sábado, 28 de maio de 2011

A "SOZINHEZ" DOS 100

Foto: Fábio Brito

A “SOZINHEZ” DOS 100
Por Fábio Brito
Para Therezinha Fassarela, amiga mais que querida

Dias atrás, minha mãe e eu recebemos um convite muito honroso para nós: aniversário de 100 anos da tia de uma amiga muito especial, muito amada. Entre um papo e outro, conversamos sobre o vigor, a despeito de um ou outro momento de depressão, da aniversariante: ágil, lépida, inteligente, enfim, lúcida. Soube até que ela sobe e desce escadas várias vezes durante o dia. Taí a tão procurada lucidez quando se chega a uma “idade mais boazinha”, como dizem os portugueses. E a tia conseguiu. É uma dádiva, dissemos. Não há como negar isso.
Conversa vai, conversa vem, comentamos sobre solidão. Mas não sobre qualquer solidão. Queríamos saber da solidão dos 100. Em se tratando da tia, por exemplo, quantos “de sua época” ainda estão vivos?, perguntamos. Ninguém demorou muito para responder. A sobrinha tentou buscar na memória um ou outro nome de algum vizinho da tia, ou parente. Nada! Todos já morreram. Alguns até que viveram bastante, mas não chegaram aos 100.
Lembrei-me, então, de uma cena da minissérie Queridos Amigos, escrita por Maria Adelaide Amaral e exibida pela Globo há poucos anos (2008, para ser exato). A personagem interpretada pela atriz Fernanda Montenegro, ao chegar, se não me engano, a um bar, tece algum comentário sobre a impressão que se tem, depois de certa idade, quando se vai a certos lugares: é como se os amigos tivessem saído mais cedo. Quando ouvi isso, gelei. Dito pela Fernanda, ficou mais doído e forte.
Trazendo mais ‘pra’ cá: não estou nem na metade dos 100 (falta pouco!) e, de certa forma, essa solidão (talvez uma poeirinha ‘dela’) já se avizinhe. Muitos de meus amigos, por exemplo, a maioria dos “mais chegados”, são mais velhos que eu (não tãããão mais velhos, mas mais velhos). Muitos parentes próximos – é óbvio! – também estão envelhecendo comigo: os tios, por exemplo, que adoro, estão se distanciando. O pai já se foi. Daqui a um tempo, meus amigos mais novos também estarão mais velhos. E eu? Bem mais velho. É... quando chego a alguns lugares, não mais me surpreendo quando, nitidamente, também tenho essa sensação relatada pela personagem da Fernanda em Queridos Amigos. Fazer o quê? Enfrentar. E com altivez, de preferência.  
Essa solidão também se faz imponente em outras, vamos chamar assim, frentes. Na tentativa (nada de neurose!) de acompanhar - até certo ponto, claro! – as tais evoluções tecnológicas (as eternas evoluções tecnológicas!), é nítido o descompasso se nos compararmos com a garotada “de agora”, que, no útero, já sabe tudo de computador e outras “cositas” mais. Nós, os de outras gerações, aprendemos, sim, o básico (ou até um pouquinho além), para que não nos tornemos ETs totalmente fora deste mundo (para muitos, é por questão de sobrevivência mesmo). Entretanto, há os tais limites. Muitos dos quais eu até poderia, se quisesse, ultrapassar, mas não quero, não tenho “saco”, não tenho estômago. Meus livros impressos me esperam, meus vinis me esperam e muitos mais itens de “outro mundo”, um mundo ‘passado-presente’, me esperam.  Agora, vale uma pausa: ai, os vinis! Como os ouço com prazer! Adoro aquele barulho que chamo de “areinha” e que surge do contato da agulha com o espaço que antecede a primeira faixa. Estou, neste momento, imaginando a “criançada” tentando “ouvir” esse barulhinho. Desista, meninada! Isso é luxo para poucos. Fino acepipe. Procurem os hambúrgueres de vocês e fiquem satisfeitos. Lambam os beiços! Bom apetite!
Nesse embate passado x presente, há mais (muitas!) situações interessantes, várias até engraçadas. Há uns meses, num ‘shopping’ da vida, entrei para procurar uma camisa. O vendedor, um rapaz com uns 18, 19 anos, resolveu me mostrar, entusiasmado, várias. Com muita educação, dei-lhe o tempo necessário para retirar das sacolas várias que ele julgava adequadas a mim. É claro que não careci de muito tempo para dizer a ele – com bastante polidez, é claro! – que nenhuma ficaria bem em mim. Educadamente, ele me disse: “Mas estão todas na moda!” “Eu é que não estou na moda”, respondi, também educadamente. Disse-lhe mais: “Já sou um senhor. Um jovem senhor, mas um senhor”. Não satisfeito, ele sugeriu que eu visse umas bermudas. Topei! Quando vi, levei um tempinho para enxergar tantos bolsos, tantos apetrechos, tantos penduricalhos. Mais uma vez, e com delicadeza, eu lhe disse que elas eram muito enfeitadas e que eu não ficaria “muito bem” se as usasse. Resultado: nada de camisa ou bermuda naquele dia. Fazer o quê?!
Retomando o início de nossa conversa, tentei lembrar-me de outras pessoas que, assim como a tia de minha amiga, também chegaram aos 100, e até já passaram, como D. Canô Veloso, mãe de Caetano e de Bethânia, e Oscar Niemeyer, um dos arquitetos de Brasília: ambos caminham para os 104. Também continuam lúcidos. Talvez o segredo seja levar a vida “caymminianamente” (Caymmi chegou aos 94!). É claro que, para se chegar até lá, não vai ser tudo na base do amor, do sorriso e da flor. Até lá, nem tudo vai caminhar “sur de roulettes”, ou seja, “maravilhosamente bem”. Quer encarar? Acho que vale a pena. Sempre vale, não é? Cuide-se, então! Para mim, vale o que nos disse Joyce na canção “Monsieur Binot”, homenagem ao iogue (Vítor Binot) que a inspirou:

“Olha aí, monsieur Binot / Aprendi tudo o que você me ensinou / Respirar bem fundo e devagar / Que a energia tá no ar / Olha aí, meu professor / Também no ar é / que a gente encontra o som / E num som se pode viajar / E aproveitar tudo que é bom / Bom é não fumar / Beber só pelo paladar / Comer de tudo o que for bem natural / E só fazer muito amor / Que amor não faz mal / Então, olha aí, monsieur Binot / Melhor ainda é o barato interior / O que dá maior satisfação / É a cabeça da gente / A plenitude da mente / A claridade da razão / E o resto nunca se espera / O resto é a próxima esfera / O resto é outra encarnação...”

Vivamos! E sem medo!

FAZER 70 ANOS*
Carlos Drummond de Andrade

Fazer 70 anos não é simples.
A vida exige, para o conseguirmos,
perdas e perdas no íntimo do ser,
como, em volta do ser, mil outras perdas.

Fazer 70 anos é fazer
catálogo de esquecimentos e ruínas.
Viajar entre o já-foi e o não –será.
É, sobretudo, fazer 70 anos,
alegria pojada de tristeza.

Ó José Carlos, irmão-em-Escorpião!
Nós o conseguimos...
E sorrimos
de uma vitória comprada por que preço?
Quem jamais o saberá?

À sombra dos 70 anos, dois mineiros
em silêncio se abraçam, conferindo
a estranha felicidade da velhice.

*ANDRADE, Carlos Drummond de. Amar se aprende amando. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.


ENVELHECER *
Mario Quintana
Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.

* 80 anos de poesia / Mario Quintana; organização Tânia Franco Carvalhal. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Globo, 1987.

A ÚLTIMA ESCALA
Aderbal Freire-Filho*

Escrevo enquanto completo 70 anos. Como não se festeja a hora do nascimento, graças à falta de precisão da ciência, e sim o dia, levamos um tempo maior para completar um aniversário do que para nascer. Se fosse como corresponde, o aniversário seria igual à meia-noite do 31 de dezembro, o tempo do estouro da garrafa de champanhe, puft! Completei hoje de manhã 70 anos, devia dizer. Festejou? Não, dormi. O despertador não funcionou, fica pro ano que vem o champanhe que estava na geladeira esperando a hora. Como não é assim, um aniversário passa mais devagar do que a vida.
Pois enquanto completo 70 anos comparo o tédio desse dia que não anda com a agonia dessa vida apressada que não consigo acompanhar. Para resolver o disparate, tento me desembaraçar das imposições culturais que me impedem de considerar este um dia comum. Apago o email de parabéns do programa de milhagem, o do banco e o das Americanas que me desejam feliz aniversário e começo a encarar o zilhão de coisas que tenho que fazer. A sensação não é boa. É como se eu estivesse tirando as moedas do porquinho para pagar uma dívida monumental.
Sou refém do fantasma dos 70 anos. Seria a hora de fazer com Paul Laforgue, o genro de Marx, que se suicidou com a mulher, aos 69 anos, “antes que a impiedosa velhice paralise minhas energias e enfraqueça minha vontade”. Mas ontem perdi esse prazo.
Também sei que tem a velhice dos 50, a dos 60. mas a dos 70 é definitiva. Acho que descobri uma boa definição de velho: todo mundo que tem 20 anos a mais do que aquele que acuso (o outro de velho). Um homem de 40, para quem tem 20; um de 50, para quem tem 30; e assim por diante, até as pessoas de 80, para quem tem 60. mas essa definição não vale mais para os 70, a partir daí (daqui) não existem muitos velhos com quem me comparar, agora é comigo mesmo. Estou fazendo a última escala antes do fim da viagem.
“Voe não parece” e “não me sinto” são atenuantes que não valem muito. E as famosas compensações muitas vezes são amargas. Por exemplo, uma coisa que é vista bem dessas alturas é a transitoriedade. Passo na Avenida Vieira Souto, vejo um apartamento sendo reformado e penso no dia em que esse casal de jovens bem-sucedidos e as modernas luminárias que estão instalando vão ser substituídos outra vez, vão entrar também no saco do passado, como entraram agora os ex-habitantes do imóvel.
Para piorar, a melhor visão que se tem daqui é a da morte. Quando se soma a todos os acidentes a proximidade do fim do funcionamento da máquina, a morte senta, rindo, na cadeira em frente. Você levanta e ela vai junto. Às vezes me surpreendo querendo saber se o que vou fazer pela última vez é abrir ou fechar a porta de casa, isto é, se saio e não volto mais, ou se entro e não saio mais.
Enquanto completo 70 anos, esfrego o rosto, faço caretas só pensando no que ficou faltando fazer, querendo de volta as horas em que fiquei bestando. Vu segurando na química a pressão, o colesterol e fazendo fisioterapia para apressar o passo. Os anos que faltam são poucos, é preciso correr. Quero fazer muita coisa ainda. Mesmo sem saber para quê.
Sentada aqui em frente, a “moça” me mostra uma fotografia bem antiga de uma praça: essa gente toda já morreu, essas mulheres e homens, essas jovens risonhas, essas criancinhas de colo. Corta pra hoje. Sou como o velho da foto, sentado nesse banco, empertigado. E os outros são os que dividem o mundo comigo hoje. Daqui a um tempo, vamos ser só essa fotografia, que outro sem destino vai estar olhando nos seus 70 anos. Desculpem, estou dividindo com vocês meu pouco tempo.

  • Aderbal Freire-Filho é ator, diretor e esritor teatral e está em cartaz com o espetáculo “Depois do filme” no Teatro Poeirinha, em Botafogo, Rio de Janeiro, RJ.
       Fonte: Revista O GLOBO . Ano 7 . n 355 . 15 de maio de 2011.



A VELHICE DA PORTA-BANDEIRA*
Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro

Ela renunciou
A Mangueira saiu
Ela ficou
Era porta-bandeira
Desde a primeira vez
Por que terá sido isso que ela fez?

Não, ninguém saberá
Ela se demitiu
Outra virá
Ninguém a viu chorando
Coisa tão singular
Quando a bandeira tremeu no ar

Ô ô ô

Quando a avenida sambou ô ô
O seu mundo desmoronou
Ela se emocionou
Perto dela ela ouviu
Alguém gritou:
Viva a porta-bandeira
“Sou eu”, ela pensou
Mas foi a outra quem se curvou!

Ô ô ô
Quando toda a avenida sambou ô ô
O seu mundo desmoronou

Ô ô ô
Quando a porta-bandeira passou, quem viu?
Ela se levantou e aplaudiu
* Histórias das minhas canções / Paulo César Pinheiro. – São Paulo: Leya, 2010.








quarta-feira, 25 de maio de 2011

BEM-VINDO, ENVELHECIMENTO!


Amigos:

A passagem do tempo sempre foi, desde a mais tenra idade, um assunto bem instigante para mim.  Lembrei-me, agora, de umas imagens que criei ainda quando eu cursava Letras: quando eu envelhecesse, gostaria de 'me' transformar em um velho 'zen', sentado nas copas das árvores e olhando tudo de cima. Que visão panorâmica, não?! E privilegiadíssima, uma vez que, de lá de cima, eu poderia olhar todos os loucos correndo atrás de dinheiro, matando-se por ninharia, querendo brilho, sucesso e outras bobagens.  Para mim, ficar longe de tudo isso seria o ‘nirvana’ mesmo.

Pois é, há dois anos, lendo VIDA APÓS A VIDA, crônica do Bemvindo Sequeira, essa imagem do velho 'zen' voltou imediatamente. E a crônica é ótima! Minha mãe, por exemplo, não se cansa de relê-la inúmeras vezes. Será que herdei 'dela' essa "preocupação" com a passagem do tempo? É bem provável. O fato mesmo é que o assunto é deveras interessante... para muita gente. Caetano Veloso e Chico Buarque, por exemplo, compuseram duas canções belíssimas sobre o envelhecimento: O homem velho e O velho, respectivamente. Ouço-as sempre. Recentemente, Arnaldo Antunes também arrasou: Envelhecer (Arnaldo Antunes, Marcelo Jeneci e Ortinho).

Divirtam-se! 

 VIDA APÓS A VIDA

Bemvindo Sequeira *

Sempre pensei que ia morrer cedo. A luta armada, a clandestinidade, aventuras, promiscuidade, orgias, riscos… Tudo me levava a crer que não chegaria aos 30 anos. Para quem tem 20 anos, quem tem 30 já é coroa. Tomei um susto quando vi-me vivo e saudável aos 30. Aos 40 percebi a possibilidade real da morte. No dia do meu aniversário quarentão, um jovem ator de 24 anos perguntou como eu me sentia: “Agora? De frente para a morte.” Para minha surpresa foi o jovem quem morreu logo depois.
Aos 50 apaixonei-me pela letra de Aldir Blanc na voz de Paulinho da Viola: “Aos 50 anos, insisto  na juventude…”, isso enquanto percebia meu  ângulo peniano caminhando  para os 90 graus. Mas, antes dos 60, a pílula azul alargou minhas possibilidades e possibilitou-me ver o sexo por ângulos mais estreitos.
Agora estou além dos 60. Aos 40 rezava pela alma dos mortos amigos e parentes. Nome por nome eu pedia ao Senhor. Hoje, são tantos os que caíram, que apenas peço “pelos mortos em geral”. E mais uma vez espanto-me por estar ainda vivo, e consolo-me no Salmo 91.7, que diz: “Mil cairão ao teu lado e dez mil à sua direita, mas você não será atingido.” Mesmo confiando na Palavra, ainda assim caminho embaixo de marquises pra São Pedro não me ver.
Ainda estou vivo, e pra quem pensou que morreria aos 30 descubro que existe vida após a vida. Mas o preço do viver é muito alto para o jovem de hoje: tem que comprar apartamento, arranjar um trampo, ganhar dinheiro, ficar famoso, comer todas, bombar no iutube, malhar, casar, ter filhos, comprar carro, estar bronzeado, conhecer tudo de web e ainda ir ao show da Madonna, entre outras miudezas.
Após os 60, você já está quite com tudo isso e pensa que vai viver em paz. Qual o quê: tem que tomar insulina, antidepressivos, rivotris, controlar a pressão, não comer açúcar, não comer sal, não fumar, não beber, se conseguir comer uma e outra já é uma vitória, tem que caminhar ao menos meia hora por dia, cuidar do joanete, dormir cedo, vender o apartamento, fugir da bolsa, não discutir no trânsito, não se alterar no caixa do supermercado, tolerar os filhos, agradar os netos, ficar calado diante da mediocridade, aceitar o salário de aposentado, ter o testamento em dia e curtir todas as dores ósseas, nervosas e musculares porque se algum dia você acordar sem dor é porque está morto.
Claro que o idoso tem suas vantagens: uma delas é a transparência. Quanto mais velho, mais transparente você se torna. Chega a ficar invisível: ninguém mais lhe percebe, mais um pouco e nem lhe enxergam. Mas pode passar à frente dos jovens nas filas todas, com aquele ar de superior: “Você é jovem e sarado, mas eu tenho prioridade.” E ante qualquer aborrecimento ou dificuldade você ameaça enfartar ou ter um AVC. Funciona sempre, todos logo se tornam gentis e cordatos, e é garantia de muitas meias e lenços como presentes no Natal.
Lidando com a minha “terceira idade” ouço de meu psicanalista, o bom Luiz Alfredo: “Só há dois caminhos: envelhecer… ou o outro, muito pior.” Prefiro envelhecer, aceitando cada minúsculo “sim” que a vida me dá com uma grande  alegria e uma grande vitória.
Hoje, quando encontro vaga num elevador de shopping, quando o banco está vazio, ou quando encontro promoção na farmácia, já considero uma  bênção gigantesca e agradeço a Deus pela graça alcançada.
Após os 60, como no filme de Brad Pitt, regrido na existência, deixo Paulinho e a viola de lado e reencontro Lupiscinio: “Esses moços, pobres moços, ah, se soubessem o que eu sei.” Mas se soubessem não ia adiantar nada: porque a sabedoria é filha do tempo. Como diz o amigo Percinotto, também idoso: “O diabo é sábio porque é velho.”
Pelo andar da carruagem, percebo que já morri muitas vezes nesta vida, e que viverei até fartar-me.
(Fonte: Revista O GLOBO * ano 5 * n 241 * 8 de março de 2009)
* Bemvindo Sequeira é autor, ator e diretor de teatro e TV


ENVELHECER
Arnaldo Antunes, Marcelo Jeneci e Ortinho

A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer
A barba vai descendo e os cabelos vão caindo pra cabeça aparecer
Os filhos vão crescendo e o tempo vai dizendo que agora é pra valer
Os outros vão morrendo e a gente aprendendo a esquecer

Não quero morrer pois quero ver
Como será que deve ser envelhecer
Eu quero é viver pra ver qual é
E dizer venha pra o que vai acontecer

Eu quero que o tape voe
No meio da sala de estar
Eu quero que a panela de pressão pressione
E que a pia comece a pingar
Eu quero que a sirene soe
E me faça levantar do sofá
Eu quero pôr Rita Pavone
No ringtone do meu celular
Eu quero estar no meio do ciclone
Pra poder aproveitar
E quando eu esquecer meu próprio nome
Que me chamem de velho gagá
 O HOMEM VELHO*
Caetano Veloso
1984
À memória de meu pai, a Mick Jagger e a Chico Buarque, que agora
tem 40 anos, mas aos 20 fez uma canção lindíssima sobre o tema

O homem velho deixa vida e morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais
O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais
O homem velho é o rei dos animais

A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol
As linhas do destino nas mãos a mão apagou
Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n'roll
As coisas migram e ele serve de farol

A carne, a arte arte, a tarde cai
No abismo das esquinas
A brisa leve traz o olor fugaz
Do sexo das meninas

Luz fria, seus cabelos têm tristeza de néon
Belezas, dores e alegrias passam sem um som
Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho
                                                                [de Hebron
E ao seu olhar tudo o que é cor muda de tom

Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval
Espalham-se no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que é imortal

*Letra só; sobre as letras / Caetano Veloso; organização Eucanaã Ferraz. - São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

O VELHO*
Chico Buarque
1968

O velho sem conselhos
De joelhos
De partida
Carrega com certeza
Todo o peso
Da sua vida
Então eu lhe pergunto pelo amor
A vida inteira, diz que se guardou
Do carnaval, da brincadeira
Que ele não brincou
Me diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Nada
Só a caminhada
Longa, pra nenhum lugar

O velho de partida
Deixa a vida
Sem saudades
Sem dívida, sem saldo
Sem rival
Ou amizade
Então eu lhe pergunto pelo amor
Ele me diz que sempre se escondeu
Não se comprometeu
Nem nunca se entregou
E diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Nada
E eu vejo a triste estrada
Onde um dia eu vou parar

O velho vai-se agora
Vai-se embora
Sem bagagem
Não sabe pra que veio
Foi passeio
Foi passagem
Então eu lhe pergunto pelo amor
Ele me é franco
Mostra um verso manco
De um caderno em branco
Que já se fechou
Me diga agora
O que é que eu digo ao povo
O que é que tem de novo
Pra deixar
Nao
Foi tudo escrito em vão
E eu lhe peço perdão
Mas não vou lastimar

* Chico Buarque, letra e música: incluindo Gol de Letras de Humberto Werneck e Carta ao Chico de Tom Jobim. - São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

domingo, 22 de maio de 2011

FABULOSA LILIAN LEMMERTZ

Amigos:
Lilian Lemmertez, mãe da também atriz Júlia Lemmertz, simplesmente arrasou em Baila Comigo (novela de Manoel Carlos, exibida 1981 pela Rede Globo), em que ela interpretou Helena (aliás, a primeira das famosas ‘Helenas’ de Maneco). Lílian é/foi uma atriz fabulosa. Foi extraordinária em todos os papéis. Infelizmente, deixou-nos muito cedo: em 5 de junho de 1986, dez dias antes de completar 48 anos. Imagino o que ela estaria fazendo até hoje, com quase 73 anos. Recentemente, em 2010, foi lançada a obra “Lilian Lemmertz, sem rede de proteção”, de Cleodon Coelho (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – ColeçãoAPLAUSOespecial). Imperdível! Também excelente é o texto "Em memória de Lilian", de Caio Fernando Abreu:

EM MEMÓRIA DE LILIAN
Caio Fernando Abreu

Somos todos imortais. Teoricamente imortais, claro. Hipocritamente imortais. Por que nunca consideramos a morte como uma possibilidade cotidiana, feito perder a hora no trabalho ou cortar-se fazendo a barba, por exemplo. Na nossa cabeça, a morte não acontece como pode acontecer de eu discar um número telefônico e, ao invés de alguém atender, dar sinal de ocupado. A morte, fantasticamente, deveria ser precedida de certo “clima”, certa “preparação”. Certa “grandeza”.
Deve ser por isso que fico (ficamos todos, acho) tão abalado quando, sem nenhuma preparação, ela acontece de repente. E então o espanto e o desamparo, a incompreensão também, invadem a suposta ordem inabalável do arrumado (e por isso mesmo “eterno”) cotidiano. A morte de alguém conhecido ou/e amado estupra essa precária arrumação, essa falsa eternidade. A morte e o amor. Por que o amor, como a morte, também existe – e da mesma forma dissimulada. Por trás, inaparente. Mas tão poderoso que, da mesma forma que a morte – pois o amor é uma espécie de morte (a morte da solidão, a morte do ego trancado, indivisível, furiosa e egoisticamente incomunicável) – nos desarma. O acontecer do amor e da morte desmascaram nossa patética fragilidade.
Como amor e morte não se separam – feito quem diz “era uma vez”, conto: na tarde de sábado, estava eu assustadamente dentro do amor (eu não acreditava mais que o amor existisse, e a vida desmentia) quando o telefone tocou. Do outro lado, alguém me deu a notícia da morte de Lilian Lemmertz. E eu também não acreditava mais que a morte existisse, naquele ou neste momento, quando preciso me embriagar um pouco com urgências de vida porque se considerar a cada minuto a possibilidade da morte – então paro imediatamente de viver. Fico de olhos arregalados, imóvel, à espera do poço previsto.
Como quem muda um canal de televisão, continuei vivo. Pra rebater a morte, fui ver o show de vida de Elza Soares. E bebi e fumei e conversei e amei mais e mais ainda. Mas dentro de qualquer movimento, a morte de Lilian. E dei pra lembrar de uma única conversa nossa, quando ela fazia Esperando Godot, e fui entrevistá-la. Falamos uma tarde inteira. Ela era mais que linda. Era viva, sarcástica, tensa, confusa. Meio desmedida. E rainha.
Lilian era nobre. Eu pensava em atrizes, enumerava: Marília Pera, Fernanda Montenegro. E Lilian Lemmertz, com aquela raça, aquele porte, a boca inesperadamente frágil e amarga, desmentindo o brilho às vezes frio dos olhos. Um certo ar de Jeanne Moreau, e ninguém como ela. Que nem chegou a ter seu grande papel, sua Fedra, sua Petra, Seu Pixote, sua hora de estrela. Brilhante, mas, ao fundo, aquele ar de humanidade despedaçada que Marília também suporta. Ouvir Lilian falando era ficar arrepiado, olhos cheios de lágrimas: o humano excessivo aterroriza e maravilha. Igual à morte e ao amor.
Guardo Lilian na memória não como a professora de Lição de Amor, a bêbada de Caixa de Sombras ou a dona-de-casa de Baila Comigo – escolho guardá-la metida na pele de um dos vagabundos de Samuel Beckett. Barriga falsa, suspensórios, calças pelo meio da canela, chapéu-coco. Meio clown, esperando por Godot. Que chegou, afinal. Lilian estava sozinha. Ele a levou consigo. Terá sido frio seu súbito abraço? Quem sabe não.
Agora, no fim da noite de domingo, longe do colo morno do amor, a morte visita o apartamento e fico pensando em como recuperar minha imortalidade após este próximo ponto final. Preciso dela, amanhã de manhã. Quando o mundo continuará igual. Só que sem Lilian. E, portanto, um pouco mais feio, um pouco mais sujo. Mais incompreensível, e menos nobre.

http://semamorsoaloucura.blogspot.com/2006/10/em-memria-de-lilian.html

quinta-feira, 19 de maio de 2011

EPIFANIA



            Sobre “o” concerto de Ithamara Koorax
        Por Fábio Brito

Privilegiadas foram as pessoas que lotaram o teatro do SESI no centro do Rio e assistiram, dia 17 de maio de 2011 (data histórica! Registrem aí...), em êxtase, ao espetáculo Música clássica na voz de Ithamara Koorax – Opus II. Quem não viu perdeu algo que não dá para recuperar e muito menos substituir ou trocar. Trata-se de um espetáculo fora deste mundo. Armação dos deuses mesmo.  
Se não fosse o esquema “de cartas mais do que marcadas” da indústria fonográfica deste país, mais pessoas poderiam ter tido o privilégio de ver esse espetáculo batizado por mim de epifânico, porque revelador do sagrado, do sublime. Infelizmente, ainda não foram oferecidos à massa os tais biscoitos finos, só para citar Oswald de Andrade, de que todos carecemos. A muitos (e muitos mesmo!), ainda não foi dada a chance de escolher a forma pela qual saciar sua fome de cultura. Há muitas pessoas, neste país imenso, que, infelizmente, deixaram de ser educadas por meio da arte e da cultura. Foram, talvez, escolarizadas, mas educadas não.
A grande maioria (que pena!) contenta-se com “biscoitos” produzidos às pressas e de sabor ‘pra’ lá de duvidoso. Nada finos, não é? Escolher? Quem pode? Poucos. Pouquíssimos! Enquanto o mercado tratar música como um produto qualquer e o objetivo primeiro não for, certamente, a arte, a indigência cultural de muitos continuará sendo um mal de difícil tratamento. A massificação é tão intensa, que até pessoas que se julgam imunes a esses vírus que infestam a mídia em geral surpreendem-se assoviando (ou “cantarolando”) “músicas” (?) que jamais pensariam em assoviar em toda sua vida.
No espetáculo de Ithamara, foi possível assistir a uma intérprete excepcional em plena maturidade e total sabedoria interpretativa. De uma ousadia ímpar, ela passeia (é este mesmo o verbo) por um repertório inigualável. Obras de Villa-Lobos, Fauré, Chiquinha Gonzaga, Claus Ogerman, Debussy, Borodin, Rachmaninoff, Chopin, Ravel – só para citar alguns - são revisitadas com uma desenvoltura de que só é capaz uma intérprete genial como Ithamara, que celebra conosco o fato de essas criações serem eternas. No entanto, atenção, incautos! Em se tratando de Ithamara, não associem música clássica a interpretação burocrática. Nada disso! Para uma intérprete que é a melhor do mundo, não há repetição de fórmulas. Sem que as canções perdessem sua integridade, nossa diva foi capaz de explorar possibilidades impensadas por qualquer outro intérprete. Além de buscar a originalidade, ela chega a limites a que ninguém ousaria chegar.
Só mesmo uma artista rara, mítica, dá-se o luxo de tanta ousadia, de tanto atrevimento. Coragem não é para todos, e Ithamara sabe disso, tanto que dá inúmeros saltos mortais e tem plena consciência de que não há rede de proteção à sua espera. A todas as canções, ela se entregou com uma força avassaladora. Foi impossível conter o choro. Com seu instrumento “insuportavelmente” afinado, ela foi capaz de nos emocionar o tempo todo, o que não é fácil. Ela nos arrepiou mesmo, por mais “lugar-comum” que seja usar essa expressão.  À medida que um intérprete vai aprimorando seu canto, ele corre o sério risco da frieza interpretativa. A busca incessante por um apuro técnico pode levar a isso. Ithamara, que é tecnicamente perfeita, não corre esse risco: ela sabe combinar perfeitamente técnica com emoção. 
No concerto, a pureza que saía das notas deixou todos boquiabertos. Na garganta, ela tem mesmo um brilhante de 18 quilates. Ithamara alcança notas dificílimas e jamais desafina. E olhe que desafinar, dizem muitos, não é nada tão grave ou assustador. Muitos intérpretes, brasileiros ou não, desafinam, mas Ithamara não. Sua voz é tão extraordinária, que ela pode cantar em qualquer tom. Ela encara qualquer modulação, que, quando é ‘para cima’, então, ela sobe, sobe, sobe... e socorro! Ninguém a segura. Ela faz o que quer com seu “gogó de ouro”, alcunha mais do que justa atribuída por sua madrinha musical, Elizeth Cardoso, que a adorava. Que extensão privilegiada tem a voz de Ithamara! Meu Deus, o que é aquilo tudo!
Ithamara é adorada no mundo todo. Ela é para ser reverenciada e ponto. No entanto, as “panelinhas” da indústria fonográfica aqui no Brasil ainda não sabem disso. Se um dia souberem, pode ser tarde à beça. Lá fora, ela é idolatrada. Sabem o que é bom e não perdem tempo: contratam rapidamente. Não demora, ela viajará novamente. O mundo sempre a recebeu de braços abertos. Que luxo!













sábado, 14 de maio de 2011

A PREFERIDA DO 'POETINHA'



Maria Creuza é baiana. Que terra abençoada essa Bahia! Seu nome, quase sempre associado ao de Vinicius de Moraes, é um dos mais importantes da MPB. Dizem que ela era a cantora ‘favorita’ do ‘Poetinha’. Do time de Nara Leão, Dóris Monteiro, Rosa Passos e tantas outras de timbre suave e preciso, ela é amada (e muito!) no Japão. Seu canto, ora derramado, ora contido, emociona. Uma de suas gravações mais marcantes é Dom de iludir, de Caetano, lançada por ela em 1976 (Gal a regravou em 1982), que ‘dialoga’ com Pra que mentir?, de Noel e Vadico: “Não me venha falar / Na malícia de toda mulher / Cada um sabe a dor e a delícia / De ser o que é (...)”. É para ser ouvida de madrugada mesmo. A voz de Maria Creuza é ‘noturna’. É um sussurro que deve ser acompanhado com um vinho de altíssima qualidade. Ou um uísque. Quem pode esquecer Onde anda você, de Vinicius e Hermano Silva, na voz de Maria Creuza? Ninguém! Essa canção é ‘dela’ e pronto. Que bolero delicioso! A voz está sensualíssima. Irresistível. Depois de ouvi-la, impossível não perguntar por onde andam muitas pessoas que, outrora, foram tão importantes para nós. Da safra de Vinicius, de quem ela gravou muitas canções, impossível não lembrar Canção do amanhecer, parceria com Edu Lobo: “Ouve / Fecha os olhos, meu amor / É noite ainda / Que silêncio (...)”. Quando ouvi Dia branco, de Geraldo Azevedo e Renato Rocha, em um medley com Dona da minha cabeça e Moça bonita, fiquei encantado: “Se você vier / Pro que der e vier / Comigo / Eu lhe prometo o sol / Se hoje o sol sair / Ou a chuva / Se a chuva cair / Se você vier (...) Nesse dia branco / Se branco ele for (...)”. Embora seja uma canção bem conhecida, Maria Creuza imprimiu-lhe um quê a mais. O verso “Se branco ele for”, por exemplo, mostra a voz extremamente melodiosa. Que delícia ouvir essa canção. Você abusou, da dupla Antonio Carlos e Jocafi, é excelente. E Maria Creuza deu a essa canção o tom exato. Difícil ouvi-la e, logo em seguida, não cantarolar quase todos os versos: “Que me perdoe / Se eu insisto nesse tema / Mas não sei fazer poema ou canção / Que fale de outra coisa que não seja o amor / Se o quadradismo dos meus versos / Vai de encontro aos intelectos/ Que não usam o coração como expressão / Você abusou / Tirou partido de mim / Abusou (...)”. Há muito tempo, Maria Creuza parece não falar de outra coisa que não seja o amor. Transgride ao falar de amor e manter a qualidade. Faz tempo que gosto muito de Maria Creuza.  

sexta-feira, 13 de maio de 2011

OBRAS DE ARTE




Pintura - em tecido - de minha tia Maria Rita. Pura obra de arte.
            
PRIMEIRA INFÂNCIA

Era rosa, era malva, era leite,
as amigas de minha mãe vaticinando:
vai ser muito feliz, vai ser famosa.
Eram rendas, pano branco, estrela dalva.
Benza-te a cruz, no ouvido, na testa.
Sobre tua boca e teus olhos
o nome da Trindade te proteja.
Em ponto de marca no vestidinho: navios.
Todos à vela. A viagem que eu faria
em roda de mim.

PRADO, Adélia. O coração disparado. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.


quarta-feira, 11 de maio de 2011

DAMAS DA NOITE QUE PAIRAM SOBRE MEU ESPÍRITO





'Damas da noite' do jardim aqui de casa.

FLORES
A boa-noite floriu suas flores grandes,
parecendo saia branca.
Se eu tocasse um piano elas dançavam.
Fica tão bom o mundo assim com elas,
que nem me desprezo por querer um marido.
Perfumam à noite.
A gaita de um menino que nunca morreu
toca erradinho e doce.
Eu cumpro alegremente minhas obrigações paroquiais
e não canso de esperar;
mais hoje, mais amanhã, qualquer coisa esplêndida acontece:
as cinco chagas, o disco voador, o poeta com seu cavalo
relinchando na minha porta.
Desejava tanto tomar bênção de pai e mãe,
juntar uns pios, umas nesgas de tarde,
um balançado de tudo que balança no vento
e tocar na flauta. É tão bom
que nem ligo que Deus não me conceda
ser bonita e jovem
- um dos desejos mais fundos de minha alma -
"O espírito de Deus pairava sobre as águas..."
Sobre o meu, pairam estas flores
e sou mais forte que o tempo.

PRADO, Adélia. O coração disparado. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.

PERFUME SUAVE, CAMAFEUS E LAREIRAS



Na década de 50, surge Doris Monteiro. Que petulância! Suas contemporâneas tinham muita voz e cantavam, como dizem, ‘pra’ fora. E eram excelentes por isso, é bom que se diga. Doris cantava suavemente. Que atrevimento surgir em uma época assim. Cantar de um jeito suave em meio a tantas vozes potentes era uma atitude muito corajosa. Seu estilo cool marcou época. Ela não só surgiu nesse tempo, como permaneceu e fez sucesso. As canções que Doris gravava tinham a leveza de seu canto. Eram perfeitamente adequadas à sua voz. De todas as suas interpretações, a de que mais gosto é Memórias do Café Nice, de Artúlio Reis e Monalisa, que traz de volta um Rio deliciosamente ingênuo: “Ah! Que saudade me dá/ Do bate papo / Do disse-me-disse / Lá do Café Nice / Ah! Que saudade me dá (...)”. Quem não se lembra dessa canção? Pois é, Doris é uma das responsáveis por sua perpetuação. Não há uma só pessoa que a ouça e não saia cantarolando-a imediatamente. Mudando de conversa, de Maurício Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho, é mais um de seus sucessos: “(...) Mudando de conversa / Onde foi que ficou / Aquela velha amizade / Aquele papo furado todo fim de noite / Num bar do Leblon (...)”. Essa canção não poderia ter outra voz. A voz de Doris, para mim, traz uma saudade bem pueril. Como se fosse uma volta ao “paraíso perdido”. Ao centro do Rio, por exemplo. A voz de Doris me lembra tudo que é descrito na letra de Rio antigo, de Chico Anísio e Nonato Buzar: o carnaval com serpentinas; Oscarito e Grande Otelo no cinema; o bate-papo na esquina; crianças na calçada; Cinelândia; velho samba do Ataulfo; som de fossa da Dolores; valsa do Orestes; lampiões e violões. É nostalgia mesmo. É Confeitaria Colombo e as mais que famosas ruas do centro do Rio. Quando ouço Doris, lembro-me de muitos camafeus. A voz de Doris é um perfume suave depois de um banho tépido.  É perfume na fronha dobrada. É aconchego ao pé da lareira. A voz de Doris é perfume de talco. É deliciosa a voz de Doris Monteiro, uma transgressora, antes de tudo.

terça-feira, 10 de maio de 2011

ESSÊNCIA FEMININA



De sua geração, Joyce é uma das melhores quando o assunto é o trato do feminino. Detalhe: esse trato - esmerado - não diz respeito somente à compositora de altíssimo nível. A intérprete Joyce também é excelente, porque capta muito bem essa essência feminina, que é diferente mesmo. Quem não se lembra, por exemplo, da canção “Feminina” (Joyce), sucesso do Quarteto em Cy na trilha do seriado Malu Mulher? “Não é no cabelo ou no dengo / ou no olhar, ô mãe / É ser feminina por todo lugar, ô mãe / Me explica, me ensina, me diz / O que é feminina (...)”. Em nova versão (de “Revendo amigos”, lançado em 1993), a canção ganhou um “swing” especialíssimo: a voz de Joyce está muito sensual. “Mulheres do Brasil” (Joyce) também é outra canção muito emblemática: “No tempo em que a maçã foi inventada / Antes da pólvora, da roda e do jornal / A mulher passou a ser culpada / Pelos deslizes do pecado original (...)”. Bethânia registrou-a em seu “Maria”, de 1988. Com participação de Beth Carvalho, Joyce regravou-a no “Revendo amigos”. E por falar em mulher, em 1998, Joyce, de forma espetacular, homenageou Elis: gravou “Astronauta: canções de Elis”. Numa tirada inteligente, mesclou canções conhecidas do repertório da “Pimentinha” com outras pouco lembradas. Está tudo aí. Só biscoitos finos: “Morro velho”, “Querelas do Brasil”, “Essa mulher”, “Na batucada da vida”, “Astronauta”... E tudo com a “marca Joyce” de interpretar. Em 1977, lançou por estas terras “Passarinho urbano”, disco impecável, porque carregadinho de clássicos. Entre eles, “Pelo telefone” (Donga), considerado o primeiro samba (há controvérsias quanto ao gênero) gravado. Nesse mesmo disco, Joyce impressiona pela força interpretativa de “Pesadelo” (Maurício Tapajós / Paulo César Pinheiro), um tiro no pé da ditadura militar e seus anos de chumbo: “Quando um muro separa / Uma ponte une / Se a vingança encara / O remorso pune (...)”. Ah! Ainda para esse disco, Joyce musicou Quintana, nosso grande poeta de Alegrete (RS) e do mundo: “Todos esses que aí estão / Atravancando o meu caminho / Eles passarão... / Eu passarinho!”. Gosto à beça desse poema e ouvi-lo na voz de Joyce é luxo dos luxos! Sensibilidade a toda prova dessa moça. Em 2007, junto com Toninho Horta, ela presta outra homenagem: agora, ao maestro soberano. Onipresentes: Tom, Joyce e Toninho Horta.

VASCULHANDO DORES E SAUDADES



Selma Reis passou a ser conhecida do grande público quando foi ao ar a minissérie ‘Riacho Doce’. Eu também a conheci nessa época. Ninguém esquece sua gravação visceral de O que é o amor: “O que é o amor / Onde vai dar / Parece não ter fim / Uma canção / Cheirando a mar (...)”. Que letra! Que melodia! Que voz! Tempos depois, descobri “Só dói quando eu rio” (1991), em vinil, que guardo com muito zelo. Ouvi-o muito. Sombra em nosso olhar (Smoke gets in your eyes), um clássico, ficou mais clássico ainda. A gravação ficou exuberante. De papo pro ar (Joubert de Carvalho / Olegário Mariano), outro clássico que também está nesse disco, também ficou excelente: “Não quero outra vida / Pescando no rio de gereré / Tem peixe bom / tem siri-patola / De dá com o pé (...)”. É a própria imagem da tranquilidade, da ausência total de sofrimento. É o nirvana mesmo. E a voz de Selma Reis reforça bem isso. É ela que nos conduz a esse paraíso. Em 1996, fiquei estupefato com “Selma Reis canta Gonzaguinha – Achados e perdidos”, uma obra-prima. De cara, a segunda faixa é um medley que reúne Simples saudade (“A saudade que eu sinto / Não é a saudade da dor de chorar / Não é a saudade da cor do passado (...)” e Sangrando (“Quando eu soltar a minha voz / Por favor entenda / Que palavra por palavra / Eis aqui uma pessoa / Se entregando (..)”. Arrepiante é pouco para descrever essa faixa. E a voz nos faz chorar literalmente. Ela ajuda a vasculhar dores e saudades guardadas há tempos, mas que só vêm à tona porque a voz é de Selma Reis. Em sua homenagem a Paulo César Pinheiro, “Selma Reis, a minha homenagem ao poeta da voz”, nossa diva passeia pelo repertório de outras divas, como Clara e Elis. E brilha alto também. Fecha o CD com Minha missão (João Nogueira / Paulo César Pinheiro), gravada pela Clara em 1981 e, recentemente, redescoberta por Mariana Aydar: “Quando eu canto / É para aliviar meu pranto / E o pranto de quem já tanto sofreu  (...)”. A voz  espetacular de Selma Reis alivia qualquer pranto.  Em seu Sagrado (2007), nossa poderosa Selma passeia por Mozart, Schubert, Handel, Gounod, entre outros. Da primeira à última faixa, pura emoção. É uma oração esse CD... e das mais nobres. Sem marcas de pieguice. Nobre é o canto de Selma Reis e ponto.

SEU NOME CONTINUA SENDO GAL



Gal Costa,  a baianinha tímida do início da carreira, cuja voz, de afinação de metrônomo, era “à la” João Gilberto, alçou voo, mais tarde, em direção a agudos incríveis. Ao atingir as alturas, chegou à estridência. Brindou-nos, então, com momentos de puro deleite. Que prazer ouvir aqueles agudos lisos em canções como Olhos do coração, Nada mais, Índia (esta em seus dois primeiros registros) e Meu nome é Gal. Nesta, o duelo com a guitarra (na segunda gravação, de 1979) é lindo. Um presentão de Roberto e Erasmo: “Meu nome é Gal / E preciso me corresponder com um rapaz / Que seja o tal / Meu nome é Gal (...)”. Que voz! Basta ouvir, por exemplo, Cordas de aço, do mestre Cartola, e constatar, embevecido, o tom exatinho em cada nota: “Ah, essas cordas de aço / Esse minúsculo braço / Do violão que os dedos meus acariciam / Ah, esse bojo perfeito / Que trago junto ao meu peito (...)”. A gravação de Língua (“O que quer, o que pode essa língua?), o “samba-rap invertebrado e sem melodia cantável", como já disseram, do mano Caetano é outro momento primoroso da discografia de Gal. Quer mais? Ouça Fala, Mangueira / Mangueira, medley que reúne duas canções e está em No Tom da Mangueira. A voz está “lá em cima”. Linda a gravação. Noites cariocas, de Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho, que está em Gal Tropical, de 1979, é outro momento requintado da discografia de Gal: “Sei que ao meu coração / Só lhe resta escolher / Os caminhos que a dor / Sutilmente traçou para lhe aprisionar (...)”. Caras e bocas, canção que dá nome a seu disco de 1977, é uma homenagem de Bethânia, que fez a letra, e de Caetano à amiga: “Mas se dessa garganta / Das cordas escondidas / Desse peito sufocado / Desse coração atrapalhado / Surge uma nota brilhante / De cristal transparente / Minha cara invade a cena / Rasga a vida / Mostra o brilho agudo musical”. Belíssima homenagem! Quem não se lembra de seu canto indignado na abertura de Vale Tudo, novela de Gilberto Braga? Era 1988. Os versos de Brasil, de Cazuza (em parceria com Nilo Romero e George Israel), eram catárticos para todos os brasileiros: “Brasil, mostra tua cara / Quero ver quem paga / Pra gente ficar assim...”. E Gal simplesmente a-r-r-a-s-o-u! Com essa mesma canção, ela arrasou novamente quando participou do especial O tempo não pára, de Cazuza: de saia estampada e cabeleira farta, não deixou ninguém indiferente. Gritou, para todo o mundo ouvir, os bombásticos versos de Caju, nosso talentoso-menino-poeta. Não posso esquecer outras pérolas na voz de Gal: Nega manhosa (Herivelto Martins) e Samba rubro-negro (Wilson Batista e Jorge Castro), do repertório do show Índia, de 1973, fundidas em uma faixa (do LP  "Palco: corpo e alma"), e Saia do caminho (Custódio Mesquita e Oswaldo Ruy), do mesmo show de 1973, que está em um compacto simples de 1974. As duas faixas são sensacionais. São ótimos exemplos da exatidão, da delicadeza, da perfeição do canto de Gal. Simplesmente isso. Logo que ela surgiu, impressionou-me muito a figura da mulher com o violão. Gal foi muito moderna (leia-se transgressora) para seu tempo. Foi muitas em diversas fases de sua carreira. Sem qualquer sombra de medo, arriscou sempre. Por mais lugar-comum que seja, Gal “abriu as portas” para muitas que vieram depois. Foi influência para muitas cantoras modernas. Quem não se lembra do show Fatal? Impossível esquecer. Esse show é um marco da transgressão. Se mais não fosse, valeria pela gravação de Assum preto (Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira): “Tudo em vorta é só tristeza / Céu azul e a mata em flor (...)”. Simplesmente arrepiante. Gal é imprescindível à MPB. Gal é uma das maiores representantes da MPB de todos os tempos. 


A MATRIARCA: DALVA



Em 70, as rádios (que poder tinha o rádio!) não se cansavam de Dalva de Oliveira, a eterna Estrela Dalva. Sua Bandeira Branca, de Max Nunes e Laércio Alves, fazia o maior sucesso: “Bandeira branca, amor / Não posso mais / Pela saudade que me invade / Eu peço paz (...)”. Dalva, por sinal, era a cantora preferida de Villa-Lobos. Que luxo! Quando, em suas aulas, o grande maestro queria mostrar exemplo de agudos perfeitos, levava os discos da Dalva. E que agudos! A escola de Dalva também é a italiana, a do “belo canto”. Sua voz também encantou Bidu Sayão. Querem mais: Angela Maria começou sua carreira inspirando-se em Dalva. Se esta foi, de certa forma, a matriz de Angela, também o foi, por extensão, de Elis, que confessou ter imitado “descaradamente” Angela no começo de carreira. Dalva também é uma das paixões de Bethânia, que, em seu repertório, sempre inclui canções que foram “da” mestra: A Bahia te espera, Mentira de amor, Há um Deus e tantas outras. Segundo a própria Bethânia, Dalva, ao lado de Billie Holiday, é a grande intérprete feminina no mundo. Nossa! É muita admiração! É muito respeito. E Gal também homenageou Dalva. Em “Água viva” (1978), ao regravar Olhos verdes (Vicente Paiva) [“Vem de uma remota batucada / Uma cadência bem marcada / Que uma baiana tem no andar (...)], o “la-ra-ri-ri-ri-ri” ao fim da canção deixa explícita a homenagem. A própria Gal disse isso no programa Rodaviva. Muitos afirmam que Dalva é a grande matriarca, a mãe de todas as cantoras brasileiras.  Quem não se lembra de Dalva quando ouve Ave Maria no morro? Vários intérpretes registraram essa canção, mas ninguém a cantou melhor que Dalva: “Barracão de zinco / Sem telhado, sem pintura / Lá no morro / Barracão é bangalô (...)”.  Dalva foi transgressora porque se expôs, em “carne viva”, no palco e no disco, como Maysa. Era emoção à flor da pele. Fim de comédia, de Ataulfo Alves, é outro de seus grandes sucessos e que figura entre minhas preferidas: “Esse amor quase tragédia / Que me fez um grande mal / Felizmente essa comédia / Vai chegando ao seu final (...)”. Certa vez, Marília Gabriela, em seu Cara a Cara, disse, citando outra pessoa, que o que fazia a voz da Dalva ser tão especial era um choro que ela trazia. E acho que é isso mesmo. Dalva tinha um choro, que é único, na voz. Quer conferir? Ouça, por exemplo, sua gravação de A noite do meu bem, da também eterna Dolores Duran: “Hoje eu quero a rosa mais linda que houver / ‘Quero’ a primeira estrela que vier / Para enfeitar a noite do meu bem / (...) / Ai, como esse bem demorou a chegar! / Eu já nem sei se terei no olhar / Toda a ternura que eu quero lhe dar”. No verso “Ai, como esse bem demorou a chegar!”, esse ‘ai’ vem carregado de uma dor insuportável. Não há quem não sinta isso. “Zum-zum” (Fernando Lobo / Paulo Soledade) é uma das canções que mais sucesso fizeram no carnaval de 1951: “Oi zum, zum, zum, zum / zum, zum, zum / Tá faltando um / Bateu asas foi embora / Não apareceu / Nós vamos sair sem ele / Foi a ordem que ele deu (...)”.  Trata-se de uma homenagem ao comandante da Panair Carlos Eduardo de Oliveira, falecido em um acidente de avião. Em 2010, a extraordinária Ithamara Koorax, afilhada artística de Elizeth Cardoso, trouxe de volta essa obra-prima do repertório de Dalva. “Estrela do mar” (Marino Pinto / Paulo Soledade) é uma das canções de que mais gosto do repertório de nosso “rouxinol”: “Um pequenino grão de areia / Que era um pobre sonhador / Olhando o céu viu uma estrela / Imaginou coisas de amor (...)”. Não há quem escute essa canção e não se lembre imediatamente do nome de quem a consagrou. Um dos grandes méritos de Dalva é, sem dúvidas, entender o sentido básico das canções. Isso é ser intérprete. É coautoria e pronto! Dalva é eterna.


ELA SEMPRE FOI MULTIMÍDIA



Marlene é uma das mais amadas cantoras brasileiras. Seu fã-clube tem uma força descomunal. A diva está cantando até hoje. Que força! Que dignidade! Na época da tão decantada “rivalidade” com Emilinha Borba, a “Favorita da Marinha”, Marlene, a “Favorita da Aeronáutica”, já se mostrava petulante. Entre as duas, sempre gostei mais de Marlene. E não cheguei a alcançar o auge dessas cantoras, claro. Soube delas bem depois. Entre as duas, Emilinha sempre me pareceu uma boa menina, que, certamente, vai (foi) para o céu; Marlene, por sua vez, nunca teve cara de “boa menina” e, como tal, vai (sempre foi) à luta e sempre brigou pela transgressão. Nunca lhe caiu bem o rótulo de “queridinha”, tanto que rompeu com o moralismo conservador da época do rádio. Impôs outros padrões: de repertório e imagem, por exemplo. Marlene tem mais personalidade. Canta mais. A versatilidade sempre foi uma de suas marcas. Multimídia a toda prova, atuou no cinema, no teatro e fez radioteatro, como o “Marlene, meu bem”. A voz pequena (sempre fizeram questão de frisar que sua voz é “pequena”, como ela mesma diz) tem um carisma incomparável. O que grava fica sendo seu: é “da Marlene”. Participou da Ópera do malandro e fez um trabalho sensacional. Adoro ouvi-la cantando Viver do amor, de Chico Buarque, minha preferida em sua voz: “Pra se viver do amor / Há que esquecer o amor / Há que se amar / Sem amar / Sem prazer / E com despertador / - Como um funcionário (...)”. Linda a gravação! Nos versos “Ai, o amor / Jamais foi um sonho” e “Que o amor não é um ócio”, a voz está extremamente melodiosa. Observe com atenção redobrada: quando ela canta a palavra “ócio”, principalmente, dá vontade de voltar, de repetir a faixa várias vezes. Emocionante. O arranhar dos “erres” também é outro momento de puro prazer. Confira! E ela é chique à beça! A convite de Edith Piaf, o maior patrimônio da França, cantou no Olympia de Paris. Foi a primeira cantora brasileira, se não me engano, a se apresentar por lá. Luxo para poucos. Dedicou boa parte de seu repertório ao carnaval e reinou durante muitos anos. Acaso alguém pode esquecer Lata d’água, Apito no samba, Zé Marmita e tantas outras? Ela também foi crooner do Copacabana Palace até ir “para” a Rádio Nacional. Outra transgressão. Está na vida de todos nós. Marlene é um patrimônio da Música Popular Brasileira.