sábado, 27 de outubro de 2012

MUNDÃO!



CARTA AOS MORTOS
Affonso Romano de Sant'Anna


Amigos, nada mudou
em essência.

Os salários mal dão para os gastos,
as guerras não terminaram
e há vírus novos e terríveis,
embora o avanço da medicina.
Volta e meia um vizinho
tomba morto por questão de amor.
Há filmes interessantes, é verdade,
e como sempre, mulheres portentosas
nos seduzem com suas bocas e pernas,
mas em matéria de amor
não inventamos nenhuma posição nova.
Alguns cosmonautas ficam no espaço
seis meses ou mais, testando a engrenagem
e a solidão.
Em cada olimpíada há recordes previstos
e nos países, avanços e recuos sociais.
Mas nenhum pássaro mudou seu canto
com a modernidade.

Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
relemos o Quixote, e a primavera
chega pontualmente cada ano.

Alguns hábitos, rios e florestas
se perderam.
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
ou toma a fresca da tarde,
mas temos máquinas velocíssimas
que nos dispensam de pensar.

Sobre o desaparecimento dos dinossauros
e a formação das galáxias
não avançamos nada.
Roupas vão e voltam com as modas.
Governos fortes caem, outros se levantam,
países se dividem
e as formigas e abelhas continuam
fiéis ao seu trabalho.

Nada mudou em essência.

Cantamos parabéns nas festas,
discutimos futebol na esquina
morremos em estúpidos desastres
e volta e meia
um de nós olha o céu quando estrelado
com o mesmo pasmo das cavernas.
E cada geração, insolente,
continua a achar
que vive no ápice da história.

CD: "Affonso Romano de Sant'Anna por Tônia Carrero" - Coleção 'Poesia falada', vol. 3, 1997.



MEU CARRO ESTÁ OUVINDO
Arte de Osvalter
Fabrício Carpinejar
Há uma única divisão de classe no país: os que têm ar - condicionado e os que se abanam de qualquer jeito. As outras injustiças são decorrentes dessa partilha.
O compressor de meu carro quebrou. Depois de dois anos de ar refrigerado, obriguei-me a dirigir com as janelas abertas do veículo. Aconteceu na pior hora, em pleno dezembro, no verão escaldante.
Foi um susto de mundo. Na brisa artificial, só ouvia música, meus pensamentos, meus segredos, em paz como uma boia nas águas de Cancun. Apresentava a segurança de uma cabine telefônica. Gesticulava quando alguém cometia uma barbeiragem e, em seguida, retomava o fôlego como se nada houvesse acontecido. O ar-condicionado era o vidro fumê dos ouvidos. Trazia um esquecimento instantâneo das agressões ao volante.
Com os vidros arriados, a percepção mudou radicalmente. Escutava o zumbido da rua, os gritos dos vendedores, o atropelo da saída das escolas, a avalanche das compras natalinas. Tal surdo que recupera a audição de repente e não entende o som. O som é muito violento para entender. Entrei numa rave, numa balada, não assimilando o ritmo para dançar.
Parava um instante na faixa de segurança e representantes de caridade pulavam na minha porta, para oferecer canetas, adesivos, balas, rapaduras, camisinhas. Uma feira móvel fechava o meio-fio.
Espantei-me com a velocidade das pernas dos meninos, com a tração das cadeiras de roda. Faziam fila para me oferecer e pedir dinheiro. Mais organizados do que pit stop de Fórmula 1. Fiquei vulnerável para as garotas das construtoras. Amontoei folhetos de prédios paradisíacos na poltrona ao lado, que apenas tinham a função de diminuir o tamanho da minha casa.
E os motores do carro voltaram a ter barulho, e os canos de escapamento tossiam de pneumonia. Um chevette velho feria monstruosamente a sensibilidade. Enchia-me de piedade de seu motorista. Quase ofereci reboque.
Apesar de repetir os caminhos de sempre, entrei em outra cidade, as ruas pareciam mais apertadas, o engarrafamento mais longo, os atrasos inexplicáveis. Um ansioso como eu atingia o avesso do nirvana: a histeria.
Um caminhão fechou a frente num contorno, recuei e buzinei cheio de autoridade. Antes seguiria reto, engolindo o desaforo. Mas ouvi o motorista xingando com volúpia, ofendendo minha mãe, meu pai e minhas unhas pintadas. Barbudo, enxergava seu braço tatuado de Betty Boop me mandando para um lugar bem animado. Aquilo ferveu as sobrancelhas. Já estava discutindo junto, reduzindo a velocidade, numa corrida de bigas, um racha, trancando os carros atrás. Percebi no momento que não sabia nem ofender, apenas reclamava educadamente. Ele falava: FDP, C., M.. O máximo que consegui pronunciar foi: Seu troglodita! O que me soou muito feminino para o momento e adequado para o esmalte pistache que usava. Lamentei minha performance no conflito, estava realmente destreinado.
Mas nunca tomei uma atitude destemperada, nunca cedi à explosão: eram os vidros abertos. Antes não ciscava o que me respondiam, agora entrei para o cinema falado. A palavra machuca.
Fonte: http://www.fabriciocarpinejar.blogger.com.br/




NO MUNDO HÁ MUITAS ARMADILHAS

No mundo há muitas armadilhas
    e o que é armadilha pode ser refúgio
    e o que é refúgio pode ser armadilha 

Tua janela por exemplo  
   aberta para o céu   
   e uma estrela a te dizer que o homem é nada
  ou a manhã espumando na praia
    
  a bater antes de Cabral, antes de Tróia
  (há quatro séculos Tomás Bequimão
  tomou a cidade, criou uma milícia popular
  e depois foi traído, preso, enforcado)

No mundo há muitas armadilhas   
  e muitas bocas a te dizer 
  que a vida é pouca 
  que a vida é louca  
  E por que não a Bomba? te perguntam.    
  Por que não a Bomba para acabar com tudo, já
    

Contudo, olhas o teu filho, o bichinho  
  que não sabe
  que afoito se entranha à vida e quer  
  a vida   
  e busca o sol, a bola, fascinado vê
  o avião e indaga e indaga 

A vida é pouca
a vida é louca
mas não há senão ela.
E não te mataste, essa é a verdade. 

Estás preso à vida como numa jaula.
Estamos todos presos
nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver
de fora e nos dizer: é azul.
E já o sabíamos, tanto
que não te mataste e não vais
te matar
e aguentarás até o fim. 

O certo é que nesta jaula há os que têm
e os que não têm
há os que têm tanto que sozinhos poderiam
alimentar a cidade
e os que não têm nem para o almoço de hoje 

A estrela mente
o mar sofisma. De fato,

o homem está preso à vida e precisa viver
o homem tem fome
e precisa comer
o homem tem filhos
e precisa criá-los
Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las.

GULLAR, Ferreira. Dentro da noite veloz. 3. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

MUNDO LIVRE
Haroldo de Campos (poema musicado por Madan)

O ADMIRÁVEL o louvável o notável o adorável
o grandioso o fabuloso o fenomenal o colossal
o formidável o assombroso o miraculoso o maravilhoso
o generoso o excelso o portentoso o espaventoso
o espetacular o suntuário o feerífico o feérico
o meritíssimo o venerando o sacratíssimo o sereníssimo
o impoluto o incorrupto o intemerato o intimorato

O ADMERDÁVEL o loucrável o nojável o 'adourável'
o ganglioso o flatuloso o fedormenal o culossádico
o fornicaldo o ascumbroso o iragulosso o matravisgoso
o degeneroso o incéstuo o pusdentoso o espasmventroso
o espertacular o supurário o feezífero o pestifério
o merdentíssimo o venalando o cacratíssimo o sifelíssimo
o empaluto o encornupto o entumurado o intumorato

NERUM
DIVOL
IVREM
LUNDO
UNDOL
MIVRE
VOLUM
NERID
MERUN
VILOD
DOMUN
VRELI
LUDON
RIMEV
MODUL
VERIN
LODUM
VRENI
IDOLV
RUENM
REVIN
DOLUM
MINDO
LUVRE
MUNDO
LIVRE

Fonte: CD "Madan", DB002, Dabliú Discos, 1997.


VIAGEM INFINITA

Estou sempre em viagem.

O mundo é a paisagem
que me atinge
de passagem.

CD: "Helena Kolody por Helena Kolody" - Coleção 'Poesia falada', vol. 4, 1997.



quarta-feira, 3 de outubro de 2012

CANTA, CANTA MAIS... CANTA SEMPRE



CANTA, CANTA MAIS... CANTA SEMPRE
(Sobre o concerto, no Ibirapuera (SP), de Ithamara Koorax e a Orquestra Jazz Sinfônica)
Por Fábio Brito
Os fãs e admiradores da voz extraordinária de Ithamara Koorax, que, há vinte anos, ocupa, indisputavelmente, o posto de melhor cantora do Brasil e está entre as melhores do mundo, tiveram o privilégio de ouvi-la, dias 28 e 29 de setembro, no auditório do Ibirapuera, em São Paulo, junto com a Orquestra Jazz Sinfônica, sob a regência do maestro João Maurício Galindo. Que dia histórico!
Uma orquestra sinfônica, segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, é um “conjunto instrumental e de músicos, destinado à interpretação de repertório sinfônico e demais obras destinadas a concertos”. Pois é, a Jazz Sinfônica recebeu mais um excelente “músico” e um valiosíssimo instrumento: a portentosa voz de Ithamara Koorax.
Intérprete de qualidades inquestionáveis, Koorax tem talento de sobra para cantar junto com uma orquestra. Num auditório lotado, nossa diva passeou soberana pelo repertório do compositor João Gilberto, o “papa” da Bossa Nova, um dos movimentos musicais mais importantes do país, quiçá o mais. No entanto, como ela mesma explicou, não foi uma “noitada de Bossa Nova”, mas um concerto “calcado na obra” do João Gilberto compositor, o que ela já havia documentado em 2009 no álbum “Bim bom – the complete João Gilberto songbook”, cujo lançamento deu-se – com muito sucesso, diga-se de passagem – no mundo inteiro. Tal álbum recebeu nada mais, nada menos que uma aclamação do “The New York Times”, um dos jornais mais influentes e respeitados que há. Poucos artistas vão tão longe! Além do tributo ao João Gilberto compositor, Ithamara, no roteiro do concerto, também incluiu canções imortalizadas na voz do mestre, um gênio de canto minimalista, de batida única no violão e que influenciou e revolucionou a música do mundo todo.  
Para abrir o concerto, a canção escolhida foi “Bim Bom”, do histórico “Chega de saudade”, lançado por João Gilberto em 1959. Como sempre, nossa diva fez o que quis com a canção e com a voz. Na sequência, foi a vez da delicadeza de “O grande amor”, da eterna dupla Tom/Vinicius, a música favorita de Stan Getz e que integra outra obra-prima: o disco “Getz/Gilberto”, lançado em 1964. Vale registrar que essa canção deu nome ao álbum que Ithamara lançou em 2010 e que recebeu quatro estrelas da revista “Down Beat”, a tão elogiada “bíblia do jazz”. “Minha saudade”, do próprio João Gilberto em parceria com outro João, o Donato, foi a terceira música da noite. Trata-se de um dos cavalos de batalha de nossa musa, que a gravou em três discos: ‘no’ já citado tributo a João, “The complete João Gilberto songbook”, em “Wave 2001 – Bossa Nova songbook” e em “Bossa Nova metts drum ‘n’ bass”. Nessa canção, assim como nas demais, Ithamara esbanjou ritmo e musicalidade.

E o que dizer de "Aos pés da Cruz", mais uma obra-prima apresentada no concerto?  Marino Pinto e Zé da Zilda compuseram-na, e Orlando Silva gravou-a pela primeira vez em 1941. Depois da gravação de João, a canção ganhou projeção internacional, tanto que o trompetista Miles Davis também a registrou. Ithamara gravou-a em “Obrigado, Dom Um Romão”, disco de 2006. Resultado: quatro gravações fantásticas e históricas.
E por falar em gravações históricas, “Você esteve com meu bem?”, mesmo sendo pouco conhecida, é uma canção emblemática: em parceria com Antonio C. Martins, foi a primeira composição de João. Em 1956, a lendária Marisa Gata Mansa, namorada de João na época e uma das mais importantes cantoras deste país, gravou-a. No concerto, como o faz nos “shows”, Ithamara interpretou-a com toda a delicadeza e precisão que a canção requer. Pois é, nosso mestre João, antes de quaisquer sinais acerca do movimento que revolucionaria a música do mundo, já fazia “bossa nova”. Coisas de gênio...
Depois de "Você esteve com meu bem?", a primeira bossa de João, e do samba de Marino Pinto e Zé da Zilda, que ganhou um tratamento bem delicado tanto no concerto quanto na gravação em CD, foi a vez de Ithamara resgatar "O pato", uma das gravações mais conhecidas de João. Como não poderia deixar de ser, Ithamara improvisou à beça, como só ela sabe fazer. A plateia, que não se conteve, aplaudiu entusiasticamente, claro!  
“Hoba-la-lá”, que está entre as canções mais regravadas de João, não poderia ficar de fora de uma noite 'pra' lá de especial. Taí outro bolero que Ithamara canta desde seu primeiro ‘show’, em 1990, no Rio de Janeiro. Além disso, ela gravou-a duas vezes com arranjos bem diferentes: no “Bim Bom” e no mais recente, “Got to be real”.

A próxima canção foi a mais comovente da segunda noite: “Estate”, um bolero de Bruno Martino e Bruno Brighetti resgatado por João em suas incursões pela Itália nos idos de 1963. A gravação do mestre, que está em “Amoroso”, abriu as portas para muitas outras que viriam na esteira. O sucesso foi tanto que, nos Estados Unidos, ela recebeu duas letras diferentes: uma registrada por John Hendriks e outra, pela fantástica Shirley Horn. Na segunda noite do concerto, no momento em que Ithamara e a Orquestra imortalizavam essa canção, não se ouvia nem a respiração do público. Inesquecível. Ao fim do espetáculo, quando Ithamara voltou para o ‘bis’, uma das pessoas da plateia gritou: “ – Canta ‘Saudade’!, querendo dizer “Estate”, cujo início é assim: “Saudades / Eu sonho com o verão entre as cobertas / Vontade de deixar portas abertas / E acreditar que a chuva vai passar...”. A letra é um presente que Ithamara recebeu da escritora Ana Maria Moretzsohn. Um presentão! O momento foi lindo, inebriante, sublime! Nossa diva imprimiu à canção uma sensualidade única.
“Um abraço no Bonfá” (“An embrace to Bonfá”) foi a próxima joia da noite. De letra extensa, a canção é dificílima. Os violonistas sabem muito bem disso, como frisou a própria Ithamara. Trata-se de uma homenagem a outro mestre: o músico Luiz Bonfá, violonista favorito de João e que também recebeu uma homenagem fantástica de Ithamara: o álbum “Almost in love – Ithamara Koorax sings Luiz Bonfá”, que teve direito a duas luxuosas edições. Aliás, na abertura do concerto, a Orquestra apresentou, com arranjo do maestro Cyro Pereira, “Manhã de carnaval”, que, não por coincidência, também fora gravada por João. Trata-se de uma das composições mais conhecidas de Bonfá (em parceria com Antônio Maria). Tal obra-prima ganhou um tratamento especial no concerto: um pungente solo de violino de Graziela Fortunato Rodrigues. Antes, porém, da canção de Bonfá e Maria, a Orquestra apresentou, com arranjo do mesmo Cyro Pereira, uma "Aquarela de sambas" sobre temas de Ary Barroso. Arrepiante!
E por falar em homenagens, uma das grandes sacadas foi a escolha de “João Marcelo”, que João compôs para seu filho mais velho (do casamento com Astrud Gilberto), um excelente contrabaixista que mora nos Estados Unidos. Nessa canção, uma peça para violão e orquestra, a voz “é usada como instrumento”. E que instrumento! Segundo Arnaldo DeSouteiro, produtor da maioria dos discos de Ithamara, foi a canção mais aplaudida na primeira noite do concerto.

Quase fechando a noite, eis que nossa diva impressiona deveras com “Undiú”, gravada por João em 1973, em seu “Álbum branco”, e pela própria Ithamara em “Bim Bom”, mas sem letra. Segundo ela, taí uma “aula de minimalismo. É praticamente um mantra”. Mas atenção! Os detalhes acerca dessa canção não param por aí: Jorge Amado, um de nossos maiores e mais 'amados' escritores, escreveu uma letra para essa canção, mas que poucas pessoas conhecem ou conheciam. Como a própria Ithamara anunciou, deu-se, no Ibirapuera, a primeira audição mundial dessa música com a letra. Composta em 1962, na casa de Jorge, essa raridade, cujo título original é "Lamento de Vicente", foi incluída, no ano seguinte, na trilha sonora de um filme baseado no romance "Seara vermelha". Depois dessa preciosidade, o resultado não poderia ser outro: intérprete e público emocionados.
Depois de tanta emoção, Ithamara nos traz outra canção da parceira João Gilberto/Donato, quando ambos ainda moravam nos Estados Unidos, em 1965: a balada “Coisas distantes” (“Forgotten places”). O auditório ficou em silêncio absoluto diante da singeleza da canção. Em seguida, quebrando um pouco o clima, "Desafinado" e "Garota de Ipanema" casaram-se perfeitamente.
Fechando a noite, não poderia faltar uma das canções mais importantes de todos os tempos, o clássico “Chega de saudade”, da eterna dupla Tom/Vinicius, e que deu nome ao lendário disco de 1959 de João: “Vai, minha tristeza, e diz a ela que sem ela não pode ser...”. Concordamos plenamente com a letra do “Poetinha” e dela ‘nos’ apropriamos: “Sem ela” (sem Ithamara) “não pode ser”. Precisamos dizer-lhe, por meio não só de uma prece, mas de todas que houver, que ela regresse a São Paulo, ao Rio, ao mundo todo, para cantar e ‘nos’ encantar com sua voz “abençoada por Deus e bonita por natureza”. Ithamara é imprescindível para a MÚSICA do mundo.
No “bis”, apoteótico, Ithamara e a Orquestra trouxeram “Mas que nada”, clássico de Benjor quando ele ainda era Jorge Ben. Uma das canções brasileiras mais conhecidas no exterior, a música contagiou a todos e deu à nossa diva a possibilidade de dividir o ritmo como ninguém. Deliramos. Tivemos vontade de aplaudir incessantemente. Ao fim, tive a sensação de que todas as canções da noite foram “inéditas”, tamanho o frescor de todo o concerto e tamanha a ousadia de Ithamara, que jamais repete quaisquer interpretações.
Esse concerto com a Jazz Sinfônica provou, mais uma vez, que nossa diva é uma das melhores cantoras de todos os tempos. Ela consegue ir da exuberância de uma Yma Sumac ao minimalismo de uma Flora Purim ou uma Astrud Gilberto. Nela, tudo é harmonia: a expressividade, que não está condicionada a excessos de teatralidade, ajuda a traduzir – de forma precisa - a intenção das canções. Sobre essa expressividade de Koorax, vale transcrever o que disse - em texto do jornal “O Estado de S.Paulo – a cantora Laura Finocchiaro, que assistiu à primeira noite do concerto: “O corpo responde ao comando da voz, e os gestos das mãos e dos braços ajudam a conduzir o som da potente e penetrante voz. O corpo inteiro reverbera, servindo de caixa de ressonância”.
Ithamara tem uma inteligência musical que é rara entre seus colegas de ofício, brasileiros ou não. Muitos que vimos por aí têm até boa voz. São considerados bons cantores e mais nada além disso, porque têm apenas... a voz, que, sozinha, não basta. É preciso ter exatamente o que Ithamara tem de sobra: capacidade e interpretar com inteligência todas as canções que lhe forem confiadas, das mais simples às mais complexas. Ela dá uma interpretação verdadeira a tudo o que canta. Imprime inteligência e elegância a todos os gêneros: do jazz, passando pela MPB e indo até o clássico. Ithamara, além da exuberância da voz (sua extensão é de cinco oitavas), tem carisma e não apenas canta: sabe cantar. Nela, percebe-se uma acuidade musical intensa associada a um dado importantíssimo: ela jamais perde a emoção, seja em estúdio ou ao vivo. No concerto do Ibirapuera, ficou mais do que comprovado o que Ariane Mnouchkine, diretora do Théâtre du Soleil, classificou como “íntimo universal”, que é o que nos faz chorar. Quando canta, Ithamara toca regiões sensibilíssimas de todos nós, chega a esse “íntimo universal” de que nos fala Mnouchkine. Assim, é impossível evitar que a emoção – nossa e “dela” – venha à tona com tudo. Choremos, pois, diante de tanta beleza.
Quando ouço certas pessoas que, rotuladas de cantoras, andam por aí e só falam em milhões, “lhões” e “lhões”, mas não sabem cantar, penso no talento incomum de Ithamara e nas portas que, aqui no Brasil, não lhe foram abertas e nos tapetes vermelhos que ainda não lhe foram estendidos. Ithamara é única. Sejamos, pois, devotos dessa artista fenomenal.  


BEETHOVEN
Meu caro Luís, que vens fazer nesta hora
de antimúsica pelo mundo afora?

Patética, heroica, pastoral ou trágica,
tua voz é sempre um grito modulado,
um caminho lunar conduzindo à alegria.

Ao não rumor tiraste a percepção mais íntima
do coração da Terra, que era o teu.
Urso-maior uivando a solidão
aberta em cântico: entre mulheres
passando sem amor. Meu rude Luís,
tua imagem assusta na parede,
em medalhão soturno sobre o piano.
Que tempestade passou em ti e continua
a devastar-te no limite
em que a própria morte exausta se socorre
da vida, e reinstala
o homem na fatalidade de ser homem?

Nós, os surdos, não captamos
o amor doado em sinfonia, a paz
em allegro energico sobre o caos,
que nos ofertas do fundo
de teu mundo clausurado.
Nós, computadores, não programamos
a exaltação romântica filtrada
em sonatino adágio murmurante.

Nós, guerreiros nucleares, não isolamos
o núcleo de paixão de onde se espraia
pela praia infinita essa abstrata
superação do tempo e do destino
que é razão de viver, razão florente
e grave.

Tanto mais liberto quanto mais
em tua concha não acústica cerrado,
livre da corte, da contingência, do barroco,
erguendo o sentimento à culminância
da divina explosão, que purifica
o resíduo mortal, angústia mísera,
que vens fazer, do longe de dois séculos,
escuro Luís, Luís luminoso
em nosso tempo de compromisso e omisso?

Do fogo em que te queimaste,
uma faísca resta para incendiar
corações maconhados, sonolentos,
servos da alienação e da aparência?

Quem comporá a Apassionata de nosso tempo,
que removerá as cinzas, despertará a brasa,
quem reinventará o amor, as penas de amor,
quem sacudirá os homens do seu torpor?

Boto no pickup o teu mar de música,
nele me afogo acima das estrelas.
Fonte: ANDRADE, Carlos Drummond de. As impurezas do branco. 8ª ed., Rio de Janeiro: Record: 1998.