domingo, 18 de janeiro de 2015

FEBRE



SAMBA DO BLACKBERRY
Rafael Rocha – Alberto Continentino

De manhã
Quando ainda penso em acordar
Ela já está a dedilhar
Mexendo feliz no seu novo “brinquedo”

Eu não vou nem me comparar
Não tenho como disputar
Pois não mando e-mail, só mando “desejo”

Essa é minha situação
Eu quero sua atenção
Eu já fiz, imagino, até onde eu “podia”

Eu penso até em desistir
O que eu posso fazer é ir
Não possuo tamanha “tecnologia”

Ela me trocara por um blackberry
Ela me trocara por um blackberry
Ela me trocara por um blackberry

Blackberry, blackberry, blackberry

CD “Atento aos sinais”, Ney Matogrosso, Som Livre, 3246-2, 2013.


                      "O celular é um veículo excelente para o exibicionismo."
                                Braulio Tavares (A Gazeta, Vitória, 24 de janeiro de 2015, "errei na mosca!")


                      "É que Narciso acha feio o que não é espelho"
               (Sampa, Caetano Veloso)

FEBRE
Por Fábio Brito
No “Facebook”, dias atrás, eu conversava com um amigo sobre “ene” assuntos. Um deles era o “zap zap”. De repente, ele me diz que, na escola em que trabalha, há professor que interrompe a aula para conferir mensagem do “zap zap”. “Num quirdito”, eu lhe disse! No instante em que ele me contou isso, nasceu a ideia deste texto. Pois é, ele havia acabado de contribuir para o início de um texto sobre o tal “zap zap” e a febre que está endoidecendo muita gente por aí.
Outro amigo contou-me o seguinte: ele trabalha em uma repartição pública, aonde as pessoas vão à procura de algum serviço. Ou seja, querem ser atendidas. Acompanhe meu raciocínio: precisam de alguém que lhes preste algum serviço. Pois bem, quando chegam lá, esse meu amigo, o funcionário, tem de ficar pedindo às pessoas (às criaturas) que prestem atenção no que ele está dizendo ou perguntando, exatamente porque elas não deixam o “zz” um segundo sequer. Nem no momento do atendimento! (muitas, inclusive, não veem quando sua senha é chamada... e ainda reclamam quando são comunicadas de que terão de pegar outra). Não é engraçado? A criatura precisa de um serviço... e a pessoa que o prestará tem de ficar implorando atenção! Maluquice, gente! Maluquice das grandes. Ah, e não basta usar avisos de advertência, como: “Por favor, desliguem o celular no momento do atendimento”. Bobagem! Ninguém lê os tais avisos... o povo anda tão fissurado, que só enxerga o aparelhinho na palma da mão. O “aparelhinho dos infernos”, como sempre digo.   
Eu já disse noutros textos (é... minha birra com o celular e seus “parentes” já foi matéria-prima de diversos textos) que a maioria das pessoas já não está mais deslumbrada com a tecnologia. O deslumbre – que corresponde à fase do encantamento - foi só a primeira etapa. Se ficassem só no deslumbre, tudo bem. O problema é exatamente quando saem desse período e adentram o caminho da loucura, que parece ser sem volta. A solução, como eu já disse a algumas pessoas extremamente viciadas, é a internação em alguma clínica para recuperar drogados virtuais. Quando usada sem controle, tecnologia transforma-se numa droga poderosíssima. Pior que maconha, cocaína e afins. Quer provas? Ao voltar, dia desses, de um laboratório, às seis e quinze e em pleno horário de verão (ou seja, às cinco e quinze!), eis que encontro duas criaturas com os olhos fixos na telinha. Às seis e quinze da manhã?! Tive o trabalho de conferir as horas. Será que dormiram?, perguntei a meus botões. Não devem ter dormido! Devem ter ficado, durante a noite, conferindo mensagens. É ou não é loucura?
Vamos a mais um exemplo? Um amigo de uma cidade próxima anda com três celulares. Num hotel em que ficamos hospedados recentemente, pude conferir e fotografar essa aberração. São três celulares que ele carrega! Fiz-lhe, algumas vezes, esta fatídica pergunta: “ – Por que três celulares, fulano?” A resposta é sempre a mesma: “ – Não uso os três. Ando com eles apenas por causa das agendas. Estou tentando concentrar as três em um dos aparelhos, mas está difícil.” Nossa, que agendas imensas, pensei. Já faz um tempão que ele vem tentando fazer essa transferência de agendas. Claro que, com vergonha de assumir o vício, ele veio com essa história das agendas. Não colou! Assumir o vício, como dizem, é o primeiro passo para a cura. Meu amigo, coitado, parece que vai levar um bom tempo ainda para ‘se’ desintoxicar, se é que ele quer ficar livre do vício. Como estará, por exemplo, a leitura desse meu amigo? Ih! Nem ouso perguntar. Claro que não tem sobrado tempo para ler, para ouvir música... Com três celulares ocupando todo o tempo, é impossível.  
Será que a raiz do vício não estaria na solidão? Será que essa necessidade de “conversar” com alguém o tempo todo não teria suas raízes na bendita e antiga solidão? Pode até parecer filosofia chinfrim, barata, mas é nessa explicação que muitos pensam. Além de desconfiar da solidão como sendo a raiz do vício “tecnológico”, desconfio também do seguinte: somente agora, muitas pessoas descobriram a escrita. Não é fantástico?! Oh! Por isso, o fascínio em relação à telinha que mostra um desfile de letras e palavras que, até então, elas não conheciam. Pois é, ironias à parte, será que a turma do “zz” está escrevendo melhor? Deveria! Não fica o tempo todo digitando? Entretanto, não é bem assim “que a bandinha toca”. Já vi pessoas que “vivem no zap zap”, mas que, noutras situações de comunicação, simplesmente não se comunicam. Se têm de escrever um texto, mesmo que mínimo, tropeçam nas próprias pernas e conseguem a proeza de produzir um “não texto”. Volto a perguntar: - Estão escrevendo melhor? É... estou tendo uma ligeira desconficança: essa geração "zz" deve sofrer de "acatalepsia", que, segundo o Dicionário Houaiss (edição da Objetiva de 2009), significa, entre outras acepções, "deficiência (...) caracterizada pela incapacidade de compreender".  Muitos não compreendem nada, principalmente os textos escritos. E não estou fazendo referências a textos longos e difíceis, mas a pequenos 'escritos', com vocabulário simples. É ou não é um cenário assustador? 
Pensando noutros desdobramentos do tal vício “tecnológico”, como deve estar, na era “zz”, a vida nas empresas, hein?! Deve sair uma ordem de serviço atrás da outra proibindo o uso de celular e afins durante o expediente. Caso contrário, ninguém trabalha. Não faz muito tempo, li matéria jornalística sobre o aumento do número de demissões em virtude do uso inadequado do celular (desculpe-me do pleonasmo “uso inadequado de celular”). É óbvio que as demissões são inevitáveis! Porque é vício, as pessoas não se controlam. Já perdi a conta do número de vezes em que tive de pedir a alunos que desligassem o celular em sala de aula. Ninguém pode viver conectado durante as vinte e quatro horas em que dura um dia. E o pior é que há pessoas que ficam.
Bom, em sendo assim, sempre que alguém me pergunta se tenho “zap zap”, minha vontade primeira é fingir que não ouvi. Aos poucos, fico calmo, respiro fundo e digo que, graças a Deus, não. Não o tenho e nem o terei, porque tenho mais o que fazer na vida. Pronto! Tenho poucas certezas na vida. A de que não quero “esse troço” é uma delas. E não o quero por diversos motivos, entre os quais o barulhinho insuportável informando que há mensagens. Lembrei-me, agora, de uma declaração da cantora Nana Caymmi que, no documentário “Rio Sonata”, diz que ela não é das tecnologias. E tecnologia, não raro, está atrelada a barulho. Para ela, o silêncio é imprescindível: ela não “funciona” com barulho. Sou do mesmo time. Esse mundo das tecnologias é barulhento ao extremo. O barulhinho a que me referi, o do "zz", é algo verdadeiramente irritante. Não o suporto! Por que não põem o aparelho no modo silencioso? Porque ninguém vai saber, ‘né’? Ninguém vai ver que a criatura está no “zz”. Ai, ai, ai...   
Um argumento que já usaram para tentar ‘me’ convencer é o de que, por meio do “zap zap”, as pessoas podem discutir sobre diversos assuntos. Ah, é? Ok. Querem discutir algum assunto comigo? Vamos marcar um encontro. Que tal em minha casa? Adoro receber amigos! Com um bom vinho, um papo agradável, uma boa música e pessoas inteligentes, nem vejo o tempo passar. Atravesso a madrugada. Fico horas e horas numa boa conversa. É assim que gosto de conversar. Ah, e tenho lá minhas dúvidas acerca da consistência das conversas que rolam pelo “zz”. São assuntos interessantes mesmo? Mostrem-me!   
Nesse inferno tecnológico em que vivemos, tenho procurado manter o controle, sabia? De uns tempos “pra” cá, já estou olhando com antipatia para todas as pessoas que têm um aparelhinho na mão. Às vezes, fuzilo-as com o olhar. É raiva mesmo!, o que não é bom para a saúde. Enquanto não realizo meu sonho de consumo e fujo para o mato, ficando livre, enfim, da loucura da cidade e de seus nem sempre felizes avanços tecnológicos, tenho de manter a calma. Tenho de manter “a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”¹, como ensinou Walter Franco.
Enquanto minha fase “eremita” não chega, vou deixando minhas alfinetadas pelo caminho dos que insistem em certas idiotices tecnológicas: as pessoas mais inteligentes e interessantes que conheço não têm “zap zap”. Muitas não têm nem celular. Se eu não estiver enganado, Caetano Veloso também já declarou que não tem esse aparelhinho inconveniente. Tenho uma amiga que não usa a NET (não tem nem “e-mail”) e tenho outro amigo que, dias atrás, confessou-me que só tem telefone fixo. Se, porventura, alguém quiser encontrá-lo, terá de ser por meio do telefone fixo, que tem secretária eletrônica. Achei o máximo. Eles, saudáveis, estão bem longe das pessoas que estão ardendo de tanta febre. A febre do “zap zap”.
¹ FRANCO, Walter. Coração tranquilo.

INCOMUNICABILIDADE
Ruy Castro

No cinema dos anos 50/60, era assim: Jeanne Moreau, em “Ascensor para o Cadafalso", "Os Amantes" e "A Noite"; Monica Vitti, em "A Aventura" e "O Eclipse"; Anna Karina, em "Uma Mulher É uma Mulher" e "Viver a Vida"; Anouk Aimeé, em "Lola"; Audrey Hepburn, em "Bonequinha de Luxo"; e até a nossa Leila Diniz, em "Todas as Mulheres do Mundo", todas tinham de ser boas de pernas -literalmente.
Os diretores desses filmes as faziam caminhar quilômetros pelas ruas, sozinhas, em silêncio, cenho franzido, como se buscassem uma comunicação impossível com seus pares, os quais também deviam estar zanzando feito zumbis pela cidade. Era a famosa incomunicabilidade -uma doença do progresso, da industrialização, do amesquinhamento dos valores. Quanto mais próximas, menos as pessoas tinham o que dizer. Os casais viviam "em cheque" ou "em situação", como se dizia.
Seja o que for que atormentasse aqueles personagens, só podia ser discutido a dois, ao vivo, entre longas pausas. Não se concebia que, em "A Noite", de Antonioni, Moreau entrasse num telefone público, metesse uma ficha e derramasse seus problemas existenciais para Marcello Mastroianni. As pessoas tinham de viver o seu inferno até o fim, em preto e branco, sem esperança de redenção.
Hoje, com todo esse arsenal de meios - celulares, smartphones, Androides, Twitters, Facebooks, Instagrams, SMSs e outros que nem imagino -, não se toca mais em incomunicabilidade. A própria palavra perdeu o sentido.
Mas, pelo que vejo de homens e mulheres de expressão carregada, digitando incansavelmente, na rua, na fila do banco, nas salas de espera, nos saguões e até nos restaurantes - o que essas pessoas tanto falam umas com as outras? -, desconfio que a busca da comunicação seja a mesma. A fartura de meios não eliminou a solidão.
CASTRO, Ruy. Morrer de prazer: crônicas da vida por um fio. Rio de Janeiro, Foz, 2013.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/12556-incomunicabilidade.shtml



VIDA VIRTUAL
Ruy Castro

Pesquisa divulgada há pouco revelou que, no mês de julho, o internauta brasileiro passou 23 horas e 30 minutos navegando na internet. Essa marca é uma hora e três minutos maior que a de junho, que, por sua vez, era quase uma hora maior que a de maio, e assim por diante. Ou seja, de 30 em 30 dias, o brasileiro fica mais tempo ligado à rede.
Significa também que, a cada 30 dias, o brasileiro já está passando quase um dia inteiro com os olhos na telinha, os dedos no mouse ou no teclado, as pernas criando varizes, a coluna indo para o beleléu e o cérebro mais na virtual que na real.
Apenas por comparação, as 23 horas e 30 minutos mensais do brasileiro deixam longe as 19 horas e 52 minutos do americano, as 18 horas e 41 minutos do japonês e as 18 horas e sete minutos do alemão. Das duas, uma: ou os americanos, japoneses e alemães têm mais o que fazer, ou nossa apaixonada adesão à internet fará com que, em pouco tempo, os superemos em tecnologia, pesquisa, jornalismo, download e compras, que compõem a internet para adultos. E aí, sim, vamos ver quem tem mais garrafa vazia para vender.
Enquanto esse dia não chega, já podemos pelo menos observar algumas conquistas da internet entre nós. Segundo outra pesquisa, por causa da internet o jovem brasileiro tem deixado de praticar esportes, dormir, ler livros, sair com os amigos, ir ao cinema ou ao teatro e estudar. E, com certeza, está deixando também de praticar outros itens não contemplados pela pesquisa, como namorar, ir à praia ou ao futebol, visitar a avó, conversar fiado ao telefone e flanar pelas ruas chutando tampinhas.
Admito que muitas dessas atividades possam ser substituídas com vantagem pelas horas que o brasileiro passa na internet. Mas flanar chutando tampinhas, não.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0509200705.htm (São Paulo, quarta-feira, 05 de setembro de 2007)


EVAPORAÇÃO

O celular é um instrumento poderoso... os modelos que possibilitam acesso à internet e à fotografia, fabulosa perversa construção, (existem ainda os sem essa chance?) determinam o fim da atenção ao cotidiano...
todo mundo - rico ou pobre - está conectado a si mesmo, na distração do outro (entandam outros) que desaparece... o outro virou contato... isolamento triste e silencioso... divulgar a todos o que se está fazendo a qualquer hora do dia... os detalhes...
registrar os momentos e compartilhar a felicidade momentânea (ou a infelicidade de qualquer outra pessoa) é o que determina a consolidação de uma massificação dos momentos... humano, esse demasiado, esgota (como faz com tudo o que vê pela frente) qualquer chance de diálogo ou de percepção da realidade...
quem vai se preocupar se é uma criança que serve a mesa em praias paradisíacas da bahia? o olhar dispara o gatilho da foto em direção ao prazer da beleza... aí, joga-se tudo nas redes sociais e cria-se a expectativa das curtidas... de modo que o pensar limita-se em o que se pode fazer para ganhar maior visibilidade...
internet e celular com câmera fotográfica, com pau de selfie falicamente imposto frente ao rosto, parecem gerar delírios maliciosos... adicionados ao refluxo da cultura da celebridade que adentrou o século 21, transformaram humano, esse demasiado, no centro das atenções dele mesmo...
não há espaço suficiente na memória para pensar o mundo... vivencia-se o momento sem o prazer do momento, porque há uma velocidade maior que a do prazer, uma velocidade instituída pela necessidade de satisfação no que se pode (ou não, mas se mostra assim mesmo) mostrar a todos...
toda e qualquer discussão em torno do coletivo pessoas ganhou, nos últimos anos, um adversário imbatível: o eu mesmo... as comoções ou ações nas redes sociais propagam ódios unilaterais por não haver tempo para a reflexão... com o celular nas mãos, as pessoas curtem sem ler.. a ideia é fazer parte do grande circo...
o que escrevo é sempre uma olhadela que dou na vida que se movimenta ao meu redor... essa vida tão desumanizada... as pessoas andando pelas ruas falando ao celular com fone de ouvido ou casais sentados em bares a manipular cada qual seu interior virtual... toda essa cena de zumbis...
o custo desse comportamento, embora já apareça, ficará para pensadores do futuro analisarem... mesmo assim, não é difícil arriscar que há uma tendência forte para que a intolerância construa guerras diárias do eu contra tudo o que se coloca na frente da vontade de falar com todo mundo, logo, com ninguém e de aparecer na foto...
é a configuração do absurdo... a mecanização da comunicação... porque com divulgação de todos os momentos para tantas pessoas, pode-se avançar por sobre a modernidade líquida e pensar em uma sociedade que se dissolve das particularidades... e se dissolve...
a ideia de indivíduo compartilhado formula um código diferente... que a geração de jovens absorve sem o deslumbramento dos acima de 30... divulgar-se é o resultado de uma socieade que se alimentou de entretenimento... a maior fonte de informação veiculada e acessada no século 21 está diretamente relacionada à vida das pessoas...
se antes eram os artistas, hoje é o cidadão comum que se coloca como notícia... qualquer fato, por mais imbecil que pareça, ganha aspecto de notícia... e é aí que acredito haver uma movimentação avançando por sobre a modernidade líquida de que fala bauman...
a ideia da sociedade que, sem solidez, líquida se tornou, gera um componente novo que está amarrado ao que se desenrola dentro do indivíduo... naquele papo que já levamos aqui de que freud errou na mosca e já mostrava que a particularidade do indivíduo não o possibilita comprometer-se com a ideia de sociedade... pois é... agora o líquido evapora-se...
de modo que há uma nova relação eu-mundo... o mundo figura como cenário de fundo para os inúmeros eus... o celular e sua indumentária comandam o cotidiano... não fossem os inúmeros carros que afrontam a movimentação coletiva... seria a cidade de um silêncio ensurdecedor a digitar e a falar particularmente... não há pássaros... só há o silenciosos mundo da evaporação humana...

MANGA, Lúcio.
Fonte: A Gazeta (caderno Pensar), Vitória, 24 de janeiro de 2015.


MÁ EDUCAÇÃO E CELULAR
Walcyr Carrasco

Uma conhecida convidou os quatro netos pré-adolescentes para lanchar. Queria passar um tempo com eles, como fazem as avós. Sentaram-se numa lanchonete. Pediram sanduíches e refrigerantes. Daí, os quatro sacaram os celulares. Ficaram todo o tempo trocando mensagens com amigos, rindo e se divertindo. Com cara de mamão murcho, a avó esperou alguma oportunidade de bater papo. Não houve. Agora, ela já prometeu:

– Desisti. Não saio mais com meus netos.

Cada vez mais as pessoas “abandonam” os outros para viver num mundo de relações via celular. Às vezes de maneira assustadora. Vou muito para o Rio de Janeiro, sem carro. No meu trajeto, costumo escolher a Avenida Niemeyer, cuja vista é linda. Mas é cheia de curvas. Durante o trajeto, preciso me acalmar e recitar o mantra “om... ommmm” quando os motoristas atendem seus celulares. Dá medo, com o abismo pela frente! A falta de educação é dos dois lados. Quem liga, se não é atendido, continua tocando sem parar. O motorista muitas vezes atende e diz que não dá para falar. A pessoa do outro lado nem liga e continua o assunto. Alguns atores que eu conheço estão detonando suas carreiras. Ficam no WhatsApp até o momento de gravar. Atuar exige concentração, “entrar” no personagem. Se a pessoa “conversa” por mensagens até o momento exato de interpretar, fará pior. Está com a cabeça em outro lugar.

A praga atingiu até o setor de serviços. Dia destes estava no caixa de uma livraria. A mocinha passava meus livros e revistas com displicência enquanto falava ao celular. De repente, se confundiu. Teve de passar tudo de novo. Desligou. Voltou ao trabalho, mas aí o celular tocou e... a fila atrás de mim só aumentava. O máximo que ouvi da parte dela foi:

– Desculpa.

Tocou de novo, atendeu, tentando colocar meus livros numa sacolinha com uma única mão.

Em certos almoços, mesmo de negócios, é impossível tratar do assunto que importa. O interlocutor escolhe o prato com a orelha no celular. Quando desliga, abre para verificar e-mails. Responde. Pacientemente espero. Iniciamos o papo que motivou o almoço. O celular toca novamente. Dá vontade de levantar da mesa e ir embora. Não posso, seria falta de educação. Mas não é pior ficar como espectador enquanto a pessoa resolve suas coisas pelo celular, sem dar continuidade na conversa?

Também adoro um celular. Tenho amigos no exterior e trocamos mensagens diariamente. Mas faço isso quando estou sozinho. Há também soluções rápidas, pessoais e profissionais onde ele ajuda e muito! Mas hummm.... do ponto de vista profissional, nem sei se é tão bom assim. Celular não tem hora. Invade sem pedir permissão. É uma decisão difícil não atender o telefonema de um chefe ou de alguém importante no trabalho. Ou seja, a gente trabalha 24 horas direto! Há também quem chame durante uma reunião de trabalho importante. E, como contei no caso do carro, continuam chamando mesmo sem ser atendidas, até tornar o papo profissional impossível. Finalmente, ouço.

– Dá licença, vou atender e encerrar logo esse assunto.

Faço cara de paisagem enquanto a pessoa discute algo que nada tem a ver comigo. Penso: seria melhor, muito melhor, não ter marcado reunião nenhuma. Mais fácil seria, sim, me impor através do celular, porque através dele entro na sala de alguém quando quero, sem marcar hora. O aparelhinho invade até situações íntimas. Se fosse só comigo, estaria traumatizado por me sentir pouco interessante. Mas sei de casos onde, entre um beijo e outro, um dos parceiros atende o celular. Para tudo, sai do clima. Quando termina a ligação, é preciso de um tempo para retomar. Mas aí, pode tocar novamente e... enfim, até nos momentos mais eróticos, o aparelhinho atrapalha.

Ainda sou daquele tempo de ter conversas francas e profundas, de olhar nos olhos. Hoje é quase impossível aprofundar-se nos olhos de alguém. Estão fixados na tela de seu modelo de última geração. Conheço algumas raras pessoas que se recusam (ainda!) a ter celular. Cada vez mais, se rendem. A vida ficou impossível sem ele. Eu descobri uma estratégia que sempre funciona, se quero realmente falar com alguém. Convido para jantar, por exemplo. Ela saca o celular. Pego o meu e envio uma mensagem para ela mesma, em frente a mim. Não falha. Seja quem for, acha divertidíssimo. E assim continuamos até o cafezinho. Sem palavras, mas trocando incríveis mensagens pelo celular. Todo mundo acha divertidíssimo.

Fontes:
26 de janeiro de 2015|ÉPOCA|91

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

LANÇANDO MUNDOS NO MUNDO




LIVROS
Caetano Veloso
Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo

Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura

Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los de amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lança-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou – o que é muito pior – por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:
Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras

Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas
 (VELOSO, Caetano. Letra só. Organização: Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.) 

LANÇANDO MUNDOS NO MUNDO

Por Fábio Brito

Para Ériton Cozendey Regino de Amarins

Não faz muito tempo, resolvi presentear alguns alunos que muito admiro com livros. Não vejo presente melhor. Um deles, pouco tempo depois, enviou-me este ‘torpedo’: “Tenho 32 anos, professor, e adoro (amo) ler. E sempre pensei comigo mesmo: ‘Poxa, se eu gosto tanto de ler, e sabem disso, por que nunca me presentearam com um livro? Vá saber! Você foi o primeiro, logo será o inesquecível! Muito obrigado! Mas veja bem: pense no meu ‘muito obrigado’ e na minha gratidão elevados à milésima potência.” Fiquei comovido com a mensagem. Fiquei mais comovido ainda com o "caso de amor" que esse aluno tem com os livros. Não há outra explicação: com os livros, o que temos é um caso de amor. E amor transcendente.
Pois bem, esse caso de amor me fez lembrar outro episódio: há uns dias, no setor infantojuvenil de uma grande livraria (grande porque o espaço físico é imenso!) de nossa capital, eu procurava alguns livros para presentear algumas crianças (que tarefa árdua encontrar bons livros infantojuvenis! Na  tal livraria, havia de tudo: livro-ursinho, livro-cachorrinho, livro-boneca... só não havia livro-livro).  A meu lado, uma garotinha com uns cinco, seis anos também procurava livros. Ou, pelo menos, estava curiosa diante das estantes. Com avidez, ela e eu mexíamos em tudo o que havia nas prateleiras. Para meu espanto, em dado momento, sua mãe, impaciente, disse-lhe o seguinte: “ – Vamos, filha, procurar um presente para você. Aqui só ‘tem’ livros”. Respirei fundo... não havia  nada que eu pudesse fazer naquele momento. Pensei em resmungar algo, mas, prudentemente, fiquei "na minha". Incrível! Levamos uma vida inteira sensibilizando (até catequizando, em alguns casos) alunos para a leitura e, em certo dia, temos de ouvir alguém dizer que “livro não é presente”. Santo Deus, o que direi a todas as pessoas que, até hoje, deram-me livros como presente de aniversário ou de Natal, por exemplo? 
Bom, depois dos episódios envolvendo a garotinha da livraria (e sua "boa" mãe) e o aluno fascinado por livros, pensei no seguinte: de um lado, temos uma pessoa que, extremamente sensível, mostra seu fascínio pelos livros, daí seu agradecimento entusiasmado, o que demonstra sua paixão incondicional; de outro, uma “mãe-perua”, fútil e vazia, que desvia a criança do melhor caminho: o da literatura, que é, citando a escritora Adélia Prado, salvífico, embora essa “boa” mãe não saiba. Deus meu, que mundo paradoxal! Por que é sempre tão difícil fazer as pessoas entenderem que leitura (principalmente a de livros literários) é essencial para tudo na vida, principalmente para que nos tornemos pessoas melhores? A leitura literária é fundamental para que não deixemos morrer nosso lado mais humano, mais delicado, mais gentil, mais nobre, mais requintado  e mais elegante. É fundamental para que continuemos (ou comecemos) a pensar. É... pensar mesmo! Se o homem não quer pensar, ele está negando exatamente o que o distingue dos outros animais! Essa mãe (pobre mãe!) deve achar que a salvação virá por meio das futilidades que o mundo nos oferece a todo o instante. Talvez ela ache que virá da roupa e da bolsa “de marca” que ela certamente ostentava no instante em que a vi. Enfim, essa “boa” mãe deve achar que educa bem os filhos, afinal ela foi a escolhida por um pai para ser “a mãe da prole com que ele tanto sonhou”. Analisando esses dois casos, o da garotinha e sua mãe e o do aluno apaixonado por livros, acredito cada vez mais no fato de que as pessoas que gostam de leitura e de literatura são, no mundo de hoje, ETs. Será que este mundo é meu? Não deve ser. Tenho certeza de que não é... e faz um bom tempo.
Lembrei-me, então, do poder encantatório que, para mim, os livros sempre tiveram. Ainda bem pequeno, com seis anos, antes mesmo de ser alfabetizado (noutras épocas, alfabetizava-se mais tarde), fui “ouvinte”, como se dizia, de uma escola que, durante um tempo, funcionou num espaço que ficava nos fundos de minha casa (porque o prédio da única escola que havia no bairro estava ameaçado de desabamento, meus pais cederam esse espaço de nossa casa para o funcionamento temporário da escola, que eu adorava).  Assistindo às aulas (oficialmente, eu não era aluno) nessa escolinha, como a chamávamos, ganhei da professora Nívea, talvez por causa de meu evidente interesse pelas aulas, meu primeiro livro: “Bebé, o carneirinho chorão”. Mesmo sem saber “decodificar os signos” (eu já sabia “ler”!), fui entendendo a história do tal carneirinho que não parava de chorar. Ou melhor, fui entendendo “as histórias”: sempre que eu folheava meu presente e, avidamente, olhava as figuras, novas histórias nasciam da cabeça do menino apaixonado por literatura.
Mais tarde, num didático de “Comunicação e Expressão”, já na terceira série, eis que deparo com “Leilão de jardim”, da Cecília Meireles. Foi paixão à primeira “lida”. Perdi a conta do número de vezes em que li o poema. Daí em diante, sempre foi assim: não só romances me prendiam (“Caçadas de Pedrinho”, do eterno Monteiro Lobato, foi uma das primeiras paixões), mas também o que havia de literatura nos didáticos, sempre folheados para eu catar o que havia de literário ali, antes mesmo de eu (ou minha mãe) encapá-los. E fui crescendo junto com a paixão pelos livros. Entre a 5ª e a 8ª série, por exemplo, lemos muito na escola. Era uma época em que a “Coleção Vagalume” reinou absoluta. E o melhor de tudo era que fazíamos, sim, provas sobre as obras que líamos, mas havia um trabalho de sensibilização para a leitura e para a literatura. Não cumpríamos apenas uma tarefa escolar. O fato de haver uma prova sobre as obras era, para mim, o que menos importava. A “viagem” era o mais importante. Ser “transportado” para o mundo das histórias que eu lia era o melhor de tudo. Lembro-me, por exemplo, de vibrar com a leitura de “A ilha perdida”: eu não queria parar de ler aquela história. Lembrando a narradora de “Felicidade Clandestina”, um dos mais famosos contos da Clarice Lispector, eu retardava, sim, a leitura, só para não chegar ao fim. Eu tinha pena de que aquele prazer acabasse. E o vazio que viria depois? Um detalhe curioso é que, ao fim da leitura de todos os livros, eu anotava num pedacinho de papel (de pão, geralmente) o dia e a hora exata em que eu havia concluído a leitura. Há pouco tempo, folheando alguns desses livros (ainda tenho vários), encontrei meus “bilhetinhos”, que são, hoje, uma preciosidade: a redondinha letra de menino atento e estudioso está ali.
No ensino médio, a paixão pela literatura continuou, embora os professores tenham tido um papel meio apagado no incentivo. Sem problemas! A semente, lançada lá atrás, não havia caído na pedra. Praticamente sozinho, foi à cata de minhas paixões literárias: descobri os poetas, em especial Drummond e Bandeira, e os contistas/romancistas, como Fernando Sabino, por exemplo. Muitos romances vieram a reboque: “Por quem os sinos dobram” e “O morro dos ventos uivantes” ficaram para sempre em mim. Com um lápis na mão (mania que conservo até hoje), eu ia grifando os fragmentos que julgava mais importantes. Depois, datilografava-os e, em uma pasta, deixava-os arquivados. Antes, porém, lia-os para os amigos, o que era uma forma de não deixar que a beleza das obras lidas ficasse somente comigo. Era preciso partilhá-la (a beleza) e partilhá-las (as obras). Se “belezas são coisas acesas por dentro¹”, como dizem Jorge Mautner e Nelson Jacobina na canção "Lágrimas negras", é preciso que as dividamos. Assim, elas continuarão acesas. Hoje, com o “facebook”, por exemplo, podemos dividir belezas e mais belezas, principalmente as literárias. Pena que muitos ainda não tenham descoberto essa possibilidade. O que sabem fazer – e muito! - é fotografar jantares, churrascos e afins e publicar as fotos.  
Bom, voltemos à literatura. Quando cursei minha primeira faculdade, Ciências Contábeis, fui frequentador assíduo da biblioteca, que, diga-se de passagem, era bem “literária”. Havia várias obras da Nélida Piñon, além de Machado e muitos outros clássicos. Também descobri Adélia Prado e Clarice Lispector nessa época (até hoje, essas senhoras me acompanham insistentemente). “Taí” o porquê de eu não sair da biblioteca da faculdade, tanto que, certa vez, a bibliotecária perguntou-me por que eu retirava tantos livros de literatura se eu cursava Contábeis. Respondi-lhe que, daí a um tempo, quando eu estivesse mais preparado e pudesse aproveitar melhor, eu faria Letras. Foi o que fiz. Quando, enfim, pude cursar o “melhor de todos os cursos”, não perdi tempo: tomei uma superdose literária. Com professores também apaixonados pelo que faziam, não foi nada difícil escolher um caminho que, certamente, seria sem volta: o da paixão literária. Hoje, professor de Letras, venho contaminando meus alunos com um vírus poderosíssimo: o vírus literário. Tenho conseguido, graças aos deuses, ótimos resultados. Muitos de meus alunos e ex-alunos ardem em febre intermitente. A febre literária, que não tem cura. 
Pois bem, com uma febre literária de quarenta e tantos graus, o aluno a quem me referi no início deste texto telefonou para mim, pouco antes de apresentar seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso). Ele queria saber se poderia incluir em seu trabalho o poema “Livro: a troca”, da Lygia Bojunga Nunes. Disse-me mais: com bastante entusiasmo, ele afirmou que o poema ‘o’ traduz perfeitamente, que o que ali está dito é exatamente o que ocorre com ele. Foi aí que lembrei o seguinte: a paixão pela literatura nasce, principalmente, da identificação. Ou seja, gostamos porque estamos ali, porque somos retratados nas obras que lemos, pelas quais nos apaixonamos e às quais nos entregamos sem volta. Elas, portanto, são nossas também. É como dizem o Milton Nascimento e o Tunai numa das mais belas letras de nosso cancioneiro: “Certas canções que ouço / cabem tão dentro de mim / que perguntar carece: / como não fui eu que fiz?”² Com a literatura, ocorre o mesmo. O bom é que a pergunta não fica sem resposta: não fui eu que fiz exatamente... porque alguém conseguiu ‘me’ traduzir com perfeição. Eu não faria melhor.
          P.S.: Ériton, meu querido, este texto é para você, que me inspirou a escrevê-lo. Se, algum dia, muitas “coisas” à sua volta perderem a importância e a cor, ou perderem o sentido, não deixe de salvar a literatura. Não deixe que ela morra em você. Guarde-a no melhor lugar de seu peito. Guarde-a, com muito capricho, em sua alma. Até hoje, não apaguei seu torpedo de meu celular. Nem vou apagá-lo. Em minha vida, poucas vezes vi alguém tão apaixonado por literatura como você. Choro no momento em que digo isso, mas choro de felicidade, porque sei que estou deixando 'descendentes'/discípulos. Tenho certeza de que minha paixão pelos livros terá vida longa. Terá muitas outras vidas. Terá infinitas vidas. Obrigado, meu amigo, muito obrigado. D. Ísis, Beatriz e Ana Rita também agradecem. Um beijo imenso.
¹ CD: Gal Costa. “Cantar”, Universal, 73145102222, 2010 (LP 1974).
² CD: Milton Nascimento. “Ãnima”, PolyGram, 813.296-2, 1997 (LP 1982).



O LIVRO E A AMÉRICA
Ao grêmio literário
(...)
Filhos do séc’lo das luzes!
Filhos da Grande nação!
Quando ante Deus vos mostrardes,
Tereis um livro na mão
O livro – esse audaz guerreiro
Que conquista o mundo inteiro
Sem nunca ter Waterloo...
Éolo de pensamentos,
Que abrira a gruta dosventos
Donde a Igualdade voou!...

Por uma fatalidade
Dessas que descem de além,
O séc’ulo que viu Colombo
Viu Gutenberg também.
Quando no tosco estaleiro
Da Alemanha o velho obreiro
A ave da imprensa gerou...
O Genovês salta os mares...
Busca um ninho entre os palmares
E a pátria da imprensa achou...

Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto –
As almas buscam beber...
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n’alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar.
(...)

(ALVES, Castro. Literatura comentada – Castro Alves. 2ª edição. São Paulo, Nova Cultural, 1988.)
“(...) Porque, como se pode viver sem a leitura? Deixar de escrever pode ser a loucura, o caos, o sofrimento; mas deixar de ler é a morte instantânea. Um mundo sem livros é um mundo sem atmosfera, como Marte. Um lugar impossível, inabitável. De maneira que muito antes da escrita vem a leitura, e nós romancistas somos leitores derrubados e transbordados por nossa fome ansiosa de palavras. Há pouco tempo ouvi em Gijón a escritora argentina Graciela Cabal falar em público, numa intervenção engraçadíssima e memorável. Veio dizer (mas ela se expressa melhor do que eu) que um leitor tem uma vida muito mais longa que as outras pessoas, porque não morre antes de acabar o livro que está lendo. Seu próprio pai, explicava Graciela, tinha demorado muitíssimo a falecer, porque o médico vinha visitá-lo e, balançando tristemente a cabeça, afirmava: ‘Dessa noite não passa’; mas o pai lhe respondia: ‘Não, nada disso, não se preocupe. Não posso morrer porque tenho que terminar ‘O outono do patriarca’. E assim que o galeno saía, o pai falava: ‘Tragam um livro mais grosso’.
- Enquanto isso, não paravam de morrer colegas de papai que estavam saudabilíssimos, por exemplo um pobre homem que foi ao médico fazer um check-up e não saiu mais – continuou Graciela.
- É que a morte também é leitora, por isso recomendo ter sempre algum livro na mão, porque assim quando a morte chega e vê o livro, se espicha toda para ver o que você está lendo, como eu faço no ônibus, e então se distrai. (...)”

(MONTERO, Rosa. A louca da casa. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.)

LIVRO: a troca

Pra mim, livro é vida; desde que eu era muito pequena
os livros me deram casa e comida.
Foi assim: eu brincava de construtora, livro era tijolo;
em pé, fazia parede; deitado, fazia degrau de escada;
inclinado, encostava num outro e fazia telhado.
E quando a casinha ficava pronta eu me espremia lá
dentro pra brincar de morar em livro.
De casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto
olhar pras paredes). Primeiro, olhando desenhos; depois,
decifrando palavras.
Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça.
Mas fui pegando intimidade com as palavras. E quanto
mais íntima a gente ficava, menos eu ia me lembrando
de consertar o telhado ou de construir novas casas.
Só por causa de uma razão: o livro agora alimentava
a minha imaginação.
Todo o dia a minha imaginação comia, comia e comia;
e de barriga assim toda cheia, me levava pra morar no
mundo inteiro: iglu, cabana, palácio, arranha-céu,
era só escolher e pronto, o livro me dava.
Foi assim que, devagarinho, me habituei com essa troca
tão gostosa que - no meu jeito de ver as coisas -
é a troca da própria vida; quanto mais eu buscava no
livro, mais ele me dava.
Mas como a gente tem mania de sempre querer mais,
eu cismei um dia de alargar a troca: comecei a fabricar
tijolo pra - em algum lugar - uma criança juntar com
outros, e levantar a casa onde ela vai morar.

NUNES, Lygia Bojunga. Livro: um encontro com Lygia Bojunga Nunes. 2ª edição. Rio de Janeiro: Agir, 1990.