domingo, 2 de fevereiro de 2014

"QUERO A VIDA SEMPRE ASSIM..."





                                          Fotos: Fábio Brito


“QUERO A VIDA SEMPRE ASSIM...”*
Por Fábio Brito
Mais uma vez, as musas Euterpe e Arche fizeram-se presentes e abençoaram um espetáculo musical irretocável: Ithamara Koorax, nossa estrela internacional, encerra mais uma temporada no “Horse’s Neck", um espaço ‘pra’ lá de aconchegante no Sofitel de Copacabana, Rio, que é, para mim, o tal “terraço à beira-bar” de que nos fala a letra de “Fotografia”, de Jobim.
Com uma carreira vitoriosa de mais de duas décadas de ininterrupta produção e apresentações não só no Brasil, mas no exterior, principalmente, nossa diva trouxe-nos um ‘show’ cujo repertório passeia pelos álbuns lançados até o momento e pinça raridades que ela ainda não gravou. Para acompanhá-la, um trio de craques: Lulu Martin nos teclados, Jaime Aklander no baixo e Haroldo Jobim na bateria, o que me faz afirmar, novamente, que, tanto em disco quanto em ‘shows’, Ithamara dá espaço para que todos brilhem. Sob a batuta de Arnaldo DeSouteiro, competentíssimo e habilidoso produtor musical e uma das pessoas que mais conhecem música neste país, nossa diva abriu alas para que o público pudesse desfrutar de uma noite espetacular, única.
Entre as muitas canções que, durante mais de três horas (foram dois ‘shows’) deixaram boquiaberto e comovido o público que lotou o “Horse’s Neck”, estão várias do "maestro soberano", Tom Jobim, e que já se tornaram cavalos de batalha de nossa estrela maior: “Fotografia” e “Corcovado”, minhas preferidas do maestro; “Meditação”, com o Newton Mendonça, que é para “quem acreditou no amor, no sorriso e na flor”; “Lígia”, que não nos sai da cabeça, talvez pela simplicidade da letra; “Você vai ver”, uma bela e pouco conhecida canção do Tom que, para mim, ainda era inédita na voz da Ithamara; "Insensatez", uma das mais delicadas letras da safra jobiniana; “Garota de Ipanema”, em parceria com o Vinicius, o “Poetinha”, e que voltou no “bis”. É... o povo, que não queria que o ‘show’ terminasse, pediu “bis”. Não houve quem não acompanhasse nossa estrela num dos maiores clássicos da MPB e uma das canções brasileiras mais conhecidas no mundo todo. Momento ímpar.
“Mas que nada” e “Que maravilha”, ambas de Jorge Ben (a segunda em parceria com Toquinho), mas dos tempos em que ele ainda não havia adotado o “Benjor”, foram momentos encantadores. O público, em coro, cantou junto com Ithamara esses dois clássicos da MPB que, assim como muitas do Jobim, do Ivan e do Bituca, são conhecidíssimas no mundo todo. Não há quem não as conheça. Sobre “Mas que nada”, em especial, há que se ressaltar a apoteose em que se transforma essa canção sempre que Ithamara a interpreta. Desta vez, não foi diferente: ela fez e aconteceu. Improvisou adoidado. Brincou – levando a sério a brincadeira, claro! – com a canção. Os músicos, em fina sintonia, acompanharam-na com perfeição. Aliás, sobre essa música, não posso deixar de dizer que, em “Friends from Brazil 2001”, disco lançado na Itália e produzido para a “Jazz Station Records” (JSR) por ninguém mais, ninguém menos que Arnaldo DeSouteiro, Koorax, junto com Dom Um Romão, dá um banho de interpretação. Taí uma aula de ritmo, musicalidade e tudo o mais. Em nove minutos e onze segundos, Dom Um e Ithamara fazem o que querem com a canção, que passou a ser “deles”, claro! Viraram-na do avesso. Recriaram-na totalmente. Ao fim, como músicas incidentais, lançaram mão de “A carrocinha pegou” e “Zum-zum”. “Mas que nada”, depois das interpretações de Ithamara, passou a ser “Mais que tudo”.  
Lá pela metade do espetáculo, eis que somos brindados com “Zum-zum”, marcha de Fernando Lobo e Paulo Soledade lançada por Dalva de Oliveira no carnaval de 51. Foi José Roberto Bertrami, músico que acompanhou Ithamara durante vários anos, integrou o lendário grupo Azimuth e faleceu recentemente, quem ensinou essa canção à nossa estrela. O público não se conteve: cantou junto. É maravilhoso ver uma canção composta há sessenta e três anos continuar tão presente, tão viva. É... música tem desses mistérios. Ela guarda o tempo. “Música é perfume”.
“Recado Bossa Nova” e “Samba de verão” também são dois momentos primorosos do ‘show’. A primeira, de Djalma Ferreira e Luís Antonio, tem, como eu já disse noutro texto, uma das metáforas mais bonitas de nosso cancioneiro: “Saudade, meu moleque de recado / não diga que eu me encontro nesse estado”; a segunda, uma parceria de Marcos e Paulo Sérgio Valle, é uma canção contagiante: “Você viu só que amor / Nunca vi coisa assim / E passou, nem parou / Mas olhou só pra mim / Se voltar, vou atrás / Vou pedir, vou falar / Vou dizer que o amor / Foi feitinho pra dar / Olha, é como o verão / Quente o coração (...)”. Depois de ouvi-la, temos a certeza de que vamos “cantarolá-la” durante vários dias.
“Hô-bá-lá-lá” (João Gilberto) e “Bim bom” (João Gilberto) são do repertório do “papa” João Gilberto, sempre reverenciado por nossa diva.  Estão em praticamente todos os seus ‘shows’. São duas canções que também nos contagiam à primeira “ouvida”. Ithamara sempre as recria magistralmente.
“Aviso aos navegantes (SOS solidão)” [Lulu Santos] e “Lugar comum” (Gilberto Gil / João Donato) são duas canções que Ithamara não esquece. A primeira, uma sugestão de João Gilberto, também conta com o “acompanhamento” do público, que, imediatamente, lembra-se da gravação do Lulu; na segunda, fica muito evidente a intérprete extraordinária que Ithamara é, porque ela sabe, conhece o subtexto da canção (de todas as canções, claro!). Com a interpretação, “entramos” na música. Fazemos uma espécie de mergulho.
Do repertório internacional, “Autumn in New York” (Vernon Duke) foi um momento especial do espetáculo. A canção – belíssima, por sinal - dá nome a um dos mais emblemáticos e importantes discos da carreira de Ithamara, lançado em 2004 e que é puro ‘jazz’. Para mim, esse disco é a comprovação de que Ithamara merece – e muito! - estar entre as damas do Jazz na caixa “Jazz Ladies”, lançada pela Warner Jazz francesa em 2001. Um detalhe importantíssimo é que nossa diva é a mais nova das extraordinárias cantoras que fazem parte dessa caixa, que traz duas brasileiras apenas: além de Koorax, Flora Purim.  Belo e alto voo!
Ainda da seara internacional, Koorax nos brinda com “Um homme et une femme” (Francis Lai / Pierre Barough) e “The shadow of your smile” (Johnny Mandel / Paul Francis Webster), ambas do “Serenede in blue – my favorite songs”, álbum que, segundo a própria Ithamara, abriu-lhe as portas do mercado internacional. Estão aí dois belos e irretocáveis momentos do ‘show’. “Up, up and away”, do aclamadíssimo “Got to be real”, um dos últimos lançamentos de Ithamara e sucesso absoluto no exterior, é um dos grandes destaques do espetáculo. Originalmente um “jingle”, a canção de Jimmy Webb é uma velha conhecida do público. “Can’t take my eyes of you”, de Bob Crewe e Bob Gaudio, é um caso à parte. Todos a identificam logo que ouvem os primeiros acordes. Mesmo com letra em inglês, ela é ‘pra’ lá de contagiante e conta sempre com o coro do público, seja qual for o lugar em que Ithamara se apresente. E a canção é linda mesmo. Poucos sabem, mas Elis Regina, a “Pimentinha”, também a gravou. Quem quiser conferir, é só procurar o disco “Elis no Teatro da Praia com Miele”, de 1970. 
“Bluesette”, de Toots Thieleman, famoso gaitista belga que também já gravou com Elis Regina, e “All blues”, da lenda Miles Davis, foram, para mim, duas gratas surpresas da noite. Foram dois momentos inebriantes, primorosos do espetáculo. Enquanto Ithamara as interpretava, foi possível perceber, claramente, o silêncio e o respeito do público. Não é todo dia que temos o privilégio de ouvir tais canções...  
E eu não poderia deixar de comentar um dos momentos mais sublimes e encantadores da noite: a interpretação da “Ária na corda sol da suíte nº 3”, de Johann Sebastian Bach. Do repertório clássico de Ithamara, essa canção sempre ‘me’ leva às lágrimas. Quando a interpreta, Koorax o faz não apenas com a voz da cabeça, mas com a do corpo todo, que vibra. É uma viagem na qual nós, público, também embarcamos. Pura comoção.
E o ‘show’ não para por aí. Koorax interpretou – divinamente, como sempre – várias outras canções. Todas com um quê de novidade. Algumas são recorrentes em suas apresentações, mas, ao mesmo tempo, elas são sempre novas, porque a intérprete jamais “copia e cola”. Quem quiser assistir ao próximo espetáculo e, inadvertidamente, tentar encontrar a Ithamara do mais recente ‘show’, ou de qualquer outro, vai se decepcionar. Ela já será outra. Repetição é palavra que está fora de seu léxico. Daqui a pouco, ela terá apurado ainda mais (será que mais apuro é possível?) sua técnica insuperável, suas incríveis divisões, seus graves certeiros e seus agudos bem ‘pra’ lá de desafiadores. E tudo estará, certamente, impecável.
Depois de assistir a mais um espetáculo dessa diva que conquistou o mundo, fica em mim a certeza de que todos que lá estivemos ‘fomos’ tomados de um entusiasmo fora do comum. E vale lembrar que, etimologicamente, “entusiasmar-se” é ter Deus dentro de si. Obrigado, Ithamara, por mais um momento de puro, sincero e verdadeiro entusiasmo... em seu sentido primeiro. Seu canto é uma bênção para todos nós. Por isso, "quero a vida sempre assim", com você sempre perto da gente e cantando cada vez mais...
*Da canção “Corcovado”, de Antonio Carlos Jobim


QUE MARAVILHA
Jorge Ben / Toquinho

Lá fora está chovendo
Mas assim mesmo eu vou correndo
Só pra ver o meu amor
pois ela vem toda de branco
Toda molhada, linda e despenteada,
que maravilha
Que coisa linda que é o meu amor
Por entre bancários, jatomóveis,
ruas e avenidas
Milhões de buzinas tocando em
harmonia sem cessar
Ela vem chegando de branco, meiga,
Pura, linda e muito tímida
Com a chuva molhando o seu
corpo lindo
Que eu vou abraçar
E a gente no meio da rua, do mundo
No meio da chuva, a girar
Que maravilha
A girar...

In: “Jorge Ben 10 anos depois”, 1973, PolyGram; caixa “Salve, Jorge!”, Universal, 2009.


MAS QUE NADA
Jorge Ben

Ô, ariá, raiô
Obá, Obá, Obá

Mas que nada
Sai da minha frente
Eu quero passar
Pois o samba está animado
O que eu quero é sambar
Esse samba
Que é misto de maracatu
É samba de preto velho
Samba de preto tu

Mas que nada
Um samba como este tão legal
Você não vai querer
Que eu chegue no final

Ô, ariá, raio
Obá, Obá, Obá

In: Jorge ben, “Samba Esquema Novo”, PolyGram, 1963; caixa “Salve, Jorge!”, 2009.


SAMBA DE VERÃO
Marcos Valle / Paulo Sérgio Valle

Você viu só que amor
Nunca vi coisa assim
E passou, nem parou
Mas olhou só pra mim
Se voltar, vou atrás
Vou perdir, vou falar
Vou contar que o amor
Foi feitinho pra dar
Olha, é como o verão
Quente o coração
Salta de repente só pra ver a menina que vem
Ela vem, sempre tem
Esse mar no olhar
E vai ver, tem que ser
Nunca tem quem amar
Hoje sim, diz que sim
Já cansei de esperar
Nem parei, nem dormi
Só pensando em me dar
Peço, mas você não vem
Bem
Deixo então, falo só
Digo ao céu, mas você vem

In: “Songbook Marcos Valle”, vol. 1, Lumiar Discos, LD3803/98.

VOCÊ VAI VER
Tom Jobim

Você vai ver
Você vai implorar, me pedir pra voltar
E eu vou dizer
Dessa vez não vai dar
Eu fui gostar de você
Dei carinho, amor pra valer
Dei tanto amor
Mas você queria só prazer
Você zombou
E brincou com as coisas mais sérias que eu fiz
Quando eu tentei
Com você ser feliz
Era tão forte a ilusão
Que prendia o meu coração
Você matou a ilusão
Libertou meu coração
Hoje é você que vai ter de chorar
Você vai ver

In: “Songbook Antonio Carlos Jobim”, vol. 2, Lumiar Discos, 1995/96.

 
RECADO BOSSA NOVA
Djalma Ferreira / Luís Antonio

Você errou
Quando olhou pra mim
Uma esperança fez nascer em mim
Depois levou pra tão longe de nós
Seu olhar no meu
A sua voz

Você deixou
Sem querer deixar
Uma saudade enorme em seu lugar
Depois nós dois cada qual
À mercê do seu destino
Você sem mim
Eu sem você

Saudade, meu moleque de recado
Não diga que eu me encontro nesse estado

In: Ithamara Koorax, “Wave 2001 – Songbook Bossa Nova”, 1997.