domingo, 17 de fevereiro de 2013

PING PONG DE "TUTTI FRUTTI" NO CAFÉ DA MANHÃ



MEUS TEMPOS DE CRIANÇA
Ataulfo Alves

Eu daria tudo que eu tivesse
Pra voltar aos dias de criança
Eu não sei pra que que a gente cresce
Se não sai da gente essa lembrança

Aos domingos, missa na matriz
Da cidadezinha onde eu nasci
Ai, meu Deus, eu era tão feliz
No meu pequenino Miraí

Que saudade da professorinha
Que me ensinou o beabá
Onde andará Mariazinha
Meu primeiro amor, onde andará?

Eu igual a toda meninada
Quanta travessura que eu fazia
Jogo de botões sobre a calçada
Eu era feliz e não sabia


  
PING PONG DE TUTTI FRUTTI NO CAFÉ DA MANHÃ
Por Fábio Brito
        Quando eu era criança, adorava chiclete Ping Pong de tutti frutti no café da manhã. Antes ou depois, não lembro. As primeiras ‘mascadas’, então, davam um prazer indescritível: a goma era bem docinha. Que mania estranha, não? Estranha, sim, mas trago comigo esse gosto do Ping Pong até hoje, assim como o cheiro do Leite de Colônia, que minha mãe sempre usou. Sem qualquer esforço, vêm à mente muitos cheiros e muitos gostos do passado... e muitos sons. Música também tem o poder de trazer o passado de volta de maneira incrível, arrebatadora. Ih, são muitos os objetos, os cheiros e os sons que nos levam ao encontro do paraíso que jamais é recuperado, a não ser por meio da memória.
E por falar em algo que nos leva de volta à infância, descobri, há dias, a importância de eu ter uma moringa em casa. No supermercado, nem pestanejei quando vi três na prateleira ao lado de alguns filtros, também de barro. Com duas, presenteei minhas tias; uma ficou em minha casa. Por que "cargas d'água" resolvi atribuir tanta importância a uma moringa?, alguém pode perguntar. Porque, com ela, voltei rapidamente à minha infância, um dos muitos paraísos que perdemos vida afora.
Com a moringa, veio a lembrança de uma talha que havia na casa de uma vizinha, D. Pequena, uma senhora importantíssima em minha vida em fins da década de 60 e início da de 70. Para quem não sabe, talha é uma espécie de filtro, mas sem as velas. A diferença entre ela e a moringa, além do tamanho, é claro!, é que a talha tem torneirinha. Acho que é isso...
Na casa dessa senhora, que ficava ao lado da minha, pude ver, certa vez, além da talha e de outros objetos emblemáticos para mim, uma galinha e seus pintinhos. Que lembrança maravilhosa! Sobre as cinzas que ela retirara do fogão à lenha e que estavam no terreiro, encostadas a uma das paredes de tábua da cozinha, havia os ovos que “goraram”, como ela mesma teve o cuidado de explicar à criança curiosa que eu era. Deles, como ela 'me' dissera, não sairiam pintinhos. Tinham, portanto, de ser jogados fora. Lembro, claramente, que eles eram muito brilhosos. Imediatamente, quis saber (que curiosidade!) o porquê de tanto brilho:
 - Por que todo esse brilho nos ovos?, perguntei. 
 - Porque a galinha ficou deitada sobre eles durante 21 dias. O contato com a pele quente e as penas acabou dando esse “lustro” aos ovos.
Pronto! A resposta ‘me’ satisfez imediatamente. A senhora foi além: disse-me que o “choco” é uma espécie de febre da galinha, por isso a pele quente (é lógico que, antes, eu também já havia perguntado sobre o porquê da pele quente). Daí em diante, não sosseguei enquanto não consegui “criar galinhas”... e nos lugares mais improváveis. No terraço de minha casa, por exemplo, tivemos de improvisar um galinheiro. Dava um trabalho do cão,  uma vez que, durante o dia, elas tinham de ser soltas (precisavam "mariscar", como diziam meus vizinhos); à noite, voltavam para dormir... subindo escada e tudo. Deus meu! Galinha morando em cobertura! Um terreno que tínhamos em frente à nossa casa também abrigou – e durante muito tempo – uma boa criação.
 Até hoje, essas imagens da criação de galinhas - nossas e de D. Pequena - estão em mim, muito fortes e constantes. Já disse inúmeras vezes, e continuo a repetir, uma velha cantilena: quando chegar a hora (e espero que não demore muito!), baterei em retirada. Vou procurar um cantinho com muito verde, muita água de cachoeira, horta e criação de galinhas. Lá, em meu “paraíso particular”, meu “vilarejo”, deitarei no horário em que as galinhas se deitarem e, bem cedo, estarei de pé, feito um monge pronto para as meditações. Preciso desse autoexílio. O cansaço da cidade já chegou. Não aguento mais trânsito, não aguento mais tumulto, não aguento mais muita gente.
Voltemos à infância: por causa da tal moringa que encontrei no supermercado, lembrei-me também do “Moringueiro” – inevitável! - um senhor que, dizem, morreu bem depois dos cem anos. Ele era uma dessas figuras que fazem parte da história das cidades mundo afora e que estão atreladas à infância de toda criança. Em minha cidade não foi diferente. Que marcante a figura do Moringueiro. Com seu passo bastante desengonçado, eu o via sempre tombando para a frente. A impressão que eu tinha, quando pequeno, é de que, mais cedo ou mais tarde, ele tombaria mesmo, tamanho era o “desengonçar” daquele senhor que toda a cidade conhecia.
Além do “Moringueiro”, impossível esquecer uma mendiga que, com as mãos, por meio de gestos delicados, fazia desenhos “no ar”. Nunca entendi – e não era para entender mesmo! – o que ela tanto “desenhava”. Eta imagem difícil de ser apagada! Todos diziam que ela sofria com problemas mentais. E o que mais chamava minha atenção não era o fato de ela ter ou não problemas mentais, mas a constatação de que ela era muito misteriosa, diferente, elegante. Que nobreza!
Puxando mais ainda o fio da lembrança, não posso esquecer, além dessas figuras imprescindíveis à história de uma cidade e à infância de todas as crianças, as brincadeiras chamadas infantis. Hoje, infelizmente, boa parte desapareceu. O que mais vejo por aí são crianças conectadas o tempo todo a algum aparelhinho eletrônico, ouvindo o que chamam de “som”. Música é diferente. Pena mesmo ver a criançada assim, tão alienada e sem infância, sem paraíso. Quando fui criança, havia o que, em tempos atuais, muitos desconhecem: o tempo das brincadeiras. Havia tempo para tudo: para soltar pipa (ou empinar papagaio); jogar boleba (ou bola de gude) e futebol; “brincar de pique”, como dizíamos, “bandeirinha” ou "pé-na-lata (pé na lata)"; andar em carrinho de “rolimã” (descendo ruas íngremes ou arrebentando as calçadas de casa mesmo)... Ih, eram muitas as brincadeiras.Tempo para parar de brincar? Decididamente não havia. Não raro, anoitecia e ainda existia muito fôlego para a meninada continuar nas brincadeiras. Um dia com apenas 24 horas não dava para nada. Tive a sorte de morar em um bairro de classe média baixa, com poucas casas e muitos terrenos baldios. Era nestes que as brincadeiras rolavam soltas.
Às vezes, quando não era possível brincar na rua, em casa, uma de minhas brincadeiras preferidas era inventar que uma folha seca (que ficava emborcada e parecia uma 'canoinha') de mexeriqueira e pequenos grãos de painço eram uma galinha e seus pintinhos. Olhe aí! As galinhas de D. Pequena não saíam de mim. Apesar de ser bem difícil descrevê-la, essa brincadeira consistia no seguinte: com as mãos, eu rasgava a folha (da metade para trás) seca da mexeriqueira, até que fossem criados vários filetes, o que lembrava o rabo de uma galinha "choca", que, quando aberto, é semelhante a um leque. Os pintinhos eram os grãos redondinhos do painço. Todos os pintinhos ficavam ao redor dessa "galinha" e sobre uma mesa de cimento onde minha mãe espalhava doce. Meu Deus! Como era bom brincar assim... Como foi bom ser criança!
É... mas, na infância, nem tudo eram flores, como dizem. Havia, claro!, os remédios. "Emulsão Scott (ou de Scott)", remédio à base de "óleo de fígado de bacalhau", era o mais terrível e temido de todos. Ninguém suportava aquilo. Para eu conseguir bebê-lo, era necessário tapar o nariz. E a ânsia de vômito que dava? Difícil esquecer o desenho do rótulo: um homem com um bacalhau nas costas. Como eu o odiava! E todas as crianças da época tinham de tomar esse bendito remédio. Lembro-me de primos, colegas de escola e vizinhos, por exemplo, que também tomavam... e tinham a mesma ojeriza que eu. Hoje, desconfio de que todas as mães daquela época queriam que nos tornássemos "um" Paulo Zulu. Não deu! Muitos ficaram raquíticos mesmo. É esquisito constatar, mas até que havia remédio legal. O "Biotônico Fontoura" era ótimo! Gostosinho mesmo. Dava vontade de tomar baldes e mais baldes, mas, infelizmente, só uma colherzinha era permitida.
Pois é, de tudo isso, ficaram, hoje, apenas as recordações. As lembranças de um tempo maravilhoso para qualquer um. Ficou em mim um menino curioso e "respondão", como dizia minha mãe. Mas ficou, acima de tudo, um menino amoroso e que chora à toa, como agora. Um menino que insiste em continuar sentindo o cheiro do Leite de Colônia e sonhando com as galinhas da D. Pequena.
 
                                          O VELHO DO ESPELHO
Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto...é cada vez menos estranho...
Meu Deus, Meu Deus...Parece
Meu velho pai - que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar - duro - interroga:
"O que fizeste de mim?!"
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga...Que importa? Eu sou, ainda,
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!-
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...

Fonte: QUINTANA, Mario. 80 anos de poesia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Globo,
1987.
  
BRINCAR NA RUA

Tarde? 
O dia dura menos que um dia.
O corpo ainda não parou de brincar
e já estão chamando da janela:
É tarde.

Ouço sempre este som: é tarde, tarde.
A noite chega de manhã?
Só existe a noite e seu sereno?

O mundo não é mais, depois das cinco?
É tarde.
A sombra me proíbe.
Amanhã, mesma coisa.
Sempre tarde antes de ser tarde.

Fonte: ANDRADE, Carlos Drummond de. Boitempo I. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1992.

ORFANDADE

Meu Deus
me dá cinco anos
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta,
me dá um Natal e sua véspera,
o ressonar das pessoas no quartinho.
Me dá a negrinha Fia para eu brincar,
me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dá a mão, me cura de ser grande,
ó meu Deus, meu pai,
meu pai.

Fonte: PRADO, Adélia. Bagagem. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986.


A ARTE PARA AS CRIANÇAS

Ela estava sentada numa cadeira alta, na frente de um prato de sopa que chegava à altura de seus olhos. Tinha o nariz enrugado e os dentes apertados e os braços cruzados. A mãe pediu ajuda:
Conta uma história para ela, Onélio - pediu – . Pediu - Conta, você que é escritor...
E Onélio Jorge Cardoso, esgrimindo a colher de sopa, fez seu conto:
Era uma vez um passarinho que não queria comer a comidinha. O passarinho tinha o biquinho fechadinho, fechadinho e a mãezinha dizia: “Você vai ficar anãozinho, passarinho, se não comer a comidinha”. Mas o passarinho não ouvia a mãezinha e não abria o biquinho...
E então a menina interrompeu:
Que passarinho de merdinha – opinou.

Fonte: GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Tradução de Eric Nepomuceno. 4ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1995.

DESEXPLICAÇÃO

Língua de criança é a imagem da língua primitiva.
Na criança fala o índio, a árvore, o vento.
Na criança fala o passarinho
O riacho por cima das pedras soletra os meninos.
Na criança os musgos desfalam, desfazem-se.
Os nomes são desnomes.
Os sapos andam na rua de chapéu.
Os homens se vestem de folhas no mato
A língua das crianças conta a infância em tatibitati e gestos.

Fonte: BARROS, Manoel de. Poeminhas pescados numa fala de João.
Rio de Janeiro. São Paulo:

Record


MINHA INFÂNCIA
(Freudiana)

Éramos quatro as filhas de minha mãe.
Entre elas ocupei sempre o pior lugar.
Duas me precederam – eram lindas, mimadas.
Devia ser a última, no entanto,
Veio outra que ficou sendo a caçula.

Quando nasci, meu velho Pai agonizava,
logo após morria.
Cresci filha sem pai,
secundária na turma das irmãs.

Eu era triste, nervosa e feia.
Amarela, de rosto empalamado.
De pernas moles, caindo à toa.
Os que assim me viam – diziam:
“ – Essa menina é o retrato vivo
do velho pai doente”.
Tinha medo das estórias
que ouvia, então, contar:
assombração, lobisomem, mula-sem-cabeça.
Almas penadas do outro mundo e do capeta.
Tinha as pernas moles
e os joelhos sempre machucados,
feridos, esfolados.
De tanto que caía.
Caía à toa.

Caía nos degraus.
Caía no lajedo do terreiro.
Chorava, importunava.
De dentro a casa comandava:
“ – Levanta, moleirona.”

Minhas pernas moles desajudavam.
Gritava, gemia.
De dentro a casa respondia:
“Levanta, pandorga.”

Caía à toa...
nos degraus da escada,
no lajedo do terreiro.
Chorava. Chamava. Reclamava.
De dentro a casa se impacientava:
“ – Levanta, perna-mole”.

E a moleirona, pandorga, perna-mole
se levantava com seu próprio esforço.

Meus brinquedos...
Coquilhos de palmeira.
Bonecas de pano.
Caquinhos de louça.
Cavalinhos de forquilha.
Viagens infindáveis...
Meu mundo imaginário
mesclado à realidade.

E a casa me cortava: “menina inzoneira!”
Companhia indesejável – sempre pronta
a sair com minhas irmãs,
era de ver as arrelias
e as tramas que faziam
para saírem juntas
e me deixarem sozinha,
sempre em casa.

A rua... a rua!...
(Atração lúdica, anseio vivo da criança,
mundo sugestivo de maravilhosas descobertas)
- proibida às meninas do meu tempo.
Rígidos preconceitos familiares,
normas abusivas de educação
- emparedavam.

A rua. A ponte. Gente que passava,
o rio mesmo, correndo debaixo da janela,
eu via por um vidro quebrado, da vidraça
empanada.

Na quietude sepulcral da casa,
era proibida, incomodava, a fala alta,
a risava franca, o grito espontâneo,
a turbulência ativa das crianças.

Contenção... motivação... Comportamento estreito,
limitando, estreitando exuberências,
pisando sensibilidades.
A gesta dentro de mim...
Um mundo heroico, sublimado,
superposto, insuspeitado,
misturado  à realidade.

E a casa alheada, sem pressentir a gestação,
acrimoniosa repisava:
“ – Menina inzoneira!”
O sinapismo do ablativo
queimava.

Intimidada, diminuída. Incompreendida.
Atitudes impostas, falsas, contrafeitas.
Repreensões ferinas, humilhantes.
E o medo de falar...
E a certeza de estar sempre errando...
Aprender a ficar calada.
Menina abobada, ouvindo sem responder.

Daí, no fim da minha vida,
esta cinza que me cobre...
Este desejo obscuro, amargo, anárquico
de me esconder,
mudar o ser, não ser,
sumir, desaparecer,
e reaparecer
numa anônima criatura
sem compromisso de classe, de família.

Eu era triste, nervosa e feia.
Chorona.
Amarela de rosto empalamado,
de pernas moles, caindo à toa.
Um velho tio que assim me via
- dizia:
“ – Esta filha de minha sobrinha é idiota.
Melhor fora não ter nascido!”

Melhor fora não ter nascido.
Feia, medrosa e triste.
Criada à moda antiga,
- ralhos e castigos.
Espezinhada, domada.
Que trabalho imenso dei à casa
para me torcer, retorcer,
medir e desmedir.
E me fazer tão outra,
diferente,
do que eu deveria ser.
Triste, nervosa e feia
Amarela de rosto empapuçado.
De pernas moles, caindo à toa.
Retrato vivo de um velho doente.
Indesejável entre as irmãs.

Sem carinho de Mãe.
Sem proteção de Pai...
- melhor fora não ter nascido.

E nunca realizei nada na vida.
Sempre a inferioridade me tolheu.
E foi assim, sem luta, que me acomodei
na mediocridade de meu destino.

Fonte: CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 13ª ed. Rio de Janeiro: Global Editora, 1986.


O ECO

O menino pergunta ao eco
onde é que ele se esconde.
Mas o eco só responde: "Onde? Onde?"


O menino também lhe pede:
"Eco, vem passear comigo!"

Mas não sabe se o eco é amigo
ou inimigo.

Pois só lhe ouve dizer:
"Migo!"

Fonte: MEIRELES, Cecília. Poesia completa – vol. II. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

“(...) Que a vida não tinha cura, o tempo me ensinou, e mais tarde. Na infância o calendário fora inventado para marcar o Natal, a Semana Santa, as férias da escola, os aniversários. Os dias deslizavam preguiçosos, repetindo manhãs e tardes, entremeadas por serenas estações. Impossível para uma criança viver a lucidez da ferida que se abre ao nascer, e não há bálsamo capaz de cicatrizá-la vida afora. Nascer é abrir-se em feridas. (...)

Fonte: QUEIRÓS, Barlotomeu Campos de. Vermelho amargo. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
 

ANTES QUE ELAS CRESÇAM
Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos. É que as crianças crescem. Independentes de nós, como árvores tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.
Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente. Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade, que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.
Onde é que andou crescendo aquela danadinha, que você não percebia? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal ou escola experimental?
Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins, cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno cio, lindas potrancas.
Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros ou, então, com a suéter amarrada na cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas não tem jeito, é o emblema da geração.
Pois ali estamos, depois do primeiro e do segundo casamento, com essa barba de jovem executivo ou intelectual em ascensão, as mães, às vezes, já com a primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas das notícias e das ditaduras das horas. E elas crescem, meio amestradas, vendo como redigimos nossas teses e nos doutoramos nos nossos erros.
Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.
Longe já vai o momento em que o primeiro mênstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das discotecas e festas, quando surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do balé, da cultura francesa e inglesa. Saíram do banco de trás e passaram para o volante das próprias vidas. Só nos resta dizer “bonne route, bonne route”, como naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha lhe oferece o primeiro jantar no apartamento dela.
Deveríamos ter ido mais vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, pôsteres e agendas coloridas de pilot. Não, não as levamos suficientemente ao maldito drive-in, ao Tablado para ver Pluft, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.
Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo nosso afeto.
No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, disputa pela janela, os pedidos de sorvetes e sanduíches, cantorias infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de campo com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse exílio dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos. Agora é hora dos pais nas montanhas terem a solidão que queriam, mas, de repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes.
O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isto os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.
Por isto é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.
 Fonte: SANT’ANNA, Affonso Romano de. Fizemos bem em resistir: crônica selecionadas. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

TEMPO DE MENINO
Pedro Luís

Alô, Tijuca
Você tá no cancioneiro
Desde os sambas de terreiro
Até o pop nacional.
Tim Maia,
Jorge Ben, Erasmo Carlos,
O Aldir e o Roberto fazem seu manancial.
Buscar a redenção
Por meio da canção
É mais que obrigação, é possibilidade!
Pro bairro tradição,
História da nação,
Vir contrabalançar
O peso da bela e terrível cidade.
Divino
Insano
Tempo de menino é muito mais humano.
Divino
Insano
Tempo de menino é muito mais suburbano.
Desde os cafezais,
Imemoriais,
De tantos barões que batizaram ruas
Aos tempos de após,
Já industriais,
Fios que teceram as histórias tuas.
Fábrica apitou:
"moleque vai pra escola";
Lambe-lambe registrou
Rei-rainha, pião, bate-bola.
Pique, chafariz,
Volta de charrete.
E no carnaval do asfalto, beijo e confete.
Divino
Insano
Tempo de menino é muito mais humano.
Tempo de menino é muito mais suburbano
Divino
Insano
Divino
Insano

Fonte: http://letras.mus.br/pedro-luis/tempo-de-menino/


TEMPO DE MENINO
Edgar Ferreira

No meu tempo de menino
Eu não passei vida boa
Não freqüentava a escola
Só porque andava à toa
E pra não perder meu tempo
Eu ficava na esquina
No jogo de cara e crôa
Cara e crôa cara e crôa
Cara e crôa cara e coroa

Naquele tempo existia
Derréis, vintém e tostão
Eu soltava o papagaio
E jogava meu pião
No domingo de manhã
Lá no sítio da Mangueira
Eu caçava passarinho
Armando baleeira
Baleeira, baleeira
Baleeira, atiradeira

Eu que fui menino pobre
E me criei na estrada
Carreguei frete na feira
Joguei lebre na calçada
Levei bilhete do rapaz pra namorada
Só não fui guia de cego
Ai ai oi oi
Mas fui craque na pelada

Na pelada, na pelada
Na pelada, na pelada

Fontes:
CD: “Maravilha de cenário”, Martinho da Vila, (P) 1975 (RCA Victor), © 2003 (BMG Brasil Ltda.), 74321982932.


 portinari | MENINOS SOLTANDO PIPAS

“Meninos soltando pipas” (Portinari)
http://www.flogao.com.br/portinari/11125199