sexta-feira, 18 de abril de 2014

SE SAIR, NÃO LEVA UM GARFO




SAIA DO CAMINHO
Custódio Mesquita e Evaldo Ruy

Junte tudo que é seu.
Seu amor, seus trapinhos...
Junte tudo o que é seu
E saia do meu caminho!...
Nada tenho de meu,
mas prefiro viver sozinha...
Nosso amor já morreu,
e a saudade, se existe, é minha...

Tinha até um projeto,
no futuro, um dia...
O nosso mesmo teto
Mais uma vida abrigaria...
Fracassei novamente,
pois sonhei, mas sonhei em vão...
E você francamente,
decididamente,
não tem coração!...

Fonte: BARROS, Orlando. Custódio Mesquita: um compositor romântico no tempo de Vargas (1930-45). Rio de Janeiro: Funarte: EdUERJ, 2001.



SE SAIR, NÃO LEVA UM GARFO
Por Fábio Brito

Numa roda de bate-papo, ouvi o seguinte relato de uma pessoa que vem passando por problemas em seu relacionamento: " - Por uma besteira, brigamos. Depois, tive de ouvir que, se eu sair de casa, não levo um garfo". Fim do primeiro "round". Vamos ao segundo, quando a pessoa relatou mais um pouquinho de história: contou que ouviu da sogra e de uma das cunhadas alguns cochichos acerca de herança. Mais ou menos na linha "do se sair, não terá direito a nada". Do quarto em que estava, e sem que soubessem de sua presença, um pouco assustada e falando bem baixinho, ela telefonou para um amigo, que, sem pestanejar, perguntou: " - Alguma novidade? Esse caso já deu o que tinha de dar. Caia fora! Graças a Deus que esse rolo chegou ao fim".
É... e essa "história de amor" não tem nada no papel. Ou seja, o casamento com certidão e tudo não existe. 'Taí' uma encrenca... e "das boas". Para piorar, o marido é o "dono" da casa. Perguntinha básica: quando sair tiro, quando o teto desabar mesmo, quem sairá de casa? Quem arrumará as malas e, mochila nas costas, dará sinal em alguma estrada? Mochila vazia, claro!, porque nem o tal do garfo estará lá dentro. Ou melhor, mochila quase vazia, porque umas roupinhas íntimas e a inseparável escova de dentes não ficarão para trás. Todos os doces do mundo a quem adivinhar qual das criaturas vai pedir carona ao primeiro carro que passar pela estrada próxima à sua "ex-casa"... 
Pois é, e o pior é que, até o momento, ninguém saiu de casa. Chegaram à conclusão de que é melhor que fique tudo na santa paz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Depois de uma conversa "séria" (quem fez o relato já perdeu a conta do número de conversas "sérias" que tiveram...), ficou combinado que, quando houver outro 'problema' (também não se sabe qual o número do mais recente 'problema'...), ela sairá "de vez". Ela sairá! Sairá mesmo? Claro que não! A não ser, é lógico!, que haja tiro mesmo. Sabe por que ninguém vai sair? Porque não vale a pena. Porque, para ambos, o relacionamento é conveniente (a pessoa deixou que "enxergássemos" detalhes sobre os muitos porquês da conveniência...).  

O que vale frisar é que fiquei estupefato - não encontrei palavra melhor! - com a perda da dignidade de ambos. Por que isso?, perguntei, e continuo perguntando, a mim mesmo. Será que certos confortos - bens materiais e algumas "regalias" - justificam o fato de as pessoas anularem-se? É anulação sim! Duro dizer, mas é anulação. Quando não se tem mais dignidade, é sinal de que tudo já está perdido, não é mesmo? Sinal vermelho. Paremos! Não estou recorrendo, como sempre digo, a uma "filosofia de banca de jornal", mas "tô" tentando entender até aonde uma pessoa pode ir por causa da necessidade que ela tem de uma vida a dois, mesmo que esta seja sem nexo, sem graça, enfadonha e medíocre. 

Será que é carência? Se for, de onde ela vem? Ok. Vão repetir a mesma balela: "cada caso é um caso" e não sei mais o quê. No entanto, será que ficar com o outro apenas como muleta resolve? Deus meu! Não consigo entender. E olhe que estou falando de pessoas que parecem ter alguma clareza sobre a vida. Uma, pelo menos, parece: a que contou a história. Ah, lembrei! Muitos vão dizer que "a solidão apavora". Assim, há pessoas que bancam uma vida a dois, seja ela qual for, devido ao medo que têm da assustadora solidão. Oh! Quem disse  que ter alguém - filhos incluídos - é garantia de que jamais iremos para um "lar de idosos", para não dizer "asilo"?

Vamos a mais elucubrações? E deixem-me "viajar"! Dar uma de psicólogo, vez ou outra, não faz mal a ninguém, não é mesmo? Será que as pessoas às quais me refiro permanecem juntas por causa do tal destino? Será que elas pensam que serão salvas por esse bendito destino? Será que acreditam na tal história de que somos vocacionados para "a vida a dois", independentemente do preço a ser pago? Lembrando um fragmento da obra "Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico", de Jurandir Freire Costa, será que "o amor é um pedaço sentimental do destino ao qual estamos entregues, sem chances de reação"? Será? Se for assim, que bela prisão! Que "belo, esquisito e azedo abacaxi"!
Para mim, o belo, azedo e sempre indigesto abacaxi fica mais repugnante ainda quando, depois de tantos 'problemas' numa relação, o ressentimento e, por conseguinte, a mágoa resolvem ficar... e a confiança, é óbvio!, vai embora. Bate as asas. Racha fora", como dizem por aí. E o "trem" degringola mesmo. O que fazer, então, se, em um relacionamento, seja ele qual for, não há mais confiança? Se esta é traída, “era uma vez”! Inevitável não transcrever o que disse Maria Dolores, biógrafa de Milton Nascimento, referindo-se à reação de nosso Bituca quando, em suas relações, há mágoa e perda da confiança: “Bituca não perdoava uma mágoa com facilidade, não esquecia. Era fácil conquistar a sua confiança, ainda mais fácil perdê-la, e impossível resgatá-la”. Concordo inteiramente com o Bituca. 
"Ceder, conceder, amoldar-se, chegar um pouco para lá. Quem não se curva ao sabor das necessidades? O homem é apenas um caniço, dizia Pascal. Mas como estabelecer o ponto em que ceder deixa de ser um ato de generosidade para transformar-se num gesto de covardia? Como marcar o limite em que a concessão abre caminho à sua submissão? Onde fincar o pé em defesa da própria individualidade, sem que isso seja um grito de egoísmo? O homem é um caniço pensante, reescreveria Machado de Assis (...)"

Fonte: COLASANTI, Marina. A nova mulher. Rio de Janeiro: Círculo do Livro, 1980.
OLHOS NOS OLHOS
Chico Buarque
Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci 
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais 
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem porquê
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você 
Quando talvez precisar de mim
'Ce sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz 
Fonte: HOLLANDA, Chico Buarque de. Tantas palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.


"Procuramos o que encontramos e nos ajeitamos com o que achamos. Criamos condições propícias para o amor à primeira vista. Não é por acaso que tantos encontros acontecem em festas de casamento, quando o amor está no ar. Nós nos apaixonamos porque o outro preenche uma aspiração intelectual e sexual. Em seguida, nos apaixonamos pelo casal que construímos, porque estamos satisfeitos com a imagem que oferecemos."

Robert Neuburger, psicanalista e psiquiatra, autor de Nouveaux couples, ed. Odile Jacob.


PELA DÉCIMA VEZ
Noel Rosa

Jurei não mais amar
Pela décima vez.
Jurei não perdoar
O que ele me fez.
É que o costume é a força
Que fala mais forte
Do que a natureza
E nos faz
Dar prova de fraqueza.

Joguei meu cigarro
No chão e pisei.
Sem mais nenhum
Aquele mesmo apanhei
E fumei.
Através da fumaça
Neguei minha raça,
 Chorando, a repetir:
Ele é o veneno
Que eu escolhi
Para morrer sem sentir.

Senti que o meu coração
Quis parar.
Quando voltei
Escutei a vizinha falar
Que ele, só de pirraça,
Seguiu com o praça,
Ficando lá no xadrez.
Pela décima vez
Ele está inocente,
Nem sabe o que fez.

Fonte: ROSA, Noel. Noel Rosa pela primeira vez, vol. 6, CD 11, Velas, 2000. 
MOLAMBO
Jayme Florence e Augusto Mesquita
Eu sei que vocês vão dizer
Que é tudo mentira
Que não pode ser
Porque depois de tudo
Que ela me fez
Eu jamais deveria
Aceitá-la outra vez
Bem sei que assim procedendo
Me exponho ao desprezo
De todos vocês
Lamento, mas fiquem sabendo

Que ela voltou e comigo ficou
Ficou pra matar a saudade
A tremenda saudade
Que não me deixou
Que não me deu sossego
Um momento sequer
Desde o dia em que ela
Me abandonou
Ficou pra impedir que a loucura
Fizesse de mim

Um molambo qualquer
Ficou dessa vez para sempre
Se Deus quiser
Fonte: Mart'nália ao vivo, Universal, 2004, 325912006618.


 ERA FOZ E PARECIA SER FONTE. ERA FOZ
Fizemos pactos
de lucidez e alumbramentos.

Uma manhã
de braços dados
passeamos por um bosque
de invisíveis cogumelos
onde se ouviam
as ovelhas
e ao longe
um bezerro de ouro
sob as montanhas.

Algumas noites
líamos Rilke
pausadamente
outras jogávamos dado.

Às vezes ele falava
dos sonhos
de quem não tinha ainda
trinta anos.

O que restou
dessses votos quebrados?

ARCHANJO, Neide. Pequeno oratório do poeta para o anjo. Rio de Janeiro: N. Archanjo, 1997.


FIM DE CASO
Dolores Duran

Eu desconfio que o nosso caso está na hora de
acabar
Há um adeus em cada gesto, em cada olhar
Mas nós não temos é coragem de falar

Nós já tivemos a nosa fase de carinho
apaixonado
De fazer versos, de viver sempre abraçados
Naquela base do só vou se você for

Mas de repente, fomos ficando cada dia mais
sozinhos
Embora juntos cada qual tem seu caminho
E já não temos nem coragem de brigar

Tenho pensando, e Deus permita que eu esteja
errada
Mas eu estou, ah eu estou desconfiada
Que o nosso caso está na hora de acabar

Fonte: DURAN, Dolores. Dolores - a música de Dolores Duran. Lua Music, 207, 236.

ROUPA DO CORPO
Filipe Catto
Deixei meus trapinhos em cima da cama
 Fiz tudo ligeiro
Peguei maquiagem, valise e coragem

Enquanto não vinhas
Peguei o dinheiro da minha passagem

Que era só de ida
Não olho pra trás, parti e não vou mais

É voltar pra essa vida
Deixei na tua casa uma rosa vermelha

E um bilhete dizendo:
“Cuide bem dessa rosa,

Trate ela melhor do que tratou a mim”
Nem beijei o papel, dobrei, saí

No calor do momento
Vou com a roupa do corpo

Mesmo sem ter pra onde irNo caminho da rua
Sambei meia hora em casa esquina
Entrei em boteco,

Fiz doze amigos do peito e da pinga
Eu bebi, ri, subi em cima da mesa

Dizendo: “Seu moço, trás mais uma gelada
Que a nega aqui hoje teve alforria!”
Quando a noite chegou

 Subi no bonde correndo
Cantando e batendo

Com os dedos um samba na palma da mão
Eu não olho pra trás, não, não me arrependo
Vou com a roupa do corpo

 Não sei bem pra onde, mas não paro, não

Fonte: Entre cabelos, olhos & furacões, Filipe Catto, Univeral, 2013, 60253731614. 


TROCANDO EM MIÚDOS
Chico Buarque / Francis Hime
Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim?

  O resto é seu
Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças


Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter

Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar

Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado


Aliás
Aceite uma ajuda do seu futuro amor
Pro aluguel
Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu

Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde
 Fonte: HOLLANDA, Chico Buarque de. Tantas palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

 OUÇA
Maysa

Ouça, vá viver
Sua vida com outro bem
Hoje eu já cansei
De pra você não ser ningém

O passado não foi o bstante
Pra lhe convencer
Que o futuro seria bem grande
Só eu e você

Quando a lembrança
Com você for morar
E bem baixinho
De saudade você chorar

Vai lembrar que um dia existiu
Um alguém que só carinho pediu
E você fez questão de não dar
Fez questão de negar


MEU MUNDO CAIU
 Maysa

Meu mundo caiu
E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim

Não sei se me explico bem
Eu nada pedi
Nem a você nem a ninguém
Não fui eu que caí

Sei que você me entendeu
Sei também que não vai se importar
Se meu mundo caiu
Eu que aprenda a levantar

Fonte: MAYSA. Esta chama que não quer passar. Biscoito Fino, 2007, BF 685.



SE MEU MUNDO CAIR
Zé Miguel Wisnik

se meu mundo cair
então caia devagar
não que eu queira assistir
sem saber evitar
cai por cima de mim
quem vai se machucar
ou surfar sobre a dor
até o fim?

cola em mim até ouvir
coração no coração
o umbigo tem frio
e o arrepio de sentir
o que fica pra trás
até perder o chão
ter o mundo na mão
sem ter mais
onde e segurar
se meu mundo cair
eu que aprenda a levitar

Fonte: Zé Miguel Wisnik. Indivisível. Circus, VWCD2011A, 2010.

                                                            Foto: Fábio Brito