quarta-feira, 4 de maio de 2011

CLARIDADE




Desenrolando o fio da lembrança, volto a 1968/69, quando, em programas de auditório da antiga TV TUPI de São Paulo, vi Clara Nunes cantando Você passa eu acho graça, de Carlos Imperial e Ataulfo Alves: “Quis você pra meu amor / E você não entendeu / Quis fazer você a flor / De um jardim somente meu / Quis lhe dar toda a ternura / Que havia dentro em mim / Você foi a criatura que me fez tão triste assim (...)”. Menino ainda (criança mesmo!), fiquei encantado com a voz e a figura da Clara: que linda, meu Deus! E que voz melodiosa! Tão melodiosa que comoveu a criança que fui e que ainda arrasto comigo pelos cabelos. Não largo essa criança por nada neste mundo! Quando Clara surgiu, mulher não vendia discos. Pois a mineira guerreira transgrediu: foi a primeira cantora a vender muito e cantando muito bem. Detalhe importantíssimo: naquele tempo, o que era bom também vendia muito. Hoje, porém, no entanto, todavia, contudo, entretanto... Quando ouço (e sempre ouço) Clara cantando Basta um dia [“Pra mim, basta um dia / Não mais que um dia / Um meio dia / Me dá / Só um dia / E eu faço desatar / A minha fantasia (...)]”, de Chico Buarque, da peça Gota D’água, do próprio Buarque e de Paulo Pontes, tenho vontade de rezar. Rezar por tudo, principalmente para a Clara, que me fez, e me faz, tão feliz. Que ajudou a moldar meu gosto musical. Que me mostrou os sambas mais lindos que já ouvi. Que me deixava com os olhos grudados na TV quando ela aparecia, toda de branco. Era uma figura divina. Não podia mesmo ficar neste mundinho tacanha. Meu amor por Clara Nunes é imenso e antigo, tanto que meu primeiro disco de uma cantora foi o que ela gravou em 1973. Eu era uma criança, mas ouvia esse disco com tanta avidez, que acabei decorando as letras, e a ordem, de todas as faixas. É doce morrer no mar, por exemplo, de mestre Caymmi, está nesse disco: “É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar (...). Uma gravação ímpar. Dentro do disco, há um encarte com a reprodução da capa e da contracapa, mas sem as letras das canções. Que pena! Fiquei frustrado. Queria ler, e entender, as letras. Tudo bem. Isso não me impediu de decorar tudo. Tenho esse vinil, que está conservadíssimo, até hoje. Guardo-o como um troféu. É uma relíquia mesmo. Em 2005, quando a ODEON lançou uma caixa com toda a obra da Clara, tive uma surpresa: na versão em CD, esse de 73 trouxe uma capa um pouco diferente: a foto era a mesma, mas havia um nome de “batismo” para o disco: “Brasília”. O que tenho chama-se somente “Clara Nunes” e, colado sobre a capa, há um adesivo com o nome “Clara Nunes” em letras brancas. Caprichosamente, com letra redondinha e caneta azul, assinei ao lado desse adesivo. Era preciso evitar que, por algum engano, alguém pudesse tomá-lo de mim. A assinatura atestou a propriedade. O tempo não apagou minha assinatura. Minha letra de criança continua lá, redondinha e caprichada. O tempo não vai apagar isso nunca. Nessa mesma capa, embaixo, no ângulo inferior direito, lê-se: “Com carinho do Luiz Jasmim”, o ilustrador. Suponho que, para o CD que faz parte da caixa, lançaram mão de uma edição do LP lançada no exterior. Pois é, talvez não tenham encontrado uma relíquia igual à minha. Cheguei a ver Clara em vários programas infantis da década de 70. Bons tempos (bons, não, maravilhosos!) em que os programas ditos infantis apresentavam, entre suas atrações musicais, uma cantora do porte de Clara Nunes. Hoje, a grande maioria dos tais “programas infantis” não fazem nada além de “imbecilizar” as crianças. Forte, não?! Mas é isso mesmo: imbecilização é a norma. E os apresentadores (apresentadoras, em sua maioria) têm repertório de pouco mais de cinquenta palavras. Tristes tempos.

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