MEUS TEMPOS DE CRIANÇA
Ataulfo Alves
Eu daria tudo que eu tivesse
Pra voltar aos tempos de criança
Eu não sei pra que que a gente cresce
Se não sai da gente essa lembrança
Aos domingos, missa na matriz
Da cidadezinha onde eu nasci
Ah, meu Deus, eu era tão feliz
No meu pequenino Miraí
Que saudade da professorinha
Que me ensinou o beabá
Onde andará Mariazinha
Meu primeiro amor, onde andará?
Eu igual a toda meninada
Quantas travessuras eu fazia
Jogo de botões sobre a calçada
Eu era feliz e não sabia
PELANCA OU BOLINHO DE
CHUVA?
Por Fábio Brito
Há
um tempo, num programa de TV, eis que ouço Miguel Falabella – ou “Miguéis
Falabellas”, como digo – fazer algum comentário sobre não achar graça quando ele
tem algo (um bem material, por exemplo), e a pessoa que está a seu lado não.
Como ele vai comemorar, dizer a essa pessoa que ele está feliz com aquilo, se
ela não pode sentir o mesmo? O bom é poder dividir. Em horas assim, não dá
“para se colocar no lugar do outro”, como dizem.
Pois
bem, foi assim que me senti, dias atrás, ao desmontar um apartamento em que não
moro há doze anos. Ao estilo “formiguinha”, fui carregando quinquilharias
reunidas ao longo de vinte e um anos. E fui presenteando pessoas próximas com
objetos que eu não via há um tempo (a quarentena me tirou da cama). De vários
desses objetos, eu quase não me lembrava mais... e olhe que minha memória é
prodigiosa.
Foi
então que, na mais recente “viagem em busca de certo tesouro quase esquecido”,
deparei com os “potes de mantimentos” que tenho na cozinha, que as pessoas têm
na cozinha. Que todas as pessoas têm na cozinha? No meu caso, alguns potes
ainda estavam com os tais mantimentos, como arroz, macarrão, pó de café,
açúcar... [mesmo não morando no tal apê, eu ainda passava/passo por lá para
fazer um cafezinho rápido, um macarrão instantâneo... Assim, alguma energia,
ainda que mínima, acaba circulando por aquele ambiente].
Bem,
chegando com os “potes de mantimentos” à minha casa, pedi uma ajudinha à
senhora que trabalha comigo para dar um rumo àquilo. Perguntei se ela via
alguma utilidade naqueles potes, se eles poderiam ser úteis para guardar algo
diferente, talvez, dos tais mantimentos de cozinha... sei lá. Foi aí que fiquei
surpreso (sei que muitas pessoas não seriam surpreendidas com a resposta, mas
fui) com o que ela me disse: ela “não tem potes de mantimentos de cozinha”. Só
um (e bem simples, como ela disse) para guardar o açúcar, por causa das
formigas. O arroz, o feijão e o pó de café, por exemplo, ficam nas próprias
embalagens que vêm do supermercado. Por uns instantes, fiquei meditando sobre
aquilo. Em minha ingenuidade infantil para certas situações (infantil mesmo!),
eu nunca tinha parado para pensar que muita gente não tem objetos tão simples,
bobagens mesmo que passam quase sem ser vistas por nós.
E
foi aí que voltei à minha infância. Década de 70, bairro de periferia de uma
cidade ainda pequena, Cachoeiro de Itapemirim, de um Estado também pequeno e,
constantemente, esquecido nos noticiários de TV. “Aldeia do quase” mesmo, para
usar uma expressão de Flora Sussekïnd. Dessa já distante década, lembrei-me,
com nitidez, de uns vizinhos que moravam praticamente em frente à nossa casa.
Família pobre e numerosa (pai, mãe e cinco filhos), não tinha, é claro!, as
mínimas condições de uma vida que poderíamos chamar de quase justa. Com os
filhos dessa família, exceto o mais velho, eu passava quase todas as minhas
tardes, brincando até que o dia baixasse a guarda. Opções não faltavam: desde
rolar pneu velho de automóvel pelas ruas, até saltar de um barranco numa terra
escavada e vermelhíssima, estripulia que nos deixavam marrons da cabeça aos
pés. E o melhor: sem bronca de mãe.
Bom,
depois de tanta brincadeira, hora do lanche da tarde. Lembrando aqui que a
palavra “lanche” nem era usada naquela época e naquela situação. Era luxo
demais! Uso-a agora, exatamente porque me falta outra. Acho que dizíamos “hora
de tomar café” mesmo. Hoje, vejo nitidamente o tempo brincando ao redor
daqueles meninos. Ele, o tempo, ainda não era um monstro devorador que saía
engolindo tudo. E a saudade vai matando a gente aos pouquinhos... Sem
digressões, Fábio!
Voltemos
ao lanche! Porque a tal da falta de fome sempre me acompanhou (feito minha
mãe!), nem sempre eu passava em casa no mesmo horário em que meus amiguinhos
tinham aquela “fome de anteontem” e nem pestanejam: da porta da cozinha mesmo,
num alvoroço de passarinhada, berravam pela mãe. Para não ter de passar em
casa, tomar café e depois voltar às brincadeiras, geralmente eu ficava por ali
mesmo, junto com os moleques que devoravam o que vinha pela frente. A mãe da
meninada sempre me convidava para lanchar. Não só pela falta de fome, mas,
principalmente, pela timidez, eu nunca aceitava. Entretanto, sempre que eu os
via lanchando, algo me intrigava: que tipo de fritura era aquela que eles
comiam? Eu nunca cheguei a ver, por exemplo, pão com manteiga naquela casa, ou
“bolinho de chuva”, que era bem comum aqui em casa e que adorávamos. Aliás, aos
“bolinhos de chuva”, minha mãe preferia “rosquinhas” com cobertura de açúcar e
canela. A propósito: por que “bolinhos de chuva”? Ouvi, não sei onde e quando,
duas possíveis explicações: ou porque os bolinhos são parecidos com gotas de
chuva, ou porque eles são normalmente preparados em dias chuvosos. Assunto para
outra crônica. Sem digressões, Fábio!
Novamente,
voltemos ao lanche! O fato de eu não ter fome ou não aceitar lanchar na casa
dos tais vizinhos não me impedia de, às vezes, ficar até “com água na boca”
imaginando o sabor do tal bolinho que eles comiam com tanto prazer. Excitação
até, arrisco dizer. Em verdade, nem era um “bolinho”, mas algo parecido com
panqueca, só que num tom meio transparente, ou uma pizza pequena. Opa! Panqueca
e pizza são mais dois luxos para aqueles tempos! Bom, findo o lanche, ou o
“café da tarde”, voltávamos às brincadeiras, que, daí a pouco, chegariam ao
fim. Uma pena o dia ser tão curto para tão longa vida e tão excitantes
brincadeiras. Ao entardecer, com os pardais já procurando seus galhos nas
árvores que, aos montes, transformavam meu bairro pobre no perfeito “paraíso
perdido” do Rousseau, eu voltava para casa (só atravessava a rua), mas não
conseguia esquecer o lanche dos meninos: que comida era aquela, meu Deus?
Bom,
anos – muitos anos – depois, conversando com uma prima de minha mãe, não sei
por que cargas d’água, eis que surge o assunto sobre o que a mãe dessa prima
fazia para o café da tarde quando todos os filhos – 11! - eram pequenos e
moravam na roça. Nem sombra de pão, claro!, a não ser o que preparavam em casa
mesmo. Quando faltava até esse pão caseiro, o jeito era improvisar: a mãe
preparava o que chamavam de “pelanca”, cuja receitinha dou agora: trigo, água,
sal e, quando havia, um pouquinho de óleo ou banha de porco. Dava-se só uma
mexidinha no trigo com o sal e a água e punha o resultado na frigideira.
Pronto! Na falta do pão (pão mesmo!) nosso de cada dia, um substituto – não à
altura, é lógico – entrava em campo: a tal da “pelanca”. Que nome esquisito,
pensei.
Bom,
a melhor parte vem agora. Nessa conversa aí, decifrei o enigma do lanche dos
meus amiguinhos lá na década de 70. O que minha vizinha fazia para seus meninos
era... “pelanca”. Só o que eu não sabia é que eles só comiam a tal pelanca
exatamente porque não podiam comer “bolinhos de chuva” ou “rosquinhas com
açúcar e canela”, como aqui em casa. Em minha ingenuidade quase santa, aquilo
era apenas uma questão de preferência. Não era, Fábio! Com alguma estranha
ternura até, mas “com espanto e horror”, constatei, tempos depois, que o que eu
achava ser preferência naquela época era o flagelo da fome. Eu não sabia,
menino ainda, que a pobreza rolava pneu comigo pelas ruas de meu bairro,
saltava de barrancos em terra vermelha, pulava “carniça” e brincava de pique-esconde. Para mim, éramos
todos iguais, sem quaisquer distinções, como prega nossa Constituição. Pura
mentira! Pura mentira naquela época, auge do regime militar, pura mentira hoje,
nesta “pátria amada, Brasil”, que insiste em "enfeitar a pobreza", ostentando-a
nos carros que abrem as alas de muitos "carnavais" país afora.
P.
S.:
Ah,
só não posso me esquecer de dizer que, outro dia, às 10 da noite, levantei-me
da cama e fui preparar uma “pelanca”. Comi o sabor da infância com um prazer
indescritível.