sábado, 19 de maio de 2012

"PALAVRAS AO VENTO"




PERTO DEMAIS DE DEUS
Chico César

Tem gente perto demais de Deus
Tem que não deixa Deus sozinho
E diz Deus ilumine seu caminho
E guarda Deus na cristaleira
Cristo perto dos cristais
Cristo assim perto demais
Cristo já é um de nós
Carne e osso pão e vinho
Tem gente que não deixa Deus em paz
Tem gente incapaz de viver sem Deus
E o trata como um funcionário seu
Deus me livre Deus me guarde Deus me faça a feira
Cristo dentro da carteira
Dez por cento rei dos reis
Cristo um conto de réis
O garçom não à videira
Essa gente é o diabo e faz da vida de Deus um inferno

Fonte: Chico César. Beleza mano. MZA Music/Polygram. 011245-2. 1997.


LAMENTAÇÕES DA RUA UBALDINO

no princípio era o silêncio
na Rua Ubaldino
eis que o número 666
da Igreja Central Irmãos Cenobitas
ergueu cartazes
anunciando sinais e prodígios
não a flauta doce e harpa eólia
para louvar o Senhor
mas a caixa de ressonância
da buzina do Juízo Final
e o amplificador dos agudos desafinados
de Gog e Magog
além da mão esquerda
não saber o que faz a direita
as duas juntas
rompem no batuque iconoclasta do bombo
nunca tal se viu na Rua Ubaldino
de hospital escola gente calada
irmão cenobita ó irmão cenobita
que torturas o sossego
e flagelas os que te são vizinhos
cego e surdo
à perturbação do descanso público
por tuas guitarras e baterias de mil decibéis
serás condenado
bandinha maldita
nunca mais nasça ruído de ti
lançada no fogo eterno
com gritos e ranger de dentes
ai de ti que furtas ao próximo
o bem da quietude
uma grande heresia
se levantou entre nós
pedes num prato a cabeça esfolada viva
do silêncio
ó araponga fanha
da torre cenobita de Babel
sobre teus moucos pastores
caia o sangue do sossego profanado
trazes o alto-falante
onde cantavam o sabiá a corruíra o bem-te-vi
os testemunhos são conformes
é um protesto só
tu adorador da estridência
alarido cacofonia
ocupado em afligires
os que estão em calma
desarmonia o teu nome
porque ninho de muitos demônios
comilões da paz e beberrões do vinho
da poluição sonora
quando entrarão na vara de porcos
e no lago se afogarão?
perversa é essa igreja
e mais barulhenta que todas
ai de ti irmão ai de ti cenobita
importuno e molesto
angustias a alma da rua inteira
não te assentarás na cinza
nem te arrependerás do teu sacrilégio?
sepulcro aberto
empestam os ares as tuas blasfêmias
tua sentença é a execração pública
tu mesmo a pronunciaste
em vez do culto em surdina
propagas o escândalo sobre os telhados
sons malignos que não se podem aturar
de altíssimos que são
o Senhor dos Exércitos enviará maldição
aos predadores do sossego
és tu cenobita
atormentador do teu vizinho?
essa igreja central é um estrondo
deixou passar o tempo assinalado
morada de dragões
matracas e baitacas
onde o fiscal?
onde a lei do silêncio?
onde o que conta os decibéis?
o inimigo da Rua Ubaldino
nesse mesmo número 666
uiva baterista clama guitarrista
rebolai-vos no pó da danação
à tua porta já batem as duas ursas
chamadas por Elias
cala-te aquieta-te irmão cenobita
afasta de nós esse cálice da balbúrdia
e da aflição de espírito
casa de oração convertida em covil
de salteadores da paz
não o pão
mas a pedra dodecafônica
não o peixe
mas a serpente da caixa de ressonância
não o ovo
mas o escorpião do amplificador
amigo a que vieste?
mais fácil passar um camelo
pelo fundo da agulha
do que entrar um guitarrista cenobita
no reino de Deus
dura é essa barulheira
quem a pode suportar?
filhos da Rua Ubaldino chorai
sobre o fim da paz e do sossego
ah! espada do Senhor
até quando descansarás na tua bainha?

Fonte: TREVISAN, Dalton. Dinorá: novos mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1994.



           "PALAVRAS AO VENTO"
            Por Fábio Brito
         
            Estive, dias atrás, pensando no seguinte: de duas décadas para cá, só para tentar marcar um período, quantas pessoas próximas ou conhecidas resolveram "pregar a palavra de Deus"? Muitas, respondo sem titubear. Não raro, encontro alguém que não vejo há anos e... ele está totalmente diferente: estranho e com um discurso esquisito. Meu velho conhecido está, enfim, transformado. Conversa vai, conversa vem, eis que fico sabendo que ele está "pregando a palavra de Deus". Foi mais um escolhido. Porque "poucos são os escolhidos", apesar de muitos terem sido chamados, esse amigo é mais um a engrossar a fila dos que participaram da "cerimônia da sagração". É... agora, há muita gente por aí que tem ouvido "o" chamado. Por isso, é preciso pregar. E pregar muito! Exatamente por isso, precisa sair por aí "pregando a palavra de Deus" a quem quer que seja, até ao vento. E dana 'me' fazer convite, e dana 'me' entregar panfleto, e dana falar disso e daquilo. Sinceramente, não dá. "De fininho, vou tirando meu carro", como se dizia tempos atrás. 
          Nessa história dos que ouviram o tal chamado, fico pensando em três grupos: os que lideram, os que são liderados e, recorrendo a termos próprios do futebol, os "que chutam e pegam no gol", ou seja, que lideram e são liderados "ao mesmo tempo". Entre os primeiros, os que lideram, tenho percebido muito charlatanismo. É evidente a (não)compreensão do texto de que se dizem conhecedores, ou seja, o texto bíblico, que, como todos sabemos, é extremamente complexo. Metaforizado ao extremo, não oferece quaisquer facilidades de compreensão até mesmo para quem tem um excelente domínio da língua portuguesa e da literatura. Agora, contem para mim: uma pessoa "sem leitura", não escolarizada "dá conta" desse texto? Não é preconceito, mas não dá. Então, ela faz o quê? Simplesmente diz que faz pregações. Mas prega o quê? O que pensa que sabe, claro! O que pensa que entendeu. E os que estão no segundo grupo? Os que ouvem? Simplesmente acreditam. Acreditam em quê? Nas inverdades que ouvem, claro! Nas tais falsas interpretações. E aí? Aí, ergue-se o império do absurdo e do surreal. Vez ou outra, "en passant", escuto cada absurdo de "interpretação", que fico pensando se não se trata de delírio meu.
          Em outro grupo, o terceiro, o dos que "chutam e pegam no gol", há mais bizarrismo ainda quanto à pregação da palavra de Deus. Outro dia, caminhando, surgiu a ideia de discorrer sobre esse grupo, o da "pregação solitária". Vamos aos fatos! Já faz um bom tempo que venho observando um pregador solitário da palavra de Deus que se instalou em um dos trechos da rua - bem movimentada, por sinal - em que caminho. Sem quaisquer constrangimentos, ele põe sua caixa de som em uma calçada e, ao microfone, começa a pregar a palavra de Deus. No entanto, ele prega essa palavra... ao vento! A cena é patética. Ou melhor, não só ao vento ele prega, mas aos carros que passam em alta velocidade. Inacreditável, não?! Pois é, no ponto escolhido, não há semáforo ou algo que, pelo menos,  faça os carros passarem mais devagar. Há uns dias mesmo, escutei esse pregador dizer que todos (?) aos quais ele pregava estavam convidados para um grande "encontro" que se realizaria ali mesmo, daí a poucos minutos: às 20 horas, para ser preciso.  Ok. Convite feito, pensei. Será que, além do "caminhante" aqui, alguém mais ouviu o tal convite? O ponto de ônibus mais próximo fica a uma boa distância. Rapidamente, dei uma olhada para as casas ao redor. Não havia ninguém nas janelas. Se houvesse, quem sabe alguém se interessaria pelo convite...? Meu Deus, o rapaz falava como se, à sua frente, houvesse grande e atenciosa multidão. De onde vem isso? De onde veio essa ideia de "jogar palavras ao vento"? Quem o teria instruído a fazer isso? Para quê? Com que finalidade? 
          Nesse caso aí, o de nosso pregador solitário, fica claro para mim o fanatismo. Tudo bem. Podem alegar que Deus está ouvindo (sempre esteve!) as palavras de nosso solitário amigo. E está mesmo, não duvido. Entretanto, muita gente há de concordar comigo: Deus também ouvirá essas palavras se elas forem ditas em um cantinho reservado, solitário, quieto. Não há necessidade de saírem às ruas para isso ou gritarem essas palavras em espaços diminutos onde qualquer sussurro já seria ouvido. Em um cômodo de poucos metros quadrados, em que não há necessidade de microfone, caixa de som e amplificadores, há muitos que desandam a gritar,  a pular e, até mesmo, a vociferar. O que fazem não me parece algo diferente de uma grande encenação! Porque têm um discurso (pseudo)convincente, conseguem a atenção de muitas pessoas. Decoram certos fragmentos do texto bíblico (mas não os interpretam) e dizem-se estudiosos da palavra de Deus. Estudiosos?! Todo estudioso é, antes de tudo, alguém que se dedica com afinco a seu material de estudo e não tem nunca certezas cegas. Ao contrário, é alguém que aprendeu a relativizar. Não é um parlapatão bipolar para quem só existem dois mundos: o dos "bonzinhos" e o dos "ruinzinhos". Nesse caldeirão dos que se dizem estudiosos, o que não falta é oportunismo. 
          E é claro que, junto com o oportunismo de uns, caminha o fanatismo de outros. Não se pode desconsiderar isso. Certa vez, ouvi de uma amiga que sua fé era racional. Atentei para isso, porque eu não imaginava que a fé poderia ser racional. Não esqueci mais esse ensinamento. E o que vemos por aí é pura fé emocional (não de todos, claro!). Pior: emocional beirando o delírio, o desespero, a alucinação. Pessoas enlouquecendo de fato. É puro fanatismo mesmo! E tenho medo de fanatismo. Medo mesmo! E o fanatismo religioso, como eu já disse em outro texto, é o mais perigoso de todos, porque mais virulento. Em nome de um "Deus" castrador, que privilegia alguns, muitas pessoas estão por aí cometendo atrocidades e mais atrocidades. Aonde vamos chegar? Muitos, se existir justiça, já sei para onde vão...
  

TEOFANIA
Chico César - Bráulio Tavares

Além do bem e do mal
Com seu amor fatal
Está o ser que sabe quem sou

No tempo que é um lugar
No espaço que é um passar
Espreita-nos um olhar criador

Muitos me dirão: que não!
Que nada é divino: nem o pão, o vinho,
a cruz
Outros rezarão: em vão!
Pois nada responde e tudo se esconde:
em luz

Deus do roseiral, do sertão
Do ramo de oliveira e do punhal
Deus dos temporais, dos tufões
Da dúvida, da vida e a morte vã

Quanta solidão e eu não sei
Se homem só suportarei
Um sinal, um não,
e silencie, aqui e além, a dor

Deus das catedrais, dos porões
Da Bíblia, do Alcorão e da Torá
Deus de Ariel e Caliban
Da chuva de enxofre, do maná

Quanta solidão e eu não sei
(...)

Fonte: Chico César. Respeitem meus cabelos, brancos. MZA Music/Abril Music. 2407001-2. 2002.


PROCISSÃO
Gilberto Gil

Olha lá vai passando a procissão
Se arrastando que nem cobra pelo chão
As pessoas que nela vão passando
Acreditam nas coisas lá do céu
As mulheres cantando tiram versos
Os homens escutando tiram o chapéu
Eles vivem penando aqui na Terra
Esperando o que Jesus prometeu

E Jesus prometeu vida melhor
Pra quem vive nesse mundo sem amor
Só depois de morrer neste sertão
Eu também tô do lado de Jesus
Só que acho que ele se esqueceu
De dizer que na Terra a gente tem
De arranjar um jeitinho pra viver

Muita gente se arvora a ser Deus
E promete tanta coisa pro sertão
Que vai dar um vestido pra Maria
E promete um roçado pro João
Entra ano, sai ano, e nada vem
Meu sertão continua ao deus-dará
Mas se existe Jesus no firmamento
Cá na Terra isto tem que se acabar

Fonte: Gilberto Gil: todas as letras. Organização Carlos Rennó. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.


REPROCISSÃO
Chico César

não se deixe enganar mano
não vai cair maná do céu
nem pão nem peixe nem pastel
mas mande logo um cartão-postal
quando chegar no nirvana
na terra que Jesus prometeu tem dor
tem que dar nosso suor
tem que dançar balé num pé só
tentar levar a pedra ao sopé
e vê-la rolar pela montanha
voar só alado
ou encantado
pela cobra
que rasteja pelo chão
não se deixe enganar mano
semana que vem Deus dará
o tempo de uma semana passar
e o pássaro de giz que o mano é
em transe em terra entranha

Fonte: Fonte: Chico César. Beleza mano. MZA Music/Polygram. 011245-2. 1997.


 HEAVY METAL DO SENHOR
Zeca Baleiro

o cara mais underground que eu conheço é o diabo
que no inferno toca cover das canções celestiais
com sua banda formada só por anjos decaídos
a plateia pega fogo quando rolam os festivais

enquanto isso deus brinca de gangorra no playground
do céu com os santos que já foram homens de pecado
de repente os santos falam "toca deus um som maneiro"
e deus fala "aguenta vou rolar um som pesado"

a banda cover do diabo acho que já tá por fora
o mercado tá de olho é no som que deus criou
com trombetas distorcidas e harpas envenenadas
mundo inteiro vai pirar com o heavy metal do senhor

Fonte: Zeca Baleiro. Por onde andará Stephen Fry? MZA Music. 011241-2. 1997.


GUERRA SANTA
Gilberto Gil

Ele diz que tem que tem como abrir o portão do céu
Ele promete a salvação
Ele chuta a imagem da santa, fica louco, pinel
Mas não rasga dinheiro, não

Ele diz que faz que faz tudo isso em nome de Deus
Como um papa da Inquisição
Nem se lembra do horror da Noite de São Bartolomeu
Não, não lembra de nada, não

Não lembra de nada, é louco, mas não rasga dinheiro
Promete a mansão no paraíso, contando que você pague primeiro
Que você primeiro pague o dinheiro, dê sua doação
E entre no céu levado pelo bom ladrão

Ele pensa que faz do amor sua profissão de fé
Só que faz da fé profissão
Aliás, em matéria de vender paz, amor e axé
Ele não está sozinho, não

Eu até compreendo os salvadores profissionais
Sua feira de ilusões
Só que o bom barraqueiro que quer vender seu peixe em paz
Deixa o outro vender limões

Um vende limões, o outro vende o peixe que quer
O nome de Deus pode ser Oxalá, Jeová, Tupã, Jesus, Maomé
Maomé, Jesus, Tupã, Jeová, Oxalá e tantos mais
Sons diferentes, sim, para sonhos iguais


Fonte: Gilberto Gil: todas as letras. Organização Carlos Rennó. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

domingo, 6 de maio de 2012

REIZINHOS 'MANDÕES'





EU QUERO SER SEDADO (I wanna be sedated)
Joey Ramone / Dee Dee Ramone / J. Ramone - Versão: Rita Lee

Vinte - vinte - vinte e quatro horas a mais
Eu quero ser sedado
Nada de amor
Nada de paz
Eu quero ser sedado

Me leva pro aeroporto
Me bota no avião
Vamo, vamo, vamo, eu hoje tô o cão
Eu não controlo a cuca
Eu não controlo a mão
Oh, não, não, não, não, não

Me amarra numa maca
Me bota no avião
Vamo, vamo, vamo, eu hoje tô o cão
Eu não controlo a cuca
Eu não controlo a mão
Oh, não, não, não, não

Na camisa-de-força
Me leva para o show
Vamo, vamo, vamo, estoy mucho loco
 Eu não controlo a bola
Eu não controlo o gol
Oh,  não, não, não, não, não

Me finca uma estaca
Me leva para o show
Vamo, vamo, vamo, estou mucho loco
Eu não controlo a bola
Eu não controlo o gol
Oh, não, não, não, não

Fonte: Rita Lee. MTV ao vivo. EMI, 2004.


         REIZINHOS “MANDÕES”
          Por Fábio Brito
          Aluno "pode tudo"? Não se espantem, mas, em algumas escolas, aluno pode, sim, fazer e dizer o que quiser, o que bem entender. Está decretado o fim do respeito, principalmente ao professor, que já é tão desrespeitado. Com muito - muito mesmo! - espanto, ouvi, há uns dias, um relato estarrecedor de um professor de ensino médio. Tal relato-desabado só serviu para eu constatar que, para muitos alunos, o professor significa muito pouco, quase nada.
          Esse professor pediu a um colega de trabalho que fizesse a gentileza de entregar uma avaliação que ele ainda não havia tido tempo de entregar. Como todos sabemos, é questão de respeito o cumprimento dos prazos estabelecidos. Pois assim 'o' fez o professor: para não desrespeitar os alunos, pediu a um colega, também professor, que entregasse o material. Pois bem, um dos adolescentes, que só deve ter olhado a nota, foi rápido em seu comentário ao receber a prova: " - Esse 'isso' e esse 'aquilo' está querendo me reprovar". Ou seja, para esse adolescente, o professor é nada. Ou melhor: é sim! É o "isso" e o "aquilo" ditos por ele, o aluno. Na cabecinha desse garoto, o professor é tudo, menos alguém que merece respeito e consideração. Indignado com o desrespeito, o professor relatou o fato ao amigo, que, imediatamente, procurou a coordenação (ou a direção, não lembro) para que fossem tomadas providências. Tomaram? Eis outro capítulo da bela história dos "mil e um desrepeitos em sala de aula hoje em dia".
          Chamado pela direção da escola, o aluno, no início, negou que tivesse agredido verbalmente o professor; depois, confessou. A diretora, ao ouvir a confissão, solicitou que esse aluno pedisse desculpas ao professor: " - Peça desculpas ao professor, meu filho". E o menino, "bem educado" (educadíssimo!), pediu! Sou capaz de apostar que, no momento, os dedinhos estavam cruzados. E a história, para meu espanto, acabou aí... Não houve qualquer punição. Desde quando pedir desculpas - "falsamente", claro! - é punição? Esse aluno não vai ser punido? Não vai haver suspensão ou sei lá o quê? Os pais não vão ficar sabendo? Algumas regalias que esse adolescente tem não serão suspensas por um tempo? Vai ficar tudo por isso mesmo? Não me faltam perguntas, meu Deus! E quero que não me faltem mesmo... nunca!
          O pior de tudo, nesse rolo todo, é que ninguém educou ninguém. Estabelecer como punição a um aluno que agride um professor apenas um "insosso" e falso pedido de desculpas não é educar. Desculpem-me, mas não é mesmo! Se eu não estiver redondamente enganado quanto a "possíveis novos métodos de educação", o nome disso, para mim, é paternalismo barato, chinfrim. E paternalismo, como já dizia uma de minhas grandes professoras, não faz ninguém crescer. Ao contrário! Paternalismo é algo que só deseduca e fomenta o desrespeito. Sem limites, paparicados ao extremo e com suas falhas acobertadas, muitos jovens encontram, certo dia, um mundo atraente - e sem limites, claro! – como o das drogas e o do crime. Está mais do que provado que muitos se envolvem com drogas porque não tiveram quaisquer limites. Todo texto de psicologia, por mais simples e banal que seja, vai dizer isso. É bom não nos esquecermos de que muitos tiranos nascem assim: fazem o que querem desde a mais tenra idade. Então não é mais de "pequenino que se...", como diziam meus avós? Hoje em dia, parece que não. Voltando à questão escolar: nem é preciso relembrar acontecimentos (muitos!) recentes envolvendo agressões (muitas chegam à morte) a professores relatadas aos montes por jornais.
          Com atitudes como essa do aluno que chamou o professor de “isso” e “aquilo”, nossos adolescentes vão crescendo malformados, mal-educados. Pensam, certos pais e professores, que, "passando a mão" na cabeça, estão educando. Estão, sim, engrossando ainda mais um exército de gente fútil e vazia. Esses adolescentes malformados, essas “pessoinhas” mimadas, fazem, literalmente, o que querem. Mandam e desmandam, inclusive nos pais. São belos exemplos de “reizinhos mandões”. Se contrariados – porque, às vezes, os pais resolvem não dar o tênis ou a roupa “de marca” - saem por aí matando pai, mãe, professores e ateando fogo em pessoas que encontram pelas calçadas. Culpa de quem? De quem os educou para isso, claro! Ou vão dizer que a culpa é minha? Talvez seja do professor, não é mesmo? Ou será da escola? Bom, de uns tempos para cá, ela, a escola, transformou-se em tudo: “psicóloga”, “médica”, “assistente social”, “babá de luxo”... Só não tem conseguido ser escola. Que pena!
          Não são poucas as histórias que me chegam de escolas "dirigidas" por alunos. Nos últimos anos, então, o número tem sido alarmante. Todo ano, ajudo a formar professores e mais professores. Muitos, durante a graduação, já atuam em sala de aula. Independentemente da cidade, os relatos que eles me fazem de desmandos de alunos são bem parecidos. Espantoso isso, não? Mas há as exceções. Querem uma? Certa vez, ouvi de uma professora uma história bastante interessante: ela disse-me que, na escola em que trabalha, não há qualquer problema em repreender alunos “mandões”. Eis uma de suas “chamadas”: "- Aluno, aqui, não manda na escola, ouviu? Se quisermos, você não fica aqui nem mais um dia". Desde que surgiu, essa escola é uma das mais respeitadas na cidade. Suas vagas são disputadíssimas. Por quê?  Porque, lá, "aluno não manda na escola", disse-me a professora. É 'lei' e pronto! Querem estudar? Estudem, mas vão ter de saber o que é respeito por todos: do pessoal da limpeza à direção. E os alunos sempre tiveram "amor por essa escola". Nenhum que passou por lá, desde sua fundação até hoje, deixou de amá-la e de sentir o maior 'orgulho' por ter sido filho dessa escola. E aí? Paternalismo adianta? Resolve? Claro que não! Pois é, mas, como relatou a professora, não faltam críticas a essa escola. Uma delas aponta para o tradicionalismo. E daí? Qual o problema em ser tradicional? Os pseudomoderninhos, por acaso, estão resolvendo?  Resolveram algum dia? Não resolverão nunca, porque, antes de pensarem no crescimento e na educação de seus alunos, pensam em agradar aos pais e à sociedade. Caminho sem volta esse... parece-me! Portanto, "eu quero ser sedado", como bem canta Rita Lee.

FORAM MUITOS, OS PROFESSORES
           
Bartolomeu Campos de Queirós

         Minha mãe guardava com cuidados de sete chaves, sobre a cômoda do quarto, três cadernos. No primeiro, ela copiava receitas de amorosos doces: suspiros, amor-em-pedaços, baba-de-moça, casadinos, e fazia olho-de-sogra de cor. No segundo caderno, ela anotava riscos de bordado, com nomes camuflados em pesares: ponto-atrás, ponto de sombra, ponto de cruz, ponto de cadeia, laçadas e nós. No terceiro, ela escondia longas poesias, boiando em sofrimentos: A Louca d’Albano, Tédio, O Beijo do Papai. Eu reparava seus cadernos, encardidos pelo tempo e pelo uso, admirava sua letra redonda e grande, com caneta de molhar, sem ainda desconfiar das palavras. Eu sabia do todo, sem suspeitar das partes. Durante muitas tardes, com o pensamento enfastiado de passado, ela passava as páginas, lentamente, espreitando as folhas vazias, como se cansada de escrever e de pouco exercer. Eram sempre as mesmas comidas, os mesmos pontos, a mesma poesia e muito por decidir.
            Meu pai, junto ao rádio no alto da cristaleira e longe do meu alcance, protegia alguns poucos livros sobre homens célebres, com vidas prósperas sem precisar viajar de sol a sol. Aos pedaços ele lia os compêndios, escutando a Voz do Brasil ou o Repórter Esso. Eu apreciava seu silêncio, sem me aventurar em perguntas ou demandas. De vez em quando ele interrompia a leitura e me acariciava com os olhos, me amando sem mãos, como se me desejando outros futuros diferentes do seu. Seu jeito me arranhava por não ser meu anseio me fazer herói ou mártir. Eu queria saber, mas sem perdê-lo. Lastimando a ausência de futuro, ele fechava o livro, reparava as horas e buscava o sono. Seu dia era pequeno para trabalhar por todos nós. E nos livros, eu percebia, estava escrito o já não mais possível a ele. Eu sabia irrealizável, sem querer nascer de novo.
            Na pequena capela da praça morava uma imagem de Sant’Ana. Minha irmã levava piedosos ramos de flores, colhidos na horta, e trocava pedidos balbuciados. Eu encarava a santa com seu livro aberto sobre os joelhos ensinando à Menina Maria. Eu espiava o livro de gesso, indagando o que a futura Mãe de Deus não sabia ainda. O que estava guardado em abençoado livro e que a Rainha desconhecia? Aproveitava as suspeitas e rezava por mim, pelas minhas desconfianças. Mesmo sabendo repetir o credo, o pai-nosso, a ave-maria, meu coração se aventurava a interrogar o Perfeito por me ofertar tanta incoerência para sobreviver.
            Meu irmão, o mais velho, se debruçava sobre a mesa e examinava, enfastiado, seu livro de leitura. Passava horas soletrando, com desalento, seus afazeres. Os deveres lhe pareciam insossos, pois, constantemente, pedia a meu pai para “lhe tomar as lições”. Meu pai negava por não necessitar mais de lições. Já trabalhava e amava. Minha mãe, propensa a justificar fracassos, elogiava o esforço do filho maior, o suposto responsável pela família em caso de desgraça, mesmo reconhecendo não serem os livros o seu caminho. Eu invejava o lugar de meu irmão estudando os afluentes do Rio Amazonas, a rosa-dos-ventos, os pontos cardeais, as três caravelas. Eu sonhava rio, vento, direção e barco sem querer partir. E, se partir, deixar bilhete sobre o norte buscado. Se sufocado em desejos, eu vivia cheio de medo de minhas vontades virarem verdades.
            Minha avó, toda manhã, ainda em jejum, arrancava a página da folhinha Mariana e lia as recomendações. Meditava, cambaleando no meio da sala, sobre o pensamento escrito no verso do papel para depois conferir a fase da Lua, a previsão das enchentes e estiagens. Em seguida acendia mais uma vela para os santos do dia: santa Genoveva, são Philippus, São Clemente Maria, santo Antão, santo Agripino. Eu reparava sua fé e guardava o papelzinho como se armazenando sabedoria, como se acreditando na possibilidade de o passado se repetir no futuro. Minha mãe, de soslaio, espiava minha avó e continuava sem anotar receita de olho-de-sogra em seu primeiro caderno.
            Maria Turum, empregada antiga de meu avô, sabia de um tudo sem conhecer as letras. Conforme o meu olhar, ela me oferecia um pedaço de doce ou me abraçava em seu colo. Combinava o tempo de chuva com comida e angu, carne moída e quiabo, em consultar caderno de receitas. Se meu avô pisasse mais forte, ela apresssava o almoço; e, se tossia durante a noite, vinha um prato de mingau, com pedaços de queijo, no café da manhã. Ao apertar com os dentes um grão de feijão, sabia se estava cozido ou se precisava de mais um caneco de água. Olhava o céu e deixava a roupa para ser lavada em outro dia, pois faltaria sol para corar os lençóis. Nunca notei interesse seu diante das paredes do meu avô. Ela parecia não pensar além da casa. Não havia horizonte lá fora. Só conhecia o mundo tocado pelos olhos. E em sua alma, eu compreendia, não cabia mais amor além daquele dividido entre nós e revelado na limpeza da casa, no carinho da cozinha, na roupa alvejada no varal.
            Meu avô, arrastando solidão, escrevia nas paredes da casa. As palavras abrandavam sua tristeza, organizavam sua curiosidade silenciosamente. Grafiteiro, afiava o lápis como fazia com a navalha. A cidade era seu assunto: amores desfeitos, madrugada e fugas, casamentos e traições, velórios e heranças. Contornava objetos: serrote, tesoura, faca, machado – e ainda escrevia dentro dos desenhos um pouco do destino de cada coisa: o serrote sumiu, a tesoura quebrou, o machado perdeu o corte. Eu, devagarinho, fui decifrando sua letra, amarrando as palavras e amando seus significados. Meu avô era um construtivista (sem conhecer nem a Emília do Lobato) pela sua capacidade de não negar sentido às coisas. Tudo lhe servia de pretexto.   
            Eu restava horas sem fim, de coração aflito, seduzido pelas histórias de amor, de desafeto, de ingratidão, de mentiras do meu primeiro livro – as paredes da casa de meu avô. Assim, percebi o serviço das palavras – facas de dois gumes. Meu avô desdizia verdades eternas com as mesmas palavras com que escreveram a Bíblia Sagrada: “A bondade de Deus só não deu asa à cobra porque a cobra não cobrou; à noite todos os pardos são gatos; para quem sabe ler, um pingo nunca foi letra; em casa de ferreiro pobre, até o espeto é de pau porque não tem nem fogo”. Essa sua capacidade de negociar com as palavras, de buscar seus avessos, me atordoava e me seduzia.
            Meu avô poderia ter sido meu primeiro professor se fizesse plano de aula, ficha de avaliação, tivesse licenciatura plena. O fato é que ele não aplicava prova, não passava dever de casa nem brincava de exercício de coordenação motora. Jamais me pediu que acompanhasse o caminho que o coelhinho fazia para comer a cenourinha nem me deu flor para colorir. Minha coordenação motora eu desenvolvi andando sobre muros ou pernas de pau, subindo em árvores, acertando as frutas com estilingue ou enfiando linha na agulha para minha avó chulear. Também, coelho não usava ainda nem na Páscoa, ocasião em que se comungava coordenando a hóstia para não esbarrar nos dentes nem grudar no céu da boca. Meu avô escancarava o mundo com letra bonita e me deixava livre para desvendar sua escritura.
            Mesmo assim, cada dia eu conhecia mais palavras e mais distâncias, combinando melhor as orações. E suas paredes mais se enchiam de avisos sobre o mundo e as fronteiras do mundo. Eu decorava tudo e repetia timidamente. Eram tranqüilas suas aulas, e o maior encanto estava em meu avô cultivar as dúvidas. Se ele escrevia “o mundo é uma bola besta sem eira nem beira”, eu desconfiava se estava dizendo ser a Terra redonda ou se a Terra era uma piada sem tamanho. Eu concluía ser as duas coisas. Às vezes ele me pegava esticando o pescoço, tentando alcançar um pedaço mais longe, um parágrafo mais alto. Ele me apontava a cadeira. Eu buscava e ele me ajudava a subir. Minha avó gritava: “Menino, desça daí, esse velho não é certo nem dá certeza”. Meu avô voltava para a janela e continuava lendo o mundo, seu único e maior livro.
            Não sei se aprendi a fazer contas com meu avô. Ele mais me ensinava a “fazer de conta”. No entanto, eu diferenciava o mais alto do mais baixo, o bife maior do menor, as noites mais frias das noites mais quentes, o mais bonito do mais feio, a montanha mais longe, a dor mais pesada, a tristeza mais breve, a falta mais constante. Mas acreditava, e hoje ainda mais, não ser a casa de meu avô uma escola. Ela não possuía cartazes de cartolina nas paredes, vidro com semente de feijão brotando, cantinho de leitura com livrinhos infantis, lista de ajudantes do dia, tanque de areia, palhacinho de isopor, flanelógrafo de feltro verde. Meu avô devia supor que escola fosse o mundo inteiro, a vida inteira, com noite e dia, perdas e ganhos, dores e tristezas, sonos e sonhos.
            Mas eu somava o tempo de ausência de meu pai transportando manteiga, as horas sonoras do relógio, os suspiros na bandeja. Meu avô não usava toquinhos coloridos, tampinhas de garrafa, palitos de picolé nem me exigia uniforme. Ele nunca me convidou para fazer “rodinha”. Aprendi, porém, e como ninguém, a dar nós cegos em barbante, seu passatempo preferido. Meu avô me dizia: “Um bom nó cego tem que ser ainda surdo e mudo”. Penso ter vindo daí essa minha paixão pelos abraços e pelos laços.
            Em minha casa ninguém atribuía importância às minhas leituras. Eu aproveitava pedaços de jornais que vinham embrulhando coisas e lia em voz alta, procurando atenções e reconhecimentos. Meu pai me olhava e repetia sempre: “Menino, deixe de inventar histórias, você não sabe ler, nunca foi à escola” ou “Menino, deixe esse papel e vá procurar serviço melhor pra fazer”.
            Passei a duvidar da escola. Parecia-me um lugar só para dar autorizações. Se a escola não autorizasse, eu não poderia saber. O medo desse lugar passou a reinar em minha cabeça. Comecei a dar razão ao meu irmão, já capaz de dirigir o caminhão assentado em um travesseiro de paina. Mas logo me veio uma idéia: quando entrar para a escola, eu faço de conta que esqueci tudo e começo a aprender de novo. “Uma mentirinha é um santo remédio para botar um ponto final em conversa fiada”, me ensinou meu avô, coisa que comecei a praticar para encurtar perguntas e me livrar de incômodos. Havia pessoas que gostavam de indagar muito mais do que deviam.
            Cheguei de uniforme novo costurado pelo carinho de minha madrinha. O caderno era Avante, com menino bonito na capa, sustentando uma bandeira com um Brasil despaginado pelo vento. Menino rico, forte, com sapatos e meias soquete. O estojo de madeira estava completo: dois lápis johann Faber com borracha verde na ponta e mais um apontador de metal. Um copo de alumínio, abrindo e fechando como o acordeom de Mário Zan, completava as exigências da escola. Só minha cabeça andava aflita para esquecer. E esquecer é não existir mais. Isso não é tarefa fácil para quem aprendia em liberdade, escolhia pelo prazer, guardava pela importância. 
            Fui acolhido por dona Maria Campos, minha primeira professora, com livro de chamada, caderno com plano de aula encapado com papel de seda. No pátio ela nos leu da cabeça aos pés, conferindo a limpeza do uniforme, as unhas lavadas, o cabelo penteado. Pela primeira vez me senti o seu livro. Miúdo, descalço, morria de inveja do menino Avante guardado no embornal. Fui o primeiro da fila. Dona Maria Campos segurou minha mão e a fila foi andando em direção à sala de aula. Mão fina e macia como o algodão da paineira, que minha mãe colhia aos tufos e costurava travesseiro com cheiro de mato. Meu coração disparou de amor e mão. Comecei, assim, naquele depois de meio-dia, a praticar minha promessa: tomar bomba no tudo já aprendido e começar branco como o caderno Avante. 
            Dona Maria vestia-se por todo o sempre com roupa clara, sapatos fechados, meias de seda, blusa bordada em branco sobre branco e mais um lenço preso no cinto ou na pulseira do relógio para assear as mãos depois de escrever no quadro-negro. Ela me emprestou seu lenço quando minha mãe viajou doente para a capital. Eu não usei. Preferi usar, como de costume, a manga da camisa, com medo de sujar no nariz e ela não mais gostar de mim. Todo o cuidado era pouco para não perder o seu amor. Sua alvura na roupa, seu olhar capaz de ver muito depois das coisas, sua voz mansa – mistura de fortaleza e doçura, me instigavam ao silêncio. Ela não pedia, mas eu a presenteava.
            Encher o caderno com fileiras e fileiras de a, e, i, o, u foi o primeiro exercício. Vaidosa, ela me apresentava os sinais para escrever e ler o mundo. Ganhar o seu visto feito com lápis azul ou vermelho riscava com alegria toda a minha vida. Eu me esforçava, caprichava na letra e mordia a língua no canto da boca. De carteira em carteira, ela corrigia os exercícios deixando no ar um cheiro de paineira e primavera. Estação que eu não distinguia “a olho nu”, mas imaginava.
            Um dia dona Maria Campos trouxe Lili, menina que gostava muito de doce e olhava pra mim. Lili foi o meu primeiro amor. Eu lia os cartazes, colava as sílabas, recortadas, com grude de polvilho, mentindo descobrir pela primeira vez as palavras. Vencia as horas folheando a cartilha, lendo até o fim, em silêncio, guardando em segredo os depois. A professora jamais soube do meu adiantamento. Na primeira carteira eu prestava atenção a tudo, sendo elogiado como menino aplicado, cheio de futuros. Nunca soube se precisava mesmo de suas lições ou de seu carinho. E isso ela bem me presenteava. Eu aprendia para ela. Mas, se não me esqueci de sua presença, valeu a pena.
            Fui escolhido para declamar no auditório da escola uma poesia. Ser escolhido já significava um prêmio. Decorei e repetia para as galinhas, os chuchus e a paineira o poema, cheio de medo de gaguejar e de decepcionar minha professora:

            Eu comi ontem no almoço
            A azeitona de uma empada,
            Depois botei o caroço
            Sobre a tolha engomada.

            Mas a mamãe logo nota
            E me ensina com carinho:
            O caroço não se bota
            Sobre a toalha, meu benzinho.

            O que ela me diz eu ouço
            Sempre com muita atenção
            E perguntei-lhe: o caroço, mamãe,
            Onde boto então?

            Toda pessoa de linha,
            De educação e de trato,
            O osso, o caroço, a espinha
            Põe no cantinho do prato.

            Eu depressa lhe respondo
            Com respeitoso carinho:
            Mas meu prato é redondo,
            Meu prato não tem cantinho!

            Não me lembro do autor dos versos ou se eram anônimos como eu, naquele fim de mundo, naquele miolo da Terra arredondada e sem aparentes arestas. Contudo, se não caíram no esquecimento, não devem ficar ignorados como outras coisas mais. Também não sei se eram aritmética aqueles problemas passados no quadro-negro, dividindo as dúzias de ovos e bananas, fracionando laranjas e maçãs em quatro ou oito partes iguais. Os litros de leite, se bem me lembro, divididos entre todos, me sugeriam pensar se a generosidade era um dom da vaca, do fazendeiro ou dos dois. Sei que nesses atos singelos, praticados com gestos amorosos, dona Maria Campos me ensinou demais, muito além das paredes de meu avô. Ou melhor, me ensinava serem muitos os lugares da escrita e da leitura. De suas histórias lidas no fim da aula, eu ainda guardo o cheiro do livro.
            Ingênuo, supondo ser a vida um processo de soma e não de subtração, juntei de cada um dos meus mestres um pedaço e protegi em minha intimidade. Concluo agora que, de tudo aprendido, resta a certeza do afeto como a primordial metodologia. Se dona Maria me tivesse dito estar o céu no inferno e o inferno no céu, seu carinho não me permitia dúvidas.
            Os cadernos de receitas de minha mãe, os livros velhos de meu pai, as paredes de meu avô, o livro de Sant’Ana, a mudez de Maria Turum, a fé viva de minha avó, a preguiça de meu irmão e tudo o mais, tudo ficou definitivamente impossível de ser desaprendido. Só não me convenço de ter comido apenas a azeitona da empada.    

Fonte: Meu professor inesquecível: ensinamentos e aprendizados contados por alguns dos nossos melhores escritores / organização de Fanny Abramovich. São Paulo: Editora Gente, 1997.