domingo, 31 de janeiro de 2016

ELIS, QUE SAUDADE DE VOCÊ!


COMO NOSSOS PAIS
Belchior

Não quero lhe falar, meu grande amor
Das (de) coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
E eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei que qualquer canto 
É menor do que a vida
De qualquer pessoa
Por isso, cuidado, meu bem, há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal está fechado pra nós,
Que somos jovens
Para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço, o seu lábio e a sua voz
Você me pergunta pela minha paixão
Digo que estou encantado(a) como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
O cheiro de nova estação
Eu sinto tudo na ferida viva do meu coração
Já faz tempo eu vi você na rua, cabelo ao vento, gente jovem reunida
Na parede da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais
Minha dor é perceber que, apesar de termos feito tudo o que fizemos, 
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como os nossos pais
Nossos ídolos ainda são os mesmos
E as aparências não enganam, não
Você diz que, depois deles, não apareceu mais ninguém
Você pode até dizer que eu "tô" por fora ou então que eu "tô" inventando
Mas é você, que ama o passado e que não vê
Mas é você, que ama o passado e que não vê
Que o novo sempre vem
Hoje eu sei que quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude
Está em casa, guardado por Deus, contando vil metal
Minha dor é perceber que, apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos
Nós ainda somos os mesmos e vivemos
Como os nossos pais


ELIS, QUE SAUDADE DE VOCÊ!
Por Fábio Brito

Quando achei que nada mais haveria a ser acrescentado à biografia de Elis Regina, eis que me chega “Elis: uma biografia musical”, de Arthur de Faria, lançado recentemente¹. Longe de a obra ser “mais do mesmo”, como afirmou certo jornal.
Para a alegria de todos os “elisófilos”, como eu, a Pimentinha continua incomparável, imbatível e revelando-nos muitas novas histórias e novas canções. Sim, novas canções. E é fácil explicar: sempre que ouvimos uma canção interpretada por ela, mesmo que a tenhamos ouvido centenas, milhares de vezes, vamos descobrir alguma novidade e alguma sutileza não notadas em audições anteriores. A verdade é esta: Elis vive. E vive intensamente. Ponto. Elis se reinventa. Renova-se sempre. Desconheço outra cantora tão viva quanto ela. Poderíamos até pensar em Carmen Miranda, mas não é o caso. A imagem de Carmem ainda é bem presente, mas “suas” canções não tocam mais, a não ser quando alguém as regrava. Elis, ao contrário, continua tocando, sendo reverenciada e sendo referência para inúmeras cantoras (aliás, ela deveria ser a referência de todas as cantoras, para que não tivéssemos de tapar os ouvidos toda vez que alguém que “pensa que canta” ‘se’ atrevesse a cantar). Elis continua cantando “cada vez melhor”, como afirmou Fernanda Montenegro. Sempre que apresento Elis a alguém sensível da nova – ou da novíssima – geração, sinto que fiz um bem enorme. Ou, como diriam alguns, sinto que salvei uma alma. Vamos ao livro!  
Já de saída, na apresentação da obra, Maria Luiza Kfouri vai logo dizendo que histórias que agradam em cheio à imprensa “marrom” estão fora da biografia. O foco é o artístico, é a arte de um gênio da raça: Dona Elis Regina Carvalho Costa. Kfouri é certeira ao dizer que o autor, um músico, explica o porquê de Elis, que também “é” um músico, ser uma cantora/intérprete extraordinária. E ele o faz de maneira direta, sem delongas, com um texto claro, preciso. Elis é única por inúmeros motivos já dissecados por pessoas que, de fato, sabem o que é cantar. Não há quem não veja na Pimentinha uma cantora excepcional e ‘a’ considere a melhor de todos os tempos não só aqui no Brasil. Simples assim. A própria Angela Maria, inclusive, de quem Elis se dizia discípula, disse, em entrevista à revista “Contigo”, que Elis foi a cantora mais perfeita que ela já conheceu. Julio Maria, jornalista de “O Estado de São Paulo” e autor da excelente biografia Elis Regina: nada será como antes, disse que os músicos confirmam que, de fato, Elis foi a melhor. Não só os músicos dizem isso, claro, mas como palavra de músico é palavra de músico, bate-se o martelo: o trono é da Pimentinha.  
No livro de Faria, narrados com leveza e inteligência, muitos cantinhos de várias histórias vêm à tona, mas volto a frisar: não se trata de nada que possa agradar à imprensa fajuta, marrom. O assunto, aqui, é música. Um dos mais comoventes desses “cantinhos de histórias” é sobre o primeiro ato do antológico espetáculo “Falso Brilhante”, que ficou em cartaz de dezembro de 1975 a fevereiro de 1977: um filme sobre uma menina que queria pôr o dedo nas estrelas é projetado. Quando ela consegue, afinal, tocar as estrelas, uma luz ilumina o fundo da plateia, de onde sai Elis, vestida como a menina do filme e cantando “No dia em que eu vim me embora”, do Caetano. Segundo Walter Silva, em sua coluna da época no jornal “Folha de S.Paulo”, os espectadores, ao fim do primeiro ato, abraçavam-se e choravam juntos.
Outro caso interessante que está no livro é lembrado por um dos músicos da antiga orquestra do maestro Karl Faust na rádio Gaúcha. No início da década de 60, Elis, ainda uma adolescente, já sabia exatamente que ela era uma cantora de exceção, tanto que, não raro, não gostava dos arranjos criados especialmente para ela. O alemão Faust, já um músico muito respeitado, abandonava imediatamente os tais arranjos se Elis deles não gostasse, e o motivo era muito simples: ela estava com a razão. Não discordavam da baixinha. Os arranjos não eram bons e pronto. Mais uma vez, fica comprovada a genialidade da moça, que tinha “cabeça de músico”, como tantas vezes afirmou Edu Lobo. Só não tocava instrumentos musicais, mas era um músico, como disse Menescal. O mesmo maestro Faust, tempos depois, foi categórico ao dizer que, para ele, Elis era completa. Uma das poucas artistas completas deste mundo. Que outro elogio melhor que esse um artista pode querer?
Lembrando o que disse Zuza Homem de Mello em A era dos festivais, Faria, reportando-se à apresentação de Elis no festival “de Arrastão”, confirma que a Pimentinha foi uma das responsáveis por sacramentar a expressão “defender uma canção”. Dominando totalmente sua arte, ela se apropriava das canções que interpretava. Delas apropriando-se, ou tomando-as para si, era só “defendê-las”. Ninguém fez – ou faz - isso melhor que ela. Não foi só uma vez que ouvi compositores dizerem que, depois que entregavam uma canção para que Elis a gravasse, esqueciam que eles eram os autores, tamanha era a autoridade da artista na arte de recriar. É mais que coautoria! “Na batucada da vida”, canção do Ary Barroso citada por Faria, é um claro exemplo de que Elis era “a dona das canções”. Até sua gravação, em 74, dessa música, todas as regravações buscavam a de Carmen Miranda como referência; depois que Elis passou por ali, sua versão transformou-se na pedra de rumo para todos os cantores que, sem pudores, insistiram em regravar a bela canção do respeitado compositor de “Aquarela do Brasil”. Não houve uma que superasse a da Pimentinha
E por falar em compositores, Faria retoma um ponto importantíssimo já abordado por Julio de Maria e por várias outras pessoas: o nível das canções, no período, na fase, na era “Elis Regina”, melhorou consideravelmente, uma vez que muitos compunham pensando nela, compunham para ela. Porque D. Elis tinha um crivo exigentíssimo, todos buscavam chegar ao máximo, tanto em letra – primordial para ela – quanto em melodia. Elis era uma espécie de “vestibular” concorridíssimo. Eram mais ou menos cem “vestibulandos” por vaga. Todos queriam ser gravados por ela. Se conseguissem, a aprovação era a garantia de uma vaga na mais concorrida universidade de música que havia. Observe, por exemplo, as canções da dupla Bosco/Blanc gravadas por Elis e constate a excelência da produção dos moços.
Mais novidades na obra de Faria? Mais, claro! Uma, em especial, é uma declaração de Rita Lee, que diz ser de Elis a expressão "noviças do vício”, numa tacada certeira em cantoras para as quais cantar bem não importava. Estar na mídia, sim, era o grande “lance”, o grande “barato”. Eis a Pimentinha sempre enxergando muito além. O que se vê hoje? Basta que se observe a maioria dos programas de TV: as “noviças do vício” multiplicam-se espantosamente! Esbanjam “caras e bocas”, rebolados e “pernocas” de fora em programas inclassificáveis. Talento que é bom... nada! Para quê? O público também – a que nível chegamos! – não está interessado em quem canta. A indústria muito menos... e o motivo todos nós já sabemos há tempos: só o que é ruim dá dinheiro! Pronto! 
Outra novidade relatada por Faria diz respeito ao recital que, em fins de 81, Elis e Turíbio Santos estavam preparando com as modinhas de Villa-Lobos, que seriam gravadas para um disco a ser lançado aqui no Brasil e no exterior. Não saiu. Que pena! Santos diz ter ficado fascinado com as lindas interpretações que, infelizmente, só puderam ser ouvidas por ele nos ensaios. Hoje, tanto tempo depois, fico imaginando a riqueza desse disco que não chegou a ser gravado. Hoje, trinta e quatro anos depois de sua despedida, resta-nos a saudade, a imensa saudade dessa cantora/intérprete inigualável. Elis continua muito presente na vida de todos nós. O mito continua intocável. Continuamos “elisófilos” de carteirinha. Continuamos apresentando Elis às novas gerações como a grande dama da MPB de todos os tempos. Da MPM! Salve, salve!

¹ FARIA, Arthur de. Elis - uma biografia musical. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2015. 



"Para a maioria dos cantores, gravar é uma tortura, algo que  demora vários meses. Mas ela tirava de letra. Gravava tudo em duas semanas. E colocava a voz junto com a orquestra e grupo. Isto não era praxe das gravadoras, ela é que peitava para fazer desta forma. Em Londres, ela gravou juntamente com uma orquestra de 44 figuras e, ao final, toda a orquestra se levantou para aplaudi-la. E muitas gravações dela de estúdio eram de primeira. Dificilmente repetia."  

(Roberto Menescal - depoimento extraído do folheto que acompanha a caixa "Elis anos 60" [Universal, 2012]).



RECEITA PARA SER ELIS
Walter Silva, o "Pica-Pau"

Muito simples: primeiro, ter uma certa intimidade com Deus e fazer com que ele lhe consiga um talento igual ao dela. 
Depois, um imenso ouvido aberto às mais variadas formas de informação que, depois de usadas e devidamente deglutidas, deverão ser jogadas fora imediatamente. 
Em seguida, saber usar uma máquina publicitária, sem se dar totalmente a ela, para não desgastar sua imagem. 
É importante, também, ser bem orientada profissionalmente, sem, contudo, ser apenas profissional.
Nós explicamos: cantar onde e quando lhe determina a vontade, ou a inspiração e fazer somente o que gosta.
(...)
Saber sorrir aos mais exigentes padrões, sem contudo  sorrir só e sempre para o público, que é sabido, vai abandoná-la quando você sorrir demais. E nunca fazer com que o patrão pense que você deixa de ser mito quando reivindica. Aliás, reivindicar sempre é outra das exigências pra conseguir atingir e conservar o sucesso. 
Cantar a "onda", sem nunca se dar a ela. 
Não conceder nunca, a não ser quando as concessões sejam apenas suas. Nunca as dos outros. 
(...)
Ler, ler, ler sempre. Ouvir, ouvir, ouvir sempre. 
Ser capaz de, ao mesmo tempo, amar a Deus e ao Diabo, e conseguir ser os dois quando quiser. 
(...)
Enfim, ser realmente divina. 
Elis regina, divina. 
Fácil, não? 

                https://books.google.com.br/books?isbn=8588953056




JARDINS DE INFÂNCIA
João Bosco / Aldir Blanc

É como um conto de fada
Tem sempre uma bruxa pra apavorar
O dragão comendo gente
A bela adormecida sem acordar
Tudo que o mestre mandar 
E a cabra-cega roda sem enxergar

E você se escondeu
E você esqueceu

Pique-pau, cuspe em distância
Pés pisando em ovos, vejam vocês
Um tal de puta-fogueira
Pistolas, morteiros, vejam vocês
Pega malhação de Judas
E quebra-cabeças, vejam vocês

E você se escondeu
E você não quis ver

Olho o bobo na berlinda
Olha o pau no gato
Polícia e ladrão
Tem carniça e palmatória
Bem no teu portão

Você vive o faz-de-conta
Diz que é de mentira
Brinca até cair
Chicotinho tá queimando
Mamãe, posso ir? 

Pique-pau, cuspe em distância
Pés pisando em ovos
Bruxa, dragão
Um tal de pula-fogueira
E a cabra-cega vai de roldão
Pega a malhação de Judas
E um passarinho morto no chão

E você conheceu
E você aprendeu 


O CAVALEIRO E OS MOINHOS
João Bosco / Aldir Blanc

Acreditar na existência dourada do sol
Mesmo que em plena boca
Nos bata o açoite contínuo da noite

Arrebentar a corrente que envolve o amanhã
Despertar as espadas
Varrer as esfinges das encruzilhadas

Todo esse tempo
Foi igual a dormir num navio
Sem fazer movimento
Mas tecendo o fio da água e do vento 

Eu, baderneiro, me tornei cavaleiro
Malandramente, pelos caminhos
Meu companheiro tá armado até os dentes
Já não há mais moinhos
Como os de antigamente


UM POR TODOS
João Bosco / Aldir Blanc

Do ventre chão da terra-mãe
Nasce o herói improvisado 
Querido filho pranteado 
Da fortuna e do acaso

Avante, um por todos 
E todos por um
Ficam das lutas ao longe
Duas medalhas pregadas
Em peitos de bronze 

E as bandeirinhas e as rifas
O foguetório e a fanfarra
Meio velório, meio farra
O sentimento dos teus pares

Heróis dos escolares e das lavadeiras
Ó Deus das moças solteiras
Que rezam ao teu retrato
Sobre a penteadeira

Eu te conheço, sei o preço da fama
E não esqueço que deitei em tua cama
Em teu berço, eu sei teu preço
Eu te conheço, meu oportuno herói 

Eu lavo as mãos
Pôncio, cônscio, pilhado em flagrante
Lavo as mãos e prossigo adiante
Eu por mim mesma, todos por mim
Meu oportuno herói



UM POR TODOS 
(versão que integrou a trilha sonora da novela "O Grito", de 1975)
João Bosco / Aldir Blanc

Do ventre chão da terra-mãe
Nasce o beato improvisado
Querido filho pranteado da fortuna e do acaso
Avante, um por todos
E todos por um
Ficam das lutas de um homem
Bustos de bronze
E histórias que as horas consomem

As bandeirinhas e as rifas
O foguetório e a fanfarra 
Meio velório, meio farra 
O sentimento dos teus pares 
Senhor dos escolares e das lavadeiras
Ó Deus das moças solteiras
Que rezam ao teu retrato sobre a penteadeira

Eu te conheço
Sei o preço da fama e não esqueço
Meu milagroso irmão 

Eu lavo as mãos
Pôncio, cônscio, pilhado em flagrante
Lavo as mãos e prossigo adiante
Eu por mim mesma
Todos por um
Meu milagroso irmão


CAÇA À RAPOSA
João Bosco / Aldir Blanc

O olhar dos cães, a mão nas rédeas e o verde
da floresta
Dentes brancos, cães, a trompa ao longe, o riso
Os cães, a mão na testa
O olhar procura, antecipa
A dor no coração vermelho
Senhorita e seus anéis
Corcéis e a dor no coração vermelho
O rebenque estala, um leque aponta
Foi por lá...

Um olhar de cão, as mãos são pernas
E o verde da floresta
Oh, manhã entre manhãs
A trompa em cima, os cães, nenhuma fresta
O olhar se fecha, uma lembrança afaga o 
coração vermelho
Uma cabeleira sobre o feno afoga o coração vermelho
Montarias freiam, dentes brancos
Terminou...

Línguas rubras dos amantes
Sonhos sempre incandescentes
Recomeçam desde instantes 
Em que os julgamos mais ausentes
Ah! Recomeçar como as colheitas
Como a lua e a covardia
Ah! Recomeçar como a paixão e o fogo
E o fogo, e o fogo...


AGNUS SEI
João Bosco / Aldir Blanc

Faces sob o sol, os olhos na cruz
Os heróis do bem prosseguem na brisa da manhã
Vão levar aos reino dos minaretes
A paz na ponta dos arietes
A conversão para os infiéis

Para trás ficou a marca da cruz
Na fumaça negra vinda na brisa da manhã
Ah, como é difícil tornar-se herói
Só quem tentou sabe como dói
Vencer satã só com orações

Ê-andá, pacatarandá que Deus tudo vê
Ê-andá, pacatarandá que Deus tudo vê
Ê-andá, ê-orá, ê-mandá, ê-matá
Responderei: não!

Dominus domínios, juros além 
Todos esses anos agnus sei que sou também 
Mas, ovelha negra, me desgarrei
O meu pastor não sabe que eu sei
Da arma oculta na sua mão

Meu profano amor eu prefiro assim
À nudez sem véus diante da Santa Inquisição
Ah, o tribunal não recordará dos fugitivos de Shangri-lá
O tempo vence toda ilusão

Ê-andá, pacatarandá que Deus tudo vê...



Amo a música, acredito na melhora do planeta, confio em que nem tudo está perdido, creio na bondade do ser humano e intuo que louca é fundamental. Agora só me faltam "carneiros e cabras pastando solenes no meu jardim". Viver é ótimo!

Elis