quarta-feira, 4 de maio de 2011

HILDA HILST



Foi Rogério Rosa, meu "amigo-cidadão-do-mundo", quem me mostrou a grandeza de Hilda Hilst. Meu "muito obrigado" segue assim, Roger:


"Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio"

VI

Três luas, Dionísio, não te vejo.
Três luas percorro a Casa, a minha,
E entre o pátio e a figueira
Converso e passeio com meus cães

E fingindo altivez digo à minha estrela
Essa que é inteira prata, dez mil sóis
Sírius pressaga

Que Ariana pode estar sozinha
Sem Dionísio, sem riqueza ou fama
Porque há dentro dela um sol maior:

Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada, mais luzente e alta

Quanto tu, Dionísio, não estás.

Voz: Ná Ozzetti

"O poeta inventa viagem, retorno, e sofre de saudade"

VI

Como quem semeia, rigoroso, os cardos
Sobre a areia, sem ver a mulher à beira-mar
Tu, meu amigo, tens os olhos fixos
De límpida vigília, e nem me vês passar.
E ficarás assim, para sempre
Como se as águas estanques de uma tarde
Jamais sonhassem a aventura do mar.
E ficarás assim, para sempre
Como se o oceano se obrigasse
A contornar apenas uma certa ilha

E eu

Faminta me desobrigasse
Da minha própria água primitiva.

Como quem semeia, rigoroso, os cardos
Sobre a areia, hei de ficar exata e coerente
Construindo o meu verso, até que a morte
Me descubra um dia, provavelmente

Como quem passeia.


"Prelúdios - intensos para os desmemoriados do amor"

III

Contente. Contente do instante
Da ressurreição, das insônias heróicas
Contente da assombrada canção
Que no meu peito agora se entrelaça.
Sabes? O fogo iluminou a casa.
E sobre a claridade do capim
Um expandir-se de asa, um trinado

Uma garganta aguda, vitoriosa.

Desde sempre em mim. Desde
Sempre estiveste. Nas arcadas do tempo
Nas ermas biografias, neste adro solar
No meu mudo momento

Desde sempre, amor, redescoberto em mim.

"Poemas aos homens do nosso tempo"

VI

Tudo vive em mim. Tudo se entranha
Na minha tumultuada vida. E por isso
Não te enganas, homem, meu irmão,
Quando dizes na noite, que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam
Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,
O olhar aguado, todos eles em mim,
Porque o poeta é irmão do escondido das gentes
Descobre além da aparência, é antes de tudo
LIVRE, e por isso conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto, não fala do palanque,
Não está no comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe que o ouro é sangue
Tem os olhos no espírito do homem
No possível infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E porque é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta
O homem está vivo.

X

Amada vida:
Que essa garra de ferro
Imensa
Que apunhala a palavra
Se afaste
Da boca dos poetas.
PÁSSARO-PALAVRA
LIVRE
VOLÚPIA DE SER ASA
NA MINHA BOCA.

Que essa garra de ferro
Imensa
Que me dilacera

Desapareça
Do ensolarado roteiro
Do poeta.
PÁSSARO-PALAVRA
LIVRE
VOLÚPIA DE SER ASA
NA MINHA BOCA.

XVI

Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo

Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
"Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas".
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto

Não cabe no meu canto.

HILST, Hilda. Júbilo, memória, noviciado da paixão. Organização Alcir Pécora. São Paulo: Globo, 2001


"(...) as palavras também adquiriram surpreendentes significados, por exemplo velhice era coisa de longe, de vazio, aderência de outro não de mim, bochechas magras, franzimentos, um acorpar-se de névoa e de suspiros, velhice hoje é perto e adequada a mim, estou aqui trançado, (...)"

HILST, Hilda. Ficções. São Paulo: Quíron, 1977.

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