quarta-feira, 13 de julho de 2016

SONHO E PESADELO


BLUES DA PIEDADE
Cazuza / Frejat

Agora eu vou cantar pros miseráveis
Que vagam pelo mundo derrotados
Pra essas sementes mal plantadas
Que já nascem com cara de abortadas

Pras pessoas de alma bem pequena
Remoendo pequenos problemas
Querendo sempre aquilo que não têm

Pra quem vê a luz
Mas não ilumina suas minicertezas
Vive contando dinheiro
E não muda quando é lua cheia

Pra quem não sabe amar
Fica esperando
Alguém que caiba no seu sonho
Como varizes que vão aumentando
Como insetos em volta da lâmpada

Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem

Quero cantar só para as pessoas fracas
Que tão no mundo e perderam a viagem
Quero cantar o blues
Com o pastor e o bumbo na praça

Vamos pedir piedade
Pois há um incêndio sob a chuva rala
Somos iguais em desgraça
Vamos cantar o blues da piedade

Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem





SONHO E PESADELO 
Por Fábio Brito 

Outro dia, saí à cata de uns vídeos interessantes no YouTube, o que é uma terapia e tanto, desde que saibamos escolher, claro, porque o lixo também prolifera. Depois de assistir a várias entrevistas e ouvir inúmeras canções, eis que deparo com uma gravação que mostra um “repórter” fazendo a cobertura de uma passeata (dessas em que as pessoas se enrolam na bandeira do Brasil e gritam, a plenos pulmões, que “o meu partido é o meu país) no Rio de Janeiro, mais precisamente na zona sul. O vídeo é curto, mas o suficiente para confirmar a existência de um “contrato” (quem o terá criado?) que reza que “certa classe social” e "os pobres” não podem ocupar os mesmos espaços. No vídeo a que me refiro, uma senhora dessa “classe” está indignada (“bufando fagulhas”) porque um grupo de jovens da zona norte “invade” a passeata de que ela participa (a "sua" passeata, ao que parece). Não lembro exatamente as palavras que ela usou, mas algo mais ou menos nesta linha: “Eles que esperem a passeata ‘deles’”. Ou seja, daí a uns dias, haveria uma passeata com militantes do PT e simpatizantes do governo da Presidenta Dilma Rousseff. E aí?

Lembrei-me, então, de que Marilena Chaui, “a” filósofa, sempre põe os pingos nos “is” seja qual for o assunto. Quando a conversa é sobre “certa classe”, então, suas falas chegam a ser catárticas para mim. Sinto-me "pra" lá de representado. Num dos muitos vídeos com Chaui a que assisti, ela diz que a "tal classe" tem um sonho e um pesadelo. Este se refere ao fato de essa classe andar "apavorada com os programas sociais" que, nos últimos governos, favoreceram as pessoas menos privilegiadas. Ou seja, pobre, agora, chegou à universidade, frequenta aeroportos e tem carro, entre outros benefícios. Todavia, os oligarcas de meia tigela não suportam isso. Que pesadelo, "hein"! Impossível não citar Marcos Bagno¹: "(...) o homem branco da oligarquia não suporta perder. Não admite ninguém mais no jogo. Só ele e seus iguais. Mulheres, já pro gineceu. Índios, pra debaixo da terra. Negros, na senzala. Gays, lésbicas e transexuais, no cemitério. Pobres, pra debaixo da ponte ou pra cima dos morros (...)". Só pesadelo! Quanto ao sonho, este merece um texto à parte. No entanto, vamos tentar discorrer sobre ele aqui mesmo, neste exíguo espaço.
Bom, segundo Chaui, o sonho "de certa classe" é que ela quer ser parte da classe dominante. Não vai ser nunca, é evidente!, porque "o que define a classe dominante", segundo a própria Chaui, "é a propriedade privada dos meios sociais de produção". Entretanto, ela, "a tal classe", não sabe disso. Desconhecendo essa informação básica, descabela-se e mergulha fundo no consumo. Quer tudo! Querem exemplos do que "ela" mais ambiciona? Ih, não faltam! 
Viagens. Ah, as viagens! Como gosta de viajar, principalmente para New York. Não pense, porém, que a maioria vai a estudos ou à procura de arte.Vai, sim, é atrás de bugigangas mil. Os chamados "bens culturais" estão fora de qualquer lista. Afastem dessa classe (há honrosas exceções, é claro!) esse cálice envenenado! Quase tão pior do que somente querer New York e suas bugigangas é nem lembrar certos lugares a que se foi. Quando perguntam a algumas pessoas se estiveram em determinada cidade, precisam consultar as anotações (agora, não mais no caderninho, mas no celular ou noutra "tralha" qualquer). Incrível, não? Atenção para este diálogo: 

"- Já foi a Helsinque?"
" - Espere aí. Deixe-me consultar". 

Deus meu! A pessoa não lembra. Ligou o "automático" e pronto. Alguém deve ter dito que "toda pessoa chique deve ir a Helsinque". O coitado foi... Simplesmente foi. 
Outro sonho de consumo da "tal classe" é carro. Como gosta de carro essa classe! E só de carrões. De preferência, caminhonetes, daquelas com "cabines" duplas, dentro das quais se pode erguer até uma casa. Atenção para o que ouvi outro dia: um rapaz que pensa ser "da tal classe" disse que sua mulher (ele disse "esposa") quer muito uma Hilux (deve sonhar o tempo todo, pensei), mas o problema é estacionar no "shopping" (a criatura não deve fazer mais nada na vida). Carros assim dão muito trabalho em estacionamentos como os dos "shoppings". É muito ruim para entrar e, principalmente, para manobrar lá dentro. Fico pensando na aflição dessas pessoas. Morro de pena. No "facebook" mesmo, "viraemexe", encontro uma criatura posando ao lado do carro que acabou de comprar. Como parte do ritual, ergue-se a chave do "presentaço", que, geralmente, foi dado por Deus (fazem questão de frisar isso no texto que acompanha as fotos). Agora, um detalhe cruel: o carnê, que não tardará a pousar na caixa de correspondência, tem mais folhas que "A montanha mágica", do Thomas Mann. Ai, que dó! A criatura vai adentrar outra encarnação sem ter "terminado de pagar" o presente de Deus. Se não conseguir, correrá o risco de ir para o inferno. A inadimplência bate à sua porta, camarada. Como ficará, agora, a relação com Deus, que tem sido tão bonzinho a ponto, inclusive, de presentear a criatura com um "carrão"? Relação abalada, é óbvio. Seriamente abalada. Ainda bem que os boletos não estão em nome de Nosso Senhor. Ainda bem! Já imaginou Deus no SPC? Nem pensar! Com o correr do tempo, tudo se ajeita. Logo, vão correr atrás de um, dois ou até três empregos. Vão "virar madrugadas", se preciso for, mas não vão deixar de consumir tudo de que necessitam. Disposição não lhes falta. Vão acabar com a saúde, mas não lhes faltará uma renda compatível com a  "posição" pela qual tanto lutaram.   
E os sonhos de consumo não param. Estou aqui a pensar nos filhos da "tal classe". Como sofrem essas crianças! De manhã, escola; à tarde,  balé, piano, aula de inglês, espanhol e, se sobrar um tempinho, alemão, que é muito chique (ninguém conhece, "né"!), além de reforço escolar (é... a escola particular não está dando conta) e natação; à noite, os deveres de casa esperam essas pobres e estressadas crianças. Se elas não derem conta dessas tarefas simples, dois castigos não podem faltar: ficam sem celular e sem mesada. Ai, meus sais!
Para fechar, não posso deixar de lado a caridade, item de que muita gente da "tal classe" não abre mão. Caridade... vamos ao dicionário. Deixe para lá! Minha mãe me deu a melhor definição desse termo: "Caridade, para mim, é o amor ao próximo", o que inclui a empregada doméstica. Lembrei, neste instante, um exemplo de atitude caridosa: outro dia, ouvi (ninguém me contou) um relato de uma doméstica que trabalhou durante quase dois anos na casa de uma pessoa caridosa (extremamente caridosa). Sua rotina (da doméstica) era esta: chegava ao trabalho às 7 horas. Antes, porém, passava na padaria e comprava um pão (seco, sem manteiga, queijo ou presunto) e levava de casa uma garrafinha de café. Quando chegava ao "serviço", a mesa do café já havia sido "retirada" e haviam passado chave no armário onde ficavam pães, biscoitos, bolos e outros pequenos luxos. Vamos a mais detalhes: a moça havia sido contratada para ser doméstica, mas, com o avançar dos dias, passou a ser também "cuidadora de idoso". No caso, um senhor implicante, "resmungão" e preconceituoso (a canalhice também tem cabelos brancos). Resultado: a "escravéstica" pediu demissão. Ela não aguentou tanta "caridade". Dias depois de ter saído do tal emprego, perguntou se achei correta sua atitude. Eu lhe disse, sem pensar muito, que ela nem deveria ter entrado. Melhor sair por aí catando papel, puxando "burro sem rabo", o que é "pra" lá de digno.  Melhor do que ajudar a "bater panelas" sem afinação! Tchau!  

¹http://www.carosamigos.com.br/index.php/revista/219-edicao-231/7177-falar-brasileiro-e-golpe-e-golpe-e-golpe


A maior desgraça de uma nação pobre é que, em vez de produzir riqueza, produz ricos. Mas ricos sem riqueza. Na realidade, melhor seria chamá-los não de ricos, mas de endinheirados. Rico é quem possui meios de produção. Rico é quem gera dinheiro e dá emprego. Endinheirado é quem simplesmente tem dinheiro. Ou que pensa que tem. Porque, na realidade, o dinheiro é que o tem a ele.

O maior sonho dos nossos novos-ricos é, afinal, muito pequenito: um carro de luxo, umas efêmeras cintilâncias. Mas a luxuosa viatura não pode sonhar muito, sacudida pelos buracos das avenidas. O Mercedes e o BMW não podem fazer inteiro uso dos seus brilhos, ocupados que estão em se esquivar entre chapas, muito convexos e estradas muito côncavas. A existência de estradas boas dependeria de outro tipo de riqueza. Uma riqueza que servisse à cidade. E a riqueza dos nossos novos-ricos nasceu de um movimento contrário: do empobrecimento da cidade e da sociedade.

http://www.citador.pt/textos/sao-demasiado-pobres-os-nossos-ricos-mia-couto


PRA QUE DISCUTIR COM MADAME
Janet de Almeida / Haroldo Barbosa

Madame diz que a raça não melhora
Que a vida piora por causa do samba
Madame diz que o samba tem pecado 
Que o samba, coitado, devia acabar
Madame diz que o samba tem cachaça
Mistura de raça, mistura de cor
Madame diz que o samba democrata
É música barata sem nenhum valor

Vamos acabar com o samba
Madame não gosta que ninguém sambe
Vive dizendo que o samba é vexame
Pra que discutir com madame

No carnaval que vem também concorro
Meu bloco de morro vai cantar ópera
E na avenida entre mil apertos
Vocês vão ver gente cantando concerto
Madame tem um parafuso a menos
Só fala veneno, meu Deus, que horror
O samba brasileiro democrata
Brasileiro na batata é que tem valor


POBRES DE NÓS, POBRES
Josias de Souza 
1999

Somos a sobra do mercado, o sub-homem, o ser que não é, o ser que já era, o espermatozoide que não deu certo, o ontem sem amanhã, o etc. do processo de globalização.
Somos a prova viva da existência de algo que não existe, um número sem cara na planilha de desemprego do IBGE.
Somos o ócio à revelia, a improdutividade "full time", a queda sem fim, o destino de mão única, o caos levado às últimas consequências.
Somos a boca vã, o estômago fora de si, a dieta compulsória, o cadáver nato, o recheio de sepultura.
Somos a morte em suaves prestações, o desnecessário que ousa respirar.
Somos o ator sem enredo, a matéria-prima do (s)ociólogo, o assunto que não interessa, o vulto que ninguém vê.
Somos a poluição na paisagem da Oscar Freire, o medo no semáforo, o lucro da companhia de segurança, a ameaça ao "happy end".
Na época em que o socialismo servia de muleta, tínhamos o paraíso utópico na virada da esquina. Mas a história nos deu um chute. Levamos um pontapé ideológico. E viramos detrito.
Somos a vergonha sob o viaduto, o resultado do cruzamento da falta de túnel com a ausência de luz, o crente à espera de que Deus tire um milagre da manga.
O curioso é que não temos inimigos. Todo o Brasil está do nosso lado. Ninguém é contra nós. Existimos para aliviar a consciência da nação preocupada. O fim do escândalo social aniquilaria a boa intenção.
Continuamos morrendo aos pouquinhos para que nossa salvação seja preservada como ideal retórico. Nossa morte é terapêutica.

(...)



PODRES PODERES
Caetano Veloso

Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais

Queria querer gritar setecentas mil vezes
Como são lindos, como são lindos os burgueses
E os japoneses
Mas tudo é muito mais

Será que nunca faremos senão confirmar
A incompetência da América católica
Que sempre precisará de ridículos tiranos?

Será, será que será que será que será
Será que esta minha estúpida retórica
Terá que soar, terá que se ouvir
Por mais zil anos?

Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Índios e padres e bichas, negros e mulheres
E adolescentes fazem o carvanal

Queria querer cantar afinado com eles
Silenciar em respeito ao seu transe, num êxtase
Ser indecente
Mas tudo é muito mau

Ou então cada paisano e cada capataz
Com sua burrice fará jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades,  caatingas
e nos Gerais?

Será que apenas os hermetismos pascoais
Os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão dessas trevas
E nada mais?

Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Morrer e matar de fome, de raiva e de sede
São tantas vezes gestos naturais

Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo
Daqueles que velam pela alegria do mundo
Indo mais fundo
Tins e bens e tais