguém compra, que não têm saída.
Depois de um tempinho razoável, ela voltou com uma calça que, enfim, agradou-me. Eu não estava – juro! – à procura de uma marca famosa. Só queria uma que ficasse legal em mim. Queria apenas algo que me agradasse. Mesmo estando satisfeito, não deixei de tecer alguns comentários acerca de uma desconfiança que trago desde que fiz quarenta anos: o mundo é das pessoas magrinhas que têm entre quinze e vinte anos. As mais velhas e/ou gordinhas devem, então, procurar alguém que lhes confeccione roupas sob medida? Deve ser esse mesmo o caminho. Eu disse à moça que, da próxima vez, procurarei um alfaiate. Será que ainda existem alfaiates? Os gordinhos, no entanto, com algum esforço, encontram lojas especializadas, mas os velhos...
Querem outra batalha enfrentada pelas pessoas com mais de quarenta? A luta para preservar a saúde. Meu Deus, por que envelhecer é tão difícil? Convivi - e convivo – com idosos, e a luta é sempre a mesma: é comum a cabeça estar a mil, mas o corpo não ajudar. Há um descompasso muito grande entre corpo e cabeça. Minha avó sempre dizia que “velhice é uma desgraça”. Nunca me esqueço disso. Quando tentávamos argumentar e dizer-lhe que havia, sim, vantagens no envelhecimento, ela não perdia tempo: “ – Que vantagem? Vai me dizer que é a tal da experiência? E essa tal de experiência serve para quê? Para os outros, ‘né’?, porque, para mim, não serve mais: ‘tô’ no fim e não tenho mais tempo para usar a experiência”. Infelizmente, não posso tirar-lhe a razão. Com minha mãe, a história é parecida. Quando ela está preocupada com a velhice, digo-lhe que temos de encará-la apenas como “uma etapa”. Ela concorda, sim, mas não deixa de dar uma espetada: “ – É uma etapa, claro!, mas é a última, ‘né’”? Posso discordar? Claro que não!
E há mais batalhas para quem não é jovem. A luta continua. Já faz um tempo que, sempre que vou a algum médico, fico preocupado com os exames que, inevitavelmente, ele vai solicitar. Para aplacar um pouco a angústia, não abro o envelope e muito menos leio o conteúdo antes do médico. Prefiro passar no laboratório minutos antes da próxima consulta, marcada para eu mostrar os tais exames. Assim, evito a fadiga, o estresse. Conheço muitas pessoas que até abrem o envelope antes, mas apenas para que tenham tempo de inventar uma boa desculpa para um possível aumento das taxas. Prefiro minha estratégia. Mesmo assim, no momento em que o médico analisa os exames, olho para seu semblante e não deixo de ter medo. Como se isso não bastasse, vêm mais medos: se ele pede uma radiografia ou uma ressonância, por exemplo, o medo aumenta ainda mais. Ai, meu Deus, o que será que esses exames vão detectar? Outro dia, ouvi um rapaz – com mais de quarenta - contar-me uma história terrível: com dor na coluna, ele procurou um ortopedista, que, depois de uma radiografia, solicitou uma ressonância magnética. Resultado: a dor não era na coluna, mas no pâncreas. O diagnóstico foi estarrecedor: câncer com poucas chances de cura. Gelei quando ouvi essa história.
Com o envelhecimento, também surge o medo da perda das pessoas queridas. Quando éramos jovens, nossos avós, por exemplo, tinham a idade que nossos pais têm hoje. Quando éramos jovens, "ninguém" havia morrido. Hoje, porém, é inevitável, vez ou outra, contabilizarmos as "baixas". Fiz-me, há uns dias, a seguinte pergunta: “ - Nos últimos dez anos, quantas pessoas próximas perdi? Quantos vizinhos? Quantos conhecidos”? Melhor esquecer a resposta. 
Pois é, além de todos os medos, além da fragilidade do corpo, das rugas, da lentidão, do esquecimento, há o pavor – para a maioria dos velhos - da morte. Melhor, então, é não pensar nas doenças e na morte. Melhor é viver como Oscar Niemeyer, que, lúcido e bem próximo dos 105 anos, deixou-nos há pouco. Melhor é viver como D. Canô, mãe de Caetano Veloso e Maria Bethânia, que está lúcida, lúcida aos 105. Melhor é viver -  e envelhecer - como Fernanda Montenegro, “a” atriz brasileira, que, aos 83, está em plena atividade. Não lhe faltam convites, não lhe falta vigor. Melhor é viver – e envelhecer – como Bibi Ferreira, que, este ano, chegou aos 90. Para comemorar, um espetáculo em que, durante uma hora e dez, aproximadamente, junta canções de vários de seus espetáculos com uma voz impecável, que desafia o passar do tempo e suas agruras. Envelhecer, como disse a Fernanda, é inevitável. Envelheçamos, pois, com toda a dignidade do mundo, assim como Fernanda, Bibi, D. Canô, Oscar Niemeyer, Cleide Yáconis, Maria Della Costa, Nathália Timberg, Beatriz Segall, Lima Duarte e tantos outros. Morrer jovem é que não dá. 

a-vida-so-e-possivel-reinventada

REINVENÇÃO

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas…
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas
de ilusionismo… — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço…
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

MEIRELES, Cecília. Poesia completa - volume 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
VIDA
Chico Buarque

Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Deixei a fatia
Mais doce da vida
Na mesa dos homens
De vida vazia
Mas, vida, ali
Quem sabe, eu fui feliz

Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Verti minha vida
Nos cantos, na pia
Na casa dos homens
De vida vadia
Mas, vida, ali
Quem sabe, eu fui feliz

Luz, quero luz,
Sei que além das cortinas
São palcos azuis
E infinitas cortinas
Com palcos atrás
Arranca, vida
Estufa, veia
E pulsa, pulsa, pulsa
Pulsa, pulsa mais
Mais, quero mais
Nem que todos os barcos
Recolham ao cais
Que os faróis da costeira
Me lancem sinais
Arranca, vida
Estufa, vela
Me leva, leva longe
Longe, leva mais

Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Toquei na ferida
Nos nervos, nos fios
Nos olhos dos homens
De olhos sombrios
Mas, vida, ali
Eu sei que fui feliz


"(...) Sou aos poucos. Minha história é viver. E não tenho medo do fracasso. Que o fracasso me aniquile, quero a glória de viver (...)
Quando penso no que já vivi me parece que fui deixando meus corpos pelos caminhos (...)"

LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.



Acho que a vida anda passando a mão em mim.
Acho que a vida anda passando.
Acho que a vida anda.
Em mim a vida anda.
Acho que há vida em mim.
A vida em mim anda passando.
Acho que a vida anda passando a mão em mim.

MOSÉ, Viviane. Pensamento chão. Rio de Janeiro: Record, 2007;


(...)
Lágrimas escorrem dos olhos como um rio transparente.
Da mesma forma palavras derramam das mãos.
Na verdade acho que todas as coisas derramam.
Viver é um exercício de contenção.

A vida é uma pausa do jorro. Um instante de duração.

MOSÉ, Viviane. Desato. Rio de Janeiro: Record, 2006.


ALENTO

Quando mais nada houver,
eu me erguerei cantando,
saudando a vida
com meu corpo de cavalo jovem.

E numa louca corrida
entregarei meu ser ao ser do Tempo
e a minha voz à doce voz do vento.

Despojado do que já não há
solto no vazio do que ainda não veio,
minha boca cantará
cantos de alívio pelo que se foi,
cantos de espera pelo que há de vir.

ABREU, Caio Fernando. Caio3D: o essencial da década de 1970. Rio de Janeiro: Agir, 2005.


COISAS NUMERADAS DE UM A TRINTA E CINCO

XXVII

A vida nutre-se da morte, e não a morte da vida, como julgam alguns pessimistas.

Quintana, Mario. Caderno H. 2. ed. São Paulo: Globo, 2006.

DESPEDIDA

Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro.

De fato
nesse momento
estarão em mim se arrebentando
raízes tão fundas
quanto estes céus brasileiros.

Num alarido de gente e ventania
olhos que amei
rostos amigos tardes e verões vividos
estarão gritando a meus ouvidos
para que eu fique
para que eu fique.

Não chorarei.
Não há soluço maior que despedir-se da vida.

GULLAR, Ferreira. Barulhos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.


MÃO ÚNICA

- É proibido
voltar atrás
e chorar.

FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac  Naify, 2006.