domingo, 14 de dezembro de 2014

APOTEOSE

Foto: Fábio Brito





Foto: Fábio Brito 

       
APOTEOSE
Por Fábio Brito
Sobre ‘show’ de Ithamara Koorax no “Santo Scenarium”...
                Um santuário é um lugar de segredos. Para Fílon, entrar num santuário equivale a adentar os mistérios divinos. Trata-se de um local praticamente intocável, que guarda tesouros essenciais.
E foi exatamente num santuário que entramos dia 29 de novembro: o Santo Scenarium. Localizado estrategicamente na Rua do Lavradio, na mítica Lapa, na mais encantadora das cidades brasileiras, o Rio de Janeiro, esse restaurante é um maravilhoso espaço com ótima gastronomia e onde reinam o jazz e a música instrumental. Na companhia de muitas imagens e pinturas de santos, quem lá compareceu teve a oportunidade de avaliar uma vez mais a real dimensão da importância de Ithamara Koorax no cenário da música no mundo. Em verdade, a apresentação foi mais que um show: foi um espetáculo!, como todos que ela vem apresentando ao longo de sua iluminada carreira, iniciada oficialmente em 1993 com o disco “It(h)mara Koorax ao vivo – com Maurício Carrilho e Paulo Malaguti” (em sua edição japonesa, esse disco foi batizado de “Luiza”, canção do mestre Jobim que integra o repertório).
Desta vez, para acompanhá-la, Koorax convidou três músicos com larga experiência: César Machado (bateria), Jorjão Carvalho (baixo) e Reinaldo Arias (teclados). Lembrando um pouco a trajetória desses três mestres, é imprescindível dizer, por exemplo, que Carvalho participou do "Love dance", gravado por Ithamara em 2003: seu baixo extraordinário está na faixa "Man Alone" (Luiz Bonfá), da qual também participam o próprio Bonfá, John McLaughlin, Nelson Angelo (pianista e arranjador), João Palma, Sidinho Moreira, José Carlos "Big Horn" Ramos, Bigorna, J. C. Ramos e Zé Carlos;  Arias, junto com Cazuza, é coautor do clássico "Codinome Beija-flor", gravada pelo próprio Cazuza e pelo extraordinário Luiz Melodia; Machado é um dos fantásticos músicos do “Autumn in New York & Jurgen Friedrich Trio”, de 2004. Além desses competentísimos músicos, há um quarto: a própria Ithamara, cujo instrumento é a soberana voz. A integração, a harmonia entre cantora/intérprete e músicos é algo impressionante, que ficou comprovado durante todo o espetáculo, da primeira à última canção.
 Sabemos que o jazz prima pela improvisação instrumental, que é uma de suas grandes marcas. No momento em que interpretou “Mas que nada” [Jorge Ben(jor)], por exemplo, fechando a primeira parte do espetáculo e comprovando o perfeito entrosamento entre ela e os músicos, Ithamara, com “todos os sons na garganta”, improvisou como nunca com seu “instrumento” e respondeu, com  precisão, a todas as “provocações” de César Machado. Foi um “dueto/duelo” inebriante. Ambos os “músicos” estavam em momento iluminado. Certamente, Ithamara é capaz de compor duos com qualquer instrumento musical, até com bateria, como ficou provado nesse 'show'. À semelhança de Yma Sumac, ela consegue, de maneira impressionante, atingir umas oitavas acima, transformando em puro deleite suas apresentações: não há quem não fique boquiaberto com tanta exuberância vocal. No momento do duo com a bateria de Machado, foi inevitável não nos lembrarmos de outros dois “duetos/duelos” inesquecíveis de nossa MPB: entre Elis, nossa “Pimentinha”, e Hermeto Paschoal, nosso adorado “Bruxo”, no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, em 1979, e entre Gal e a guitarra de Robertinho de Recife em “Meu nome é Gal” (Erasmo Carlos / Roberto Carlos), do disco “Gal Tropical”, também de 79. Tanto Ithamara quanto Gal e Elis são cantoras/intérpretes raras e estão entre as melhores do mundo de todos os tempos.
Ainda na primeira parte do ‘show’, uma das grandes surpresas trazidas por Koorax – um belo presente para seus fãs – foi a interpretação, “pessoal e intransferível”, de “Primavera [Vai, chuva]” (Cassiano / Sílvio Rochael), gravada por Tim Maia em 1970 e que estará no próximo CD da estrela. Para muitos cantores, ir ao baú e resgatar um sucesso popular como esse acaba sendo um risco, uma vez que, não raro, o que se constata é apenas uma reles imitação do original, o que nos leva a pensar nos cantores de churrascaria, que temos aos montes! Em se tratando de Ithamara, o que se vê é um trabalho de recriação. Foi outra a canção que ouvimos: foi uma “Primavera” com a ‘assinatura Ithamara’, com seu estilo inconfundível e sua voz inigualável. Suas interpretações, aliás, são todas, sem exceção, originais e preciosas.
 “Autumn in New York” (Vernon Duke), que também esteve na primeira parte do show, é do disco “Autumn in New York & Jurgen Friedrich Trio”, de 2004, que citei anteriormente. Dedicada, no CD, a Ella Fitzgerald e Nelson Riddle, é simplesmente uma canção sublime. Não há outra palavra. Aliás, o CD é sublime. Produzido por Arnaldo DeSouteiro, é, sem dúvida, um dos melhores trabalhos de Koorax e que também conta com o talento de César Machado. Riqueza harmônica e originalidade melódica estão aí. É só comprovar. Ouvir Koorax interpretar essa canção ao vivo, e num santuário, é como ir ao céu.
Outra viagem ao céu foi “Amor em Jacumã” (Dom Um Romão / Luiz Ramalho), que está em “Tributo à Stellinha Egg” (e “Brazilian Buterfly”). Mesmo não sendo muito recorrente nos espetáculos de nossa diva, é uma bela canção que exige, além de muito ritmo (seu senso rítmico é algo incomum), velocidade e inteligência interpretativa, atributos que Koorax tem de sobra. Foi um dos pontos altos da noite (e todos 'o' foram). Aliás, vale, aqui, um breve comentário: por meio dessa canção, Koorax foi apresentada a Reinaldo Arias: Dom Um Romão, outro mestre e um dos autores, comentou que Arias foi um dos primeiros a gravar essa canção... ainda nos anos 70, quando ele liderava um grupo chamado "Cravo e Canela". A preciosidade está no LP "O preço e cada Um", já relançado na Europa e no Japão. The shadow of your smile (Johnny Mandell / Paul F. Webster), Une home et une femme (Francis Lai / Pierre Barouh), Que maravilha [Jorge (Ben)jor / Toquinho], Bim bom (João Gilberto), Never can say goodbye (Clifton Davis), entre outras obras-primas, completaram a primeira parte do espetáculo.
Abrindo o segundo momento da noite, nada melhor do que a Lenda do guaraná, que eu ainda não conhecia e que integra um projeto de Arias sobre as lendas amazônicas. Foi outro destaque dessa segunda parte. Se os deuses derem uma mãozinha, tal projeto virará CD, que, se tiver a participação de Ithamara, estará, certamente, entre os melhores trabalhos de todos os tempos já produzidos aqui no Brasil.
E por falar em destaque, há que se dar relevância a outra canção muito importante que também integrou a segunda parte do 'show'. DeSouteiro e Koorax trouxeram de volta “A rã”, que adoro e é perfeita, é sob medida, para a voz number one deste país. Com Ithamara, ouvi-a pela primeira vez em “Elas cantam Caetano Veloso”, CD lançado pela Continental em 1994. De longe, é a melhor faixa do disco. No ano seguinte, essa canção integrou a trilha da novela “Cara & Coroa”. Bingo! Quem disse que Koorax não canta hip hop? Canta, sim, mas a grife é “Donato & Veloso & Koorax”. É, caros amigos, o verdadeiro intérprete também é coautor, e poucos ‘o’ são nestes tempos de cantantes que, sem talento, só têm olhos para o mercado. Mercado barato, que só promove o que há de pior, diga-se de passagem.
“All blues”, da lenda Miles Davis, foi outro momento esplêndido: quando a ouvimos, comprovamos o talento exuberante de Arias, que solou divinamente. Koorax, como sempre, impressionou deveras. “Taí” uma canção sofisticada, que não é para qualquer um. "Human nature" (John Bettis / Steve Porcaro), do disco "Thriller", de Michael Jackson, também foi outro destaque, que contou com improvisos fantásticos de Koorax ao adicionar trechos de "A-Tisket, A-Tasket" (Ella Fitzgerald / Van Alexander), "A carrocinha pegou" e "Dona Baratinha". Love for sale (Cole Porter), Ela é carioca (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), Hô-bá-lá-lá (João Gilberto) e Recado bossa nova (Djalma Ferreira / Luís Antonio) completaram o quadro de preciosidades que desfilaram pela voz número um do Brasil na segunda parte de um espetáculo raro. Encerrando a noite, uma bela homenagem ao Sivuca, "Ain't no sunshine" (Bill Withers), o maior sucesso internacional desse que é, há décadas, um de nossos mais aclamados músicos.
Depois de termos ido ao NIRVANA com esse show espetacular, ficam as palavras de Lorenzo Mammì, ao afirmar que o “jazz rejuvenesce a cada volta do giro harmônico, porque ele faz o tempo – é um triunfo sobre o tempo”¹. Trata-se de uma música atemporal, que, heroicamente, sobrevive a todos os modismos e a todas as cafonices. Ithamara e seus músicos são a prova inconteste de que o jazz, de fato, triunfa sobre o tempo. No Santo Scenarium, esse quarteto “fez” o tempo, reinventou-o, redesenhou-o com os melhores contornos. Já assisti a muitos shows de Koorax, todos deslumbrantes, mas esse aí, ouso dizer, foi o melhor. Foi apoteótico!
¹ Uma promessa ainda não cumprida, artigo de Lorenzo Mammì (Folha de S. Paulo, caderno “mais!”, 10 de dezembro de 2000).

SOLAR
Minha mãe cozinhava exatamente:
Arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas.
Mas cantava.

Prado, Adélia. O coração disparado. 4.ª edição. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.

QUALQUER MÚSICA

Qualquer música, ah, qualquer,
Logo que me tire da alma
Esta incerteza que quer
Qualquer impossível calma!

Qualquer música – guitarra,
Viola, harmônio, realejo...
Um canto que se desgarra...
Um sonho em que nada vejo...

Qualquer coisa que não vida!
Jota, fado, a confusão
Da última dança vivida...
Que eu não sinta o coração!

Pessoa, Fernando. O eu profundo e os outros eus. 13.ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

“Que significa o jazz para mim? A alegria de se comunicar além das palavras, pela mais pura criação coletiva surpreendida no seu nascedouro. A convivência incorruptível, a comunhão através do som. Eles, quando estão tocando, falam uma linguagem que é a minha e que eu gostaria de poder falar. Sérgio Porto me inicou no jazz de Chicago (Muggzy Spanier, George Brunis). Lúcio Rangel me iniciou em Armstrong (Hot Five). Jorginho Guinle ia às últimas de uma raridade em solo de clarineta (Hohnny Dodds). Em Belo Horizonte, Eloy Lima ouvia The Pearls (Wilbur de Paris), no Rio José Sanz ouvia The Pearls (Jelly Roll Morton). No Paraguai, o Conselheiro Tabajara trauteando Perdido (Johnny Hodges), ao som da vitrola. E Sílvio Túlio Cardoso escrevendo, Paulo Santos irradiando. O próprio Vinicius, no limiar da bossa nova, indo às origens do blues (Jimmy Yancey), Hélio Pellegrino no meio da noite pedindo pelo amor de Deus que tocássemos Body and Soul (Colleman Hawkins). Narceu de Almeida em Londres, siderado pela clarineta de George Lewis. José Guilherme Mendes, no Leblon, envolvido pelo sax de John Coltrane.”
Sabino, Fernando. Gente. Rio de Janeiro: Record, 1996.

PRIMAVERA (Vai, chuva)
Silvio Rochael / Cassiano

Quando o inverno chegar
Eu quero estar junto a ti
Pode o outono voltar
Eu quero estar junto a ti

Porque (é primavera)
Te amo (é primavera)
Te amo, meu amor

Trago esta rosa (para lhe dar)
Meu amor

Hoje o céu está tão lindo (vai, chuva)
É primavera...
Hoje o céu está tão lindo (vai, chuva)
É primavera...

Fonte: CD Tim Maia (1970). Universal, 2010.