terça-feira, 27 de agosto de 2019

OS IPÊS E A SENSIBILIDADE AFLORADA... OU NÃO



CANTO EM QUALQUER CANTO
Ná Ozzetti e Itamar Assumpção

Vim cantar sobre essa terra
Antes de mais nada, aviso
Trago facão, paixão crua
E bons rocks no arquivo
Tem gente que pira e berra
Eu já anto, pio e silvo
Se fosse minha essa rua
O pé de ipê tava vivo
Pro topo daquela serra
Vamos nós dois, vídeo e livros
Vou ficar na minha e sua
Isso é mais que bom motivo
Gorjearei pela terra
Para dar e ter alívio
Gorjeando eu fico nua
Entre o choro e o riso
Pintassilga, pomba, melroa
Águia lá do paraíso
Passarim, mundo da lua
Quando não trino, não sirvo
Caso a bela com a fera
Canto porque é preciso
Porque esta vida é árdua
Pra não perder o juízo






Fotos: Fábio Brito 


OS IPÊS E A SENSIBILIDADE AFLORADA... OU NÃO
Por Fábio Brito

Todos os anos, quando os ipês florescem em minha cidade, com a câmera fotográfica em punho, vou em busca da beleza dessas flores. Quero, com as fotos, eternizar o belo. Minha vontade é de fotografar todas as flores, de todos os ângulos. Quero fotografar todos os instantes. Quero, talvez, captar "o instante-já", lembrando uma expressão de Lispector em sua/nossa "Água viva". Quero o "instante-já" de todas as flores. Até brinquei dizendo que consegui captá-lo exatamente quando, milagrosamente, fotografei, dias atrás, três flores no momento exato em que elas caíam. 
Em êxtase, chego a ficar um tempão sob as árvores (quando isso é possível, claro!). Assim, meu espírito se equilibra e tenho a sensação de que a sanidade ainda mora em mim, a despeito de tudo o que está aí. Diante dos ipês floridos, tenho vontade de pedir a alguém, parafraseando Galeano, que me ajude a olhar. Meu olhar humano e sensível se sente limitado diante de tanto esplendor. Não dou conta, como dizem. 
Pois é, meu olhar é sensível, afirmei. Acho que é um olhar poético. Tenho plena consciência disso. Sem presunção, enxergo belezas que não são vistas por muita gente. Talvez pela maioria, atrevo-me a dizer. Muitos detalhes - não só de trabalhos artísticos - são imperceptíveis à maioria das pessoas. Como é, então, o olhar da maioria diante de um ipê florido na calçada de uma rua bem movimentada de uma cidade? Por mais triste que seja constatar, é insensível também! Mas é tanta beleza visível e, ainda assim, alguém consegue ficar insensível?, pode alguém perguntar. Consegue! Constatei isso quando, poucos dias atrás, fiz as fotos de um ipê amarelo que, de tão florido, nem me deixava ver as folhas (foram desse ipê as flores fotografadas por mim no momento preciso em que elas caíam).
Porque fiquei um tempão fotografando o tal ipê amarelo, pude, depois de inúmeras fotos e com as energias recarregadas, ficar observando, com calma, o comportamento dos beija-flores e de outros pássaros que pareciam querer morar definitivamente naquele esplendor todo. Eu também queria. E como! Fui além: observei - com vagar também - o comportamento das pessoas que por ali passavam. Durante o tempo em que estive fotografando o ipê, que não foi pequeno, apenas duas pessoas deram uma "olhadela" para  a árvore. "Olhadela" mesmo. Algo bem rápido, como se olha qualquer objeto sem qualquer importância. Muitas pessoas - muitas mesmo! - passavam olhando as telinhas de seus celulares (novidade!). Nem aí para o ipê... 
Pois é, constatando a insensibilidade da maioria das pessoas diante do ipê que me fascinou, fiquei pensando noutro tipo de situação que, talvez, pudesse chamar a atenção dessas pessoas: e se fosse um acidente de trânsito?, pensei. Será que, sensibilizadas, parariam para socorrer, prestar algum tipo de ajuda? Parariam, sim, mas para fotografar e filmar. Se, no hipotético acidente, houvesse uma tíbia exposta, por exemplo (e paro por aqui...), sem medo de estar sendo injusto e cruel em demasia, posso afirmar que não faltaria gente para divulgar as fotos e os vídeos, que "viralizariam", para usar um verbo da moda, nas redes sociais. Lembrei-me, neste instante, da atitude de várias pessoas no acidente que, em fevereiro deste ano, na Via Anhanguera, em São Paulo, causou a morte do jornalista Ricardo Boechat e do piloto do helicóptero em que ele voava. 
Quando li algumas matérias sobre esse acidente, fiquei chocado com as mortes, claro!, mas também muito sensibilizado com a atitude da moça que salvou o motorista de um caminhão também envolvido no acidente. Enquanto muitas pessoas não paravam de filmar o acidente, a moça, Leiliane, foi até a cabine do caminhão, da qual arrancou pedaços, quebrou o vidro com um capacete e puxou o motorista. A humanidade dessa moça me fez chorar. A maioria das pessoas, apenas interessada na filmagem do "espetáculo", não estava nem aí para o sofrimento dos envolvidos no acidente. Alguém pode até pensar que, agora, quem está sendo insensível sou eu. "Tô" não! É que não consigo parar de pensar no conto “Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência”, de Rubem Fonseca. Não sei por quê? 


Descanso / O homem já se fez / O escuro cego raivoso animal 
Que pretendias 
Hilda Hilst ["Via vazia", parte VIII, in Do desejo]

A perplexidade de pertencer à raça humana. O que quer dizer ser humano? Os canalhas são humanos? Os santos são humanos? Os assassinos são humanos? A cada ano novo, nas retrospectivas, o que se vê é tão sórdido, tão absurdo, ou tão terrificante, que você se pergunta com renovada intensidade: o que é ser humano? (...)
[Hilda Hilst, "Senhor de porcos e homens"]

Você nunca conhece realmente as pessoas. O ser humano é mesmo o mais imprevisível dos animais. Das criaturas. Vá lá. 
[Hilda Hilst, "Delicatessen"]

As incongruências, os absurdos, a estupidez, a selvageria, o imponderável, isso tudo é o que nos rodeia, e ainda assim temos de sobreviver e continuar como se estivéssemos no melhor dos mundos. 
[Hilda Hilst, "Hora dos tamancos"]

Os mais intuitivos diagnosticadores - os poetas - jamais cessaram de nos afirmar que o homem é ruim e sempre foi assim. 
[Hilda Hilst, "Me empresta a sua '9 milímetros'"?]

(...) 
Ah, se soubesses como ficou difícil a Poesia.
Triste garganta o nosso tempo, TRISTE TRISTE.
E mais um tempo, nem será lícito ao poeta ter memória 
(...) 
E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhos
Azuis, brancos e amarelos hão de gritar: morte aos poetas!
Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados 
De infância, o plexo aberto, exposto aos lobos. Irmão. 
Companheiro. Que dor de te saber tão morto.
["Poemas aos homens de nosso tempo", parte IV, in Júbilo, memória, noviciado da paixão, Hilda Hilst - poema dedicado a Federico G. Lorca]

(...) 
Que asperezas de tato descobri
Nas coisas de contexto delicado.
Andei 
Em direção oposta aos grandes ventos. 
(...) 
[Hilda Hilst, "Canto primeiro", in Salve o seu anjo]

(...) 
Este é um tempo de cegueira. Os homens não se veem. Sob as vestes 
Um suor invisível toma corpo e na morte nosso corpo de medo 
É que floresce. 
(...) 
["Odes maiores ao pai I", Hilda Hilst, in Trajetória poética ser]

(...) Os homens continuam aqueles, iguaizinhos do Neanderthal, estúpidos, boçaloides, absolutamente cruéis. (...) 
[Hilda Hilst, "Mentira, engodo, morte, hipocrisia"]



O PASSADO É MEMÓRIA


SAUDADE DE AMAR
Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro

Saudade daquele romance que a gente viveu 
Saudade do instante em que eu te encontrei 
Saudade do imenso desejo que a gente perdeu 
Eu tenho é muita saudade do tempo em que amei 

Saudade da força que tinham meus olhos nos teus 
Eu vivo à mercê das lembranças depois desse adeus 

A gente não deve 
Sofrer por amor tanto assim 
Porém todo amor, mesmo breve
Eu guardo bem dentro de mim 

Saudade de cada momento que eu lembro de cor 
Só sabe de amor e saudade quem já ficou só 

Saudade, eu tenho saudade 
Mas não de contigo voltar 
Eu vivo sentindo saudade 
De amar 

[Fonte: CD "Desejo", Nana Caymmi, 2001, Universal Music]



          O TEMPO E OS AMORES DO PASSADO...  
            Por Fábio Brito 

            "(...) o silêncio torna tudo menos penoso (...)", 
                                     Rubem Braga 

Foi Santo Agostinho quem disse que o passado é memória, que o futuro não existe e que o importante é o presente. Se, de fato, o que importa é o presente, como ficam, em nossa história presente, os amores do passado, que, em certo tempo, tiveram muita importância para nós?
Acho (não é "teoria do achismo", mas força de expressão) que todos os amores (inclusive os que tiveram seu fim decretado por motivos pouco nobres, digamos assim) não morrem. Porque foram extraviados, todos ficam nalgum escaninho do coração ou da memória (talvez mais da memória). Assim como os sonhos da canção "A moça do sonho" (Edu Lobo / Chico Buarque), tenho para mim que esses amores extraviados também vão parar numa espécie de bazar e ficam lá, quietinhos, com ou sem encantos.
Como, então, lidar com eles? Não é fácil para ninguém (se alguém disser que é, estará mentindo deslavadamente) lidar com os amores passados. Não é fácil lidar com o fim de qualquer ciclo (lembrando, aqui, "Como você lida com os fins de ciclo em sua vida", de Adriano Silva, que li recentemente). Do amoroso, então, é muito mais difícil, é lento, é arrastado, porque, entre outros motivos, é inevitável não sentir saudades de situações vividas, de cheiros, de lugares, de canções... Se lembranças do passado trazem dor e melancolia, também confortam e "nos" dão colo. Assim, tudo fica muito nostálgico e, vez ou outra, os olhos insistem no retrovisor. Morremos de saudade do que ficou para trás. 
Bom, como tudo, necessariamente, vai ter um fim um dia, não seria diferente com os relacionamentos amorosos. E o jeito é aprender a lidar com o fim (sem "filosofia de banca de jornal"). Certa vez, a extraordinária atriz Dina Sfat, que, precocemente, saiu de cena em 1989, disse, em entrevista a um programa de TV, o seguinte: “(...) O casamento... eu tenho a impressão que vive, na primeira fase, de um sentimento de   exaltação, um delírio, que é o amor. E acho que amor é muito luxo. Também o amor não ‘tá’ aí pra gente sentir sempre, o tempo inteiro por qualquer pessoa. (...)” É... muitos romances chegam ao fim exatamente quando cessa esse delírio de que nos fala Dina Sfat. É hora, então, da difícil decisão de pôr um ponto final no processo, o que vai ser sempre doloroso... Atenção: em vez de ponto final, pode haver dois-pontos... 
Findo o caso e passados os anos, como fica a possibilidade de antigos amantes se reencontrarem? Qualquer (re)encontro, ainda que virtual, terá sempre um quê de constrangimento, já reparou? Muita pausa, muitos assuntos evitados, muitas lembranças... Tudo isso vai limitar, inibir, restringir o tom da conversa. Melhor evitar, então, qualquer reencontro? Não sei... Só sei que qualquer (re)aproximação será, inevitavelmente, memorialística, parafraseando nosso "sabiá" da crônica. Sempre se discorrerá sobre reminiscências, porque o presente - não raro - não conecta pessoas que se amaram noutros tempos. Tudo mudou. Ninguém é mais o mesmo. A vida não é mais a mesma.
E se o estopim do afastamento tiver sido a traição, como fica a possibilidade de um reencontro? Não quero cair na pieguice, mas é preciso dizer que amigos não traem. E aí? Recupera-se apenas uma relação de cordialidade? Será que ficou mágoa? Espero que só na memória, como na bela letra de "Guardados", parceria entre Sérgio Santos e Paulo César Pinheiro: "(...) Porém, jamais guardo mágoa / Guardei, mas só na memória (...)" Se houve a famigerada traição, tão em voga (que terrível!) em tempos virtuais, será tranquilizador saber que o tempo passou.
Nesse cenário, as reminiscências, sem querer ser maniqueísta, terão sempre duas vertentes: a dos cheiros, das músicas, dos lugares, das conversas, dos poemas... e a das lembranças ruins, constrangedoras, desagradáveis. Não é possível trazer de volta somente a melhor vertente. Impossível separar. Assim, o passado poderá ser relembrado com certo apascentamento, mas também poderá voltar com melancolia e com algum tédio até. Quem quer se aventurar (e até parece que escolhemos, né?) numa relação amorosa vai passar, inevitavelmente, pela beleza e pela dor. O bom é que se sobrevive... Sigamos! A vida é para a frente, o olhar é sempre para cima.   

DESPEDIDA

Rubem Braga

E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perda da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.

Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?

Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.

Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.

A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.



SOBRE O AMOR, ETC.
Rubem Braga

Dizem que o mundo está cada dia menor.
É tão perto do Rio a Paris! Assim é na verdade, mas acontece que raramente vamos sequer a Niterói. E alguma coisa, talvez a idade, alonga nossas distâncias sentimentais.
Na verdade há amigos espalhados pelo mundo. Antigamente era fácil pensar que a vida era algo de muito móvel, e oferecia uma perspectiva infinita e nos sentíamos contentes achando que um belo dia estaríamos todos reunidos em volta de uma farta mesa e nos abraçaríamos e muitos se poriam a cantar e a beber e então tudo seria bom. Agora começamos a aprender o que há de irremissível nas separações. Agora sabemos que jamais voltaremos a estar juntos; pois quando estivermos juntos perceberemos que já somos outros e estamos separados pelo tempo perdido na distância. Cada um de nós terá incorporado a si mesmo o tempo da ausência. Poderemos falar, falar, para nos correspondermos por cima dessa muralha dupla; mas não estaremos juntos; seremos duas outras pessoas, talvez por este motivo, melancólicas; talvez nem isso.
Chamem de louco e tolo ao apaixonado que sente ciúmes quando ouve a sua amada dizer que na véspera de tarde o céu estava uma coisa lindíssima, com mil pequenas nuvens de leve púrpura sobre um azul de sonho. Se ela diz “nunca vi um céu tão bonito assim”, estará dando, certamente, sua impressão de momento; há centenas de céus extraordinários e esquecemos da maneira mais torpe os mais fantásticos crepúsculos que nos emocionaram. Ele porém, na véspera, estava dentro de uma sala qualquer e não viu céu nenhum. Se acaso tivesse chegado à janela e visto, agora seria feliz em saber que em outro ponto da cidade ela também vira. Mas isso não aconteceu, e ele tem ciúmes. Cita outros crepúsculos e mal esconde sua mágoa daquele. Sente que sua amada foi infiel; ela incorporou a si mesma alguma coisa nova que ele não viveu. Será um louco apenas na medida em que o amor é loucura.
Mas terá toda razão, essa feroz razão furiosamente lógica do amor. Nossa amada deve estar conosco solidária perante a nuvem. Por isso, indagamos com tão minucioso fervor sobre a semana de ausência. Sabemos que aqueles 7 dias de distância são 7 inimigos: queremos analisá-los até o fundo, para destruí-los.
Não nego razão aos que dizem que cada um deve respirar um pouco, e fazer sua pequena fuga, ainda que seja apenas ler um romance diferente ou ver um filme que o outro amado não verá. Têm razão; mas não têm paixão. São espertos porque assim procuram adaptar o amor à vida de cada um, e fazê-lo sadio, confortável e melhor, mais prazenteiro e liberal. Para resumir: querem (muito avisadamente, é certo) suprimir o amor.
Isso é bom. Também suprimimos a amizade. É horrível levar as coisas a fundo: a vida é de sua própria natureza leviana e tonta. O amigo que procura manter suas amizades distantes e manda longas cartas sentimentais tem sempre um ar de náufrago fazendo um apelo. Naufragamos a todo instante no mar bobo do tempo e do espaço, entre as ondas de coisas e sentimentos de todo dia. Sentimos perfeitamente isso quando a saudade da amada nos corrói, pois então sentimos que nosso gesto mais simples encerra uma traição. A bela criança que vemos correr ao sol não nos dá um prazer puro; a criança devia correr ao sol, mas Joana devia estar aqui para vê-la, ao nosso lado. Bem; mais tarde contaremos a Joana que fazia sol e vimos uma criança tão engraçada e linda que corria entre os canteiros querendo pegar uma borboleta com a mão. Mas não estaremos incorporando a criança à vida de Joana; estaremos apenas lhe entregando morto o corpinho do traidor, para que Joana nos perdoe.
Assim somos na paixão do amor, absurdos e tristes. Por isso nos sentimos tão felizes e livres quando deixamos de amar. Que maravilha, que liberdade sadia em poder viver a vida por nossa conta! Só quem amou muito pode sentir essa doce felicidade gratuita que faz de cada sensação nova um prazer pessoal e virgem do qual não devemos dar contas a ninguém que more no fundo de nosso peito. Sentimo-nos fortes, sólidos e tranquilos. Até que começamos a desconfiar de que estamos sozinhos e ao abandono trancados do lado de fora da vida.
Assim o amigo que volta de longe vem rico de muitas coisas e sua conversa é prodigiosa de riqueza; nós também despejamos nosso saco de emoções e novidades; mas para um sentir a mão do outro precisam se agarrar ambos a qualquer velha besteira: você se lembra daquela tarde em que tomamos cachaça num café que tinha naquela rua e estava lá uma louca que dizia, etc., etc. Então já não se trata mais de amizade, porém de necrológio.
Sentimos perfeitamente que estamos falando de dois outros sujeitos, que por sinal já faleceram – e eram nós. No amor isso é mais pungente. De onde concluireis comigo que o melhor é não amar, porém aqui, para dar fim a tanta amarga tolice, aqui e ora vos direi a frase antiga: que é melhor não viver. No que não convém pensar muito, pois a vida é curta e, enquanto pensamos, elas se vai, e finda.

Maio, 1948.


CHUVAS DE VERÃO 
Fernando Lobo

Podemos ser amigos simplesmente
Coisas do amor nunca mais
Amores do passado, no presente
Repetem velhos temas tão banais
Ressentimentos passam com o vento
São coisas de momento
São chuvas de verão

Trazer uma aflição dentro do peito
É dar vida a um defeito
Que se extingue com a razão
Estranha no meu peito
Estranha na minha alma
Agora eu tenho calma
Não te desejo mais

Podemos ser
Amigos simplesmente
Amigos, simplesmente
E nada mais

Podemos ser
Amigos simplesmente
Amigos, simplesmente
Nada mais

Trazer uma aflição dentro do peito
É dar vida a um defeito
Que se extingue com a razão
Estranha no meu peito
Estranha na minha alma
Agora eu tenho calma

Não te desejo mais


SAIA DO CAMINHO 
Custódio Mesquita e Evaldo Ruy

Junte tudo que é seu 
Seu amor, seus trapinhos 
Junte tudo que é seu 
E saia do meu caminho 
Nada tenho de meu
Mas prefiro viver sozinho
Nosso amor já morreu 
E a saudade, se existe, é minha
Tinha até um projeto, no futuro, um dia,
O nosso mesmo teto 
Mais uma vida abrigaria 
Fracassei novamente 
Pois sonhei, mas sonhei em vão 
E você, francamente, decididamente 
Não tem coração 


ATÉ QUEM SABE 
Lysias Ênio, João Donato e Mercedes Chies

Até um dia 
Até talvez
 Até quem sabe 
Até você 
Sem fantasia
Sem mais saudade
Agora a gente
Tão de repente
Nem mais se entende
Nem mais pretende
Seguir fingindo 
Seguir seguindo
Agora vou
Pra onde for
Sem mais você 
Sem me querer 
Sem mesmo ser
Sem me entender
Vou me beber
Vou me perder 
Pela cidade 
Até um dia 
Até talvez
Até quem sabe 




ENREGELADO
Fábio Brito

Somos, agora, a situação evitada,
o recuo da porta,
a insônia constante,
o andar combalido,
o olhar meio longe,
o coração muralhado,
o cansaço incessante,
os atalhos urgentes,
o embaraço na voz,
o retiro apressado,
o silêncio forçado,
o sossego procurado.
Somos a roldana
no poço seco.
Somos o grande blefe.