sábado, 1 de novembro de 2014

ITHAMARAVILHA


Foto: Fábio Brito

ITHAMARAVILHA
Por Fábio Brito
Ao amigo Marcos Lúcio, também “kooraxnático”.

“Se é verdade que cada música tem sua alma, essa admirável cantora tem o dom de criar uma voz que parece ter nascido com a alma da própria canção.”                               Armando Nogueira

Sofitel, Rio de Janeiro, início da primavera e uma lua prateada saindo do mar de Copacabana. “Taí” o cenário ideal para mais um ‘show’ da temporada de lançamento de "Ithamara Koorax - Sings Getz/Gilberto", no Horse's Neck, da diva Ithamara Koorax, que, há anos e indisputavelmente, ocupa o posto de melhor cantora do Brasil e uma das melhores do mundo. Quando Jaime Aklander (contrabaixo) e Lulu Martin (teclados), os músicos que a acompanham, deram os primeiros acordes, foi impossível não lembrar Fernando Pessoa: “Ah, toca suavemente / como a quem vai chorar / qualquer canção tecida / de artifício e luar (...)”.
            E a primeira canção da noite, “tecida de artifício e luar”, foi exatamente “Fotografia”, do maestro Tom Jobim, um dos mais importantes músicos que o mundo já viu/ouviu, e Vinicius de Moraes, nosso eterno “Poetinha”: “Eu, você, nós dois / aqui neste terraço à beira-mar / (...) E uma grande lua saiu do mar (...)”. Com sua letra carregada de belas e expressivas imagens, essa canção, uma de minhas preferidas (ao lado de “Corcovado”) da extensa, sofisticada e nobre safra jobiniana, ganhou de Ithamara uma interpretação leve, delicada, como penso que deve ser a leitura desse clássico. Foi o tapete vermelho de que o espetáculo precisava. Por ele, desfilou um repertório irretocável a cargo do extraordinário produtor Arnaldo DeSouteiro. A noite enluarada prometia muito mais que um espetáculo nobre e refinado: prometia coração na garganta.
             “All of me / Disse alguém” (Seymour Simons / Gerald Marks – Haroldo Barbosa) foi a segunda canção da noite. Já gravada por Billie Holiday, Frank Sinatra e João Gilberto, é daquelas canções que não saem de nós, que não nos deixam. Sempre que a ouço, principalmente nos ‘shows’ da Ithamara, fico cantarolando a melodia dias e dias seguidos. Ithamara parece acarinhar e acariciar as palavras e as notas musicais. Incrível sua intimidade com o canto. Ouvindo-a, parece facílimo cantar.
            “Un homme et une femme” (Francis Lai / Pierre Barough ) é a faixa que abre a edição coreana do Serenade in blue, “disco-cartão-postal” de Koorax no mercado internacional. Foi o terceiro presente inebriante da noite e é mais um clássico que Ithamara não esquece: está sempre presente em suas apresentações.
            “Fly me to the moon” (Bart Howard), do repertório do Sinatra, foi a próxima canção e uma das ótimas surpresas da noite. Foi a primeira vez que a ouvi com nossa diva e, como sempre, ela deixou a alma a serviço da canção. Eis aí mais uma prova cabal de que não basta o grande cantor exibir uma técnica impecável: é preciso interpretar, o que só é possível quando o sentimento não fica de lado, esquecido num canto qualquer do palco ou do estúdio.
E, depois de um clássico de Sinatra, os olhos azuis mais famosos da música americana, Koorax nos traz “Desafinado” (Tom Jobim / Newton Mendonça), que é um deslumbre. Composta sobre notas “erradas” (não esqueçam as aspas!), é um presente para qualquer intérprete, em especial para aqueles que estão numa região sagrada da música, caso de Ithamara, Elis e Elizeth, por exemplo.
“Só danço samba”, mais uma do Tom, nosso “maestro soberano”, tem uma das letras mais simples do Vinicius, mas o balanço é irresistível. Ithamara, com a segurança que lhe é peculiar, faz o que quer com a canção. Aliás, ela faz o que quer com qualquer canção. Às vezes, vira-as do avesso e dá aulas nada tradicionais de interpretação. Qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento musical e de sensibilidade, ao ouvir Koorax, sabe que está diante de uma cantora/intérprete única.
“Vivo sonhando” é mais uma do Tom Jobim, mas só ‘dele’. Foi a segunda novidade da noite, depois de “Fly me to the moon”. Eu já era apaixonado por essa canção... e ouvi-la com Ithamara só fez aumentar – e muito! – a paixão. Viver sonhando “mil horas sem fim” é só o que quero, mas não dá para ser sem trilha sonora, que já está escolhida: Ithamara Koorax.  
 “Recado Bossa Nova” (Djalma Ferreira / Luís Antonio), de “Wave 2001 – Bossa Nova Songbook”, é sempre muitíssimo bem-vinda. Ouço-a sempre. “Saudade, meu moleque de recado” já entrou para a galeria dos versos mais bonitos da MPB. Se, porventura, Raul Corrêa da Silva quiser lançar uma segunda edição de “MPB – versos para sua prosa”, sugiro-lhe incluir essa bela metáfora, que, na voz da Ithamara, ganha ‘cor e textura’ excepcionais.
“Ela é carioca” (Tom Jobim / Vinicius de Moraes) é sempre deslumbrante. Que canção leve! Ithamara, de fato, incorpora-a quando a interpreta. Essa moça, nascida em Niterói, transforma-se, vez ou outra, numa carioca da gema. Descontração é a senha para uma interpretação perfeita de mais um clássico de nossa rica e extensa MPB.
“Goin’ out of my head” (Teddy Randazzo / Bobby Weinstein), que vem logo depois da descontração de “Ela é carioca”, é uma canção desafiadora. Só Ithamara para captar, com perfeição, as sutilezas dessa música. Mais um gol de bicicleta de nossa diva.
“Samba de verão” (Marcos Valle / Paulo Sérgio Valle) é mais uma que requer descontração de quem se atreve a interpretá-la. Não se trata, aqui, de enxergar descontração como simples brincadeira. É bom que se brinque, sim, mas levando a sério a brincadeira, como dizem.  
“Never can say Goodbye” (Clifton Davis), de Go to be real, é mais um momento sublime do espetáculo, assim como “Nice Work if you can get it” (George / Ira Gershwin), esta do CD “Mario Castro Neves & Samba S. A. – On a clear Bossa day”, de 2004, obra primorosa que tem Ithamara e Ana (Leu)zinger nos vocais. Estão aí duas canções extraordinárias que ganham roupagem nova na voz de nossa diva: um tubinho preto e um fio de pérolas no pescoço. Querem algo mais chique? Impossível!  
“On a clear day” (Burton Lane / Alan Jay Lerner), também do disco de Castro Neves, é outro momento primoroso do ‘show’: vê-se perfeitamente que nossa Ithamara é, sem dúvida, da escola de Ella Fitzgerald, em que o ritmo e a musicalidade são insuperáveis.  
“O grande amor” (Tom Jobim / Vinicius de Moraes), a música favorita de Stan Getz, é mais uma que chegou para brindar os cinquenta anos de lançamento do clássico “Getz / Gilberto – Stan Getz, João Gilberto”. E chegou em grande estilo: Ithamara, numa interpretação ‘pra’ lá de impressionante, faz a escansão de todos os versos. A canção desliza com muita delicadeza em sua voz. No momento em que Ithamara a interpretava, a lua parou para ouvi-la. Naquele instante, cumpriu-se, para nós, um dos mais belos e poéticos ensinamentos de Caetano: “Lua lua lua lua / Por um momento / Meu canto contigo compactua”. A lua rendeu-se ao belo e altaneiro canto.
“Up, up and away” (Jimmy Webb), uma das faixas mais conhecidas e badaladas do CD “Got to be Real”, é sucesso em mais de 30 países. Dizer mais o quê? Que Ithamara transformou essa canção, originalmente um “jingle”, num clássico.
E por falar em clássico, eis mais uma que já está na lista das mais belas canções eternizadas na voz de Koorax: “Valsa de Pangrati” (Antenor Bogéa), do CD Renaître, do próprio Bogéa, lançado em 2013. A essa canção, uma das mais aplaudidas do ‘show’, Ithamara, mais uma vez, entregou-se como nunca.
“Aos pés da santa cruz” (Marino Pinto / Zé da Zilda) ganhou gravações magistrais: do Orlando Silva, o cantor preferido do João Gilberto, em 1941, do próprio João Gilberto e da Ithamara, que sempre a interpreta em seus ‘shows’. Ouvi-la é sempre um prazer que se renova.
“Zum-zum” (Fernando Lobo / Paulo Soledade) é uma marcha que, em 1951, fez sucesso na voz de Dalva de Oliveira e homenageou Carlos Eduardo de Oliveira, carnavalesco e comandante da Panair, falecido um ano antes em decorrência de um acidente de avião. É comovente ver as pessoas, nos ‘shows’, acompanharem Ithamara. Prova de que a música, quando é boa, não pode ser datada: é atemporal, assim como a boa literatura.
 “Que maravilha”, uma das canções mais conhecidas do Benjor, quando ele ainda assinava Jorge Ben, é sempre interpretada em clima de muita descontração, mas sempre com uma competência ímpar. É impossível não mudarmos a letra do refrão quando a ouvimos com Koorax: “Ithamaravilha”!
“Bim bom”, do mestre João Gilberto, é mais um item essencial nos ‘shows’ de Ithamara, assim como “Can’t take my eyes off of you” (Bob Crewe / Bob Gaudio), que sempre recebe o “auxílio luxuoso” do público. Não há quem fique indiferente a uma canção tão arrebatadora.
“Ária na corda sol da suíte nº 3”, de Johann Sebastian Bach, fecha o espetáculo e sempre ‘me’ deixa muito comovido. Chego às lágrimas, inclusive. Nessa canção, que estará em seu próximo disco, Ithamara vai a regiões a que só os iluminados conseguem ir. Trata-se de um espetáculo à parte. Momento único e de beleza rara nos ‘shows’ dessa diva que o mundo aplaude e reverencia.
De Chiquinha Gonzaga a Ithamara Koorax, somos muito bem representados em termos de vozes femininas, com exceção, é claro!, de umas “cantantes” inexpressivas e sem voz que “apareceram” há bem pouco tempo e não saem da mídia.
Surgida no início da década de 90 com o disco “It(h)amara Koorax ao vivo” (com Maurício Carrilho e Paulo Malaguti), lançado em 93 e gravado um ano antes, nossa diva atingiu uma maturidade artística como nenhuma outra de sua geração. Dona de um currículo invejável, com um trabalho sério e seguro que já chegou aos quatro cantos do mundo, Koorax contribui deveras para a nobreza da grande Música (com inicial maiúscula mesmo). Para avaliarmos a real dimensão de sua obra, basta que observemos sua discografia impecável e suas apresentações em que a excelência do canto e a qualidade do repertório preponderam. Se quisesse, nossa diva poderia até cantar o que ditam as regras do mercado. Poderia até estar dando pulinhos no palco e cantando algo inclassificável e medíocre. No entanto, ela prefere “seguir marginal”, como diria Elis Regina. Ela não se acovarda diante de um mercado perverso em que o vulgar e o grotesco dão a tônica. Prefere, como poucos, seguir caminhos pouco ortodoxos a vender-se ao sucesso fácil e descaracterizar sua carreira.  Com o talento e a altivez dos grandes gênios, Ithamara Koorax é essencial.

Ferido pela sua arte o artista sonha e se imola por nós. Tocha acesa num palco, pastagem que se estende como uma tela de cor ou folha que voa no vento da música, ele abre caminho para os nossos sonhos. O artista arde por nós e nisso se consome e se refaz, sagrada salamandra.
No escuro da plateia respiramos com o seu pulmão, sobrevivemos com seu sangue, e com seu coração lutamos nossas guerras pessoais: ele se exaure enquanto nós nos refazemos, e saímos para a rua, para o conforto das casas, ainda conduzidos pela sua vara de condão.
Ele, despedaçado e depois refeito, recebe aplausos e abraços, descansa em seu camarim e volta para a sua vida cotidiana - andando cuidadosamente para que não se percebam essas asas em seus ombros, e essas nuvens debaixo de seus pés.

Fonte: LUFT, Lya. Secreta mirada. São Paulo: Mandarim, 1997.
VIVO SONHANDO
Tom Jobim
Vivo sonhando
Sonhando mil horas sem fim
Tempo em que vou perguntando
Se gostas de mim
Tempo de falar em estrelas
Falar de um mar
De um céu assim
Falar do bem que se tem, mas você não vem
Não vem
Você não vindo
Não vindo, a vida tem fim
Gente que passa sorrindo, zombando de mim
E eu a falar em estrelas, mar, amor, luar
Pobre de mim, que só sei te amar.
Fonte: Songbook Antonio Carlos Jobim, vol. 2, Lumiar Discos, 1996.

ELA É CARIOCA
Tom Jobim / Vinicius de Moraes
Ela é carioca, ela é carioca
Basta o jeitinho dela andar
E ninguém tem carinho assim para dar
Eu vejo na luz dos seus olhos
As noites do Rio ao luar
Vejo a mesma luz
Vejo o mesmo céu
Vejo o mesmo mar
Ela é o meu amor só me vê a mim
A mim que vivi para encontrar
Na luz do seu olhar a paz que sonhei
Só sei que sou louco por ela
E pra mim ela é linda demais
E além do mais ela é carioca
Ela é carioca.
Fonte: Songbook Vinicius de Moraes, vol. 3, Lumiar Discos, 1993.

"Resta essa vontade de chorar diante da beleza." (Vinicius de Moraes)

ALGUMA VOZ
Dori Caymmi / Paulo César Pinheiro

Quando eu ouço a voz da fonte
Não sei que canto que encerra
Parece o gozo do monte
Dentro do ventre da terra

Quando eu ouço a voz do rio
Me lembro de passarinho
Um é livre, outro é vadio
Cantando pelo caminho

Quando eu ouço a voz do vento
Não acerto nem me engano
Não é mágoa nem alento
É cantiga de cigano

Quando eu ouço a voz do mar
Tanto é mansa quanto ataca
Não sei quando é de ninar
Nem sei quando é de ressaca

Quando eu ouço alguma voz
Na janela do horizonte
De alguém cantando por nós
É Deus cantando de fronte

Fonte: CD "Meus quintais", Maria Bethânia, Biscoito Fino, BF 304-2, 2014.