domingo, 5 de outubro de 2014

FORA, ALIENADO, E LEVE A FALTA DE OPINIÃO COM VOCÊ




TIPO ZERO
Noel Rosa

Você é um tipo que não tipo
Com todo tipo você se parece
E sendo um tipo que assimila tanto tipo
Passou a ser um tipo que ninguém esquece
(Tipo zero... não tem tipo!)

Quando você penetra no salão
E se mistura com a multidão
Esse seu tipo é logo observado
E admirado todo mundo fica
E o seu tipo não se classifica
E você passa a ser um tipo desclassificado.

Para integrar a opereta "A noiva do condutor", este samba ganhou rotoques na segunda parte e mais uma estrofe.
Fonte: Caixa Noel Rosa pela primeira vez. Velas, 2000.





FORA, ALIENADO, E LEVE A FALTA DE OPINIÃO COM VOCÊ
Por Fábio Brito
Em entrevista à revista CULT nº 182, de agosto de 2013, a filósofa Marilena Chaui, ao falar da “desorganização de uma classe revolucionária” aqui no Brasil, cita Lênin: “Há uma coisa que a burguesia deixou e que nós não vamos destruir: o bom gosto e as boas maneiras”.
Há mais ou menos um mês, lembrei-me dessas “boas maneiras” de que nos falou Lênin quando comecei a observar que alguns carros que trafegam por minha cidade passaram a ostentar um adesivo extremamente grosseiro: “Fora Fulana de tal e leve o partido tal com você”.  Bom, primeiramente, não deveriam ter “tropeçado” na língua. A “Fulana de tal” aí do texto é vocativo e deveria, portanto, estar entre vírgulas. O respeito à língua é primordial, até nas “guerras” mais chinfrins, como essa do adesivo.
E por falar em guerra, vamos lá! Se quer declará-la, faço-o, mas, parafraseando Cazuza, escolha as armas mais bonitas. Também recebi, via “e-mail” e “facebook”, algo que poderíamos chamar de “resposta” a esse adesivo chulo a que me referi: “Fora fulana de tal e leve determinado banco com você”. Adivinhe por que levar junto “determinado banco”? Um presentaço a quem adivinhar! Pois bem, fiquei “na minha”, como dizem. Não respondi e não curti. Não vou usar as mesmas armas feias e vulgares. Determinado candidato não lhe agrada? Ok. Divulgue o seu então! Cole adesivos e mais adesivos em seu carro. Transforme-o, se assim for de seu agrado, num imenso “outdoor”. Vou achar brega, claro!, mas vou respeitar. Por que consumir todo o seu vigor pedindo que o candidato de quem ‘você’ não gosta “caia fora”? Gaste quanta energia quiser, mas não escorregue no desrespeito. Ocupe seu tempo dando visibilidade a seu candidato, que, a esta altura dos acontecimentos, deve andar meio ostracizado. Coitado! Não o despreze! Quanto fel, não?! Esse povo deve ter sido “criado a leite de jaguatirica”. Quanta raiva, meu Deus! E quanta alienação também...
E “alienação”, segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa significa, entre outras acepções, “indiferença aos problemas políticos e sociais”. Ah, algum desavisado pode perguntar: “ – Opa! Se alguém está ‘criticando’ um candidato, não está indiferente”. Está! Claro que está! Trata-se de agressão pura e simplesmente. É algo vazio. E quem é desprovido de argumentos só sabe agredir. Esse pessoal que só agride nunca leu nada. Sua única fonte de informação é, muitas vezes, um “grande” e tendencioso jornal de TV... e mais nada.  Eis aí um terreno fertilíssimo para a alienação.
Para ilustrar essa tal alienação, tentei, dia desses, manter, num nível elegante, uma discussão sobre escolha de candidatos. Eis alguns fragmentos da conversa:  
- Por que você rejeita o candidato “fulano de tal”?
- Porque ele não presta!
- Por que ele não presta?
- Porque não presta. Acabou com o Brasil. A economia está ruim e mais um monte de coisas. Ah, e ‘tem’ a corrupção também.
- OK. Cite, pelo menos, um caso de corrupção que o tenha deixado indignado nos últimos quatro anos (também não defendo a corrupção e não fecho os olhos para os deslizes de qualquer partido). Que pontos da economia você aponta como ruins?
- Não lembro, mas foram muitos casos de corrupção. Muitos mesmo! E a economia está ruim e pronto!
- Por que você gosta do candidato “sicrano”? O que o levou a escolher determinado candidato?
- Porque acho (“teoria do achismo”) que ele vai ser bom para o Brasil.
- Bom em que sentido?
- Em todos os sentidos. 
E a conversa continuou por mais alguns minutos, mas enquanto tive paciência, é lógico! E vale ressaltar o seguinte: meu interlocutor não era um “joão ninguém”. Está aí, na cara, o analfabetismo político.
Sabe o que evidenciamos aí nessas respostas? O discurso anônimo do senso comum, a voz geral corrente, a fala de todos, que, em verdade, é a fala de ninguém. Ou seja, a pessoa não tem argumentos. Não sabe por que detesta certo candidato, não sabe por que prefere outro. Essas pessoas – ou seriam “criaturas”? – apenas repetem. Repetem, repetem, repetem. E, como sabemos, quem apenas repete não se expressa. É só “montaria de ideias externas”¹. É apenas um bom “cavalo” e mais nada. Vive no que alguns chamam de “penumbra cinzenta”, mas “se acham”! Por trás disso tudo, a onipotente e onipresente ignorância, que imobiliza, que paralisa, que torna a pessoa agressiva e rude.
É fácil “ir na onda”. E “ir na onda” é o que muita gente faz. Pensar dói. Analisar programas de partidos/candidatos dá trabalho e, por isso, dói também. Aprender dói. Tudo dói. Gente que “vai na onda” não sabe por que motivos rejeita ou prefere determinado candidato. Apenas segue o fluxo. E, como já bem disseram, para quem não sabe aonde vai, qualquer caminho serve.
Pior que “ir na onda”, é sair por aí dogmatizando e doutrinando. Há um povo que não diz ter a verdade: simplesmente afirma que “é” a Verdade (aqui, é com inicial maiúscula mesmo). E o tal pensamento dogmático não ficou circunscrito a certas instituições religiosas. Faz muito tempo que ele ganhou as ruas e... chegou até o discurso político, é óbvio! Falsos “profetas-políticos” nascem todos os dias. Eles vêm travestidos de “salvadores da pátria” e, toda vez que surge uma dessas “figuras”, é inevitável não lembrar D. Sebastião, personagem importantíssima na história do povo português.
A compreensão do nascimento, em Portugal, em fins do século XVI, do “sebastianismo”, ajuda-nos a entender – e muito! – o porquê de esse mito, o do “sebastianismo”, ser constantemente redesenhado em nossa história, em especial a política. Em 1554, os nove filhos do rei João III morreram “uns após os outros”. Depositaram, então, todas as esperanças no neto – D. Sebastião - que nasceria naquele mesmo ano e de quem viriam também os milagres que o povo tanto esperava. Em 1578, numa batalha no Marrocos, D. Sebastião “desaparece”. Nasce, assim, o mito. D. Sebastião, que, com o passar dos anos, vem “reencarnando” também por aqui. Não faltam políticos oportunistas que se dizem os “desejados”, os “encobertos”, os “ungidos do Senhor”, os que “participaram da cerimônia da sagração”. Todos com histórias tristíssimas, de miséria e desespero. Argh!
Atrás desses escolhidos de Deus, muita gente está indo. Está indo “na onda”. Quando há o casamento do discurso político com o religioso, as consequências são desastrosas, nefastas. Como eu mesmo já disse noutro texto, o discurso religioso é mais forte que o político. E, se “bem conduzido”, é mais virulento, contamina mais. “Faz a cabeça” mesmo! “Tô” fora! Não preciso – como faço questão de afirmar - que ninguém me conduza. Não me venham com dogmas! Quero criar minhas “verdades” e nelas acreditar.  
¹ Expressão utilizada por Gustavo Bernardo em seu livro Redação Inquieta (Ed. Globo, 1991). 

 

                                                                                 A Antonio Candido
"Porque há para todos nós um problema sério...
 Este problema é do medo."
Antonio Candido, Plataforma de uma geração
 
 
                                                                                                                                                       
O MEDO
 
Em verdade temos medo.
Nascemos no escuro.
As existências são poucas;
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
Vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
doenças galopantes, fomes.
 
Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
 
eo amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.

Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno.
e nós, de vós; e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses.
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?

E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,
Vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.

Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo, e calma.

E com asas de prudência
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo

de nossa cauta subida.

O medo com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.

Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.



Fonte: ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. São Paulo: Círculo do Livro, 1986.
 
 
"Mas, enfim, eu estava do lado certo, isso bastava para a paz da minha consciência. O sentimento do direito, a satisfação de ter razão, a alegria de nos estimarmos a nós próprios são, meu caro senhor, impulsos poderosos para nos manter de pé ou nos fazer avançar. Pelo contrário, privar os homens desses impulsos é transformá-los em cães raivosos. Quantos crimes cometidos, simplesmente porque o seu autor não podia suportar o fato de estar errado! Conheci, em outros tempos, um industrial que tinha uma mulher perfeita, admirada por todos e que, no entanto, ele traía. Este homem ficava literalmente raivoso ao se descobrir culpado, na impossibilidade de receber, ou de passar a si próprio uma certidão de virtude. Quando mais a mulher se mostrava perfeita, mais ele se enraivecia. Finalmente, seu erro se tornou insuportável. Que pensa que fez então? Parou de enganá-la? Não. Matou-a. Foi deste modo que travei conhecimento com ele."

Fonte: CAMUS, Albert. A Queda. Tradução de Valerie Rumjanek. 16ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.


"(...) O rival deseja o mesmo objeto que o outro, não por acaso ou por mera coincidência, mas por uma estrutura de fundo, ligada ao próprio desejo humano. Este é tendencialmente infinito. Deseja-se não somente isto e aquilo, mas a totalidade, tudo. É um projeto aberto ao infinito.
Por isso, o ser humano não sabe concretamente o que deseja. O ser, o todo, a parte? Aristóteles já observava que o objeto do desejo é o ápeiron, o todo indeterminado. Por essa porta, entra Girard ao dizer: o desejo se determina somente a partir do rival. Cada pessoa deseja aquilo que seu rival deseja. Destarte, o desejo deixa o vago e ganha configuração concreta. Portanto, o desejo é essencialmente mimético (mimesis = imitação). O ser humano deseja o que o outro deseja. Um umita o outro (...)"

Fonte: BOFF, Leonardo. A violência da sociedade capitalista e do mercado mundial. In: A voz do arco-íris. Brasília: Letraviva, 2000.



Foto: Fábio Brito


VAMOS VER, CHAMEI A MINHA TRIBO

Vamos ver, chamei a minha tribo e disse:
vamos ver, quem somos, que fazemos, que pensamos.
O mais pálido deles, de nós,
me respondeu com outros olhos,
com outra sem-razão, com sua bandeira.
Esse era o pavilhão do inimigo.
Aquele homem, talvez, tinha direito
a matar minha verdade, assim aconteceu
comigo e com meu pai,
e assim acontece.
Mas sofri como se me mordessem.

NERUDA, Pablo. Últimos poemas. L&PM: Porto Alegre, 1997.



SÁBIO É O QUE SE CONTENTA...

Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre.

Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta à flor como a ele
De Átropos a tesoura.

Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgíaco
Apague o gosto às horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.

e ele espera, contente quase e bebedor tranquilo.
E apenas desejando
Num desejo mal tido
Que a abominável onda
O não molhe tão cedo.

PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 

 
"(...) Ai, Viramundo de minha vida, que vira Minas pelo avesso sem revelar aos meus olhos o seu mais impenetrável mistério. Ai, Minas de minha alma, alma de meu orgulho, orgulho de minha loucura, acendei uma luz no meu espírito, iluminai os desvãos do meu entendimento e mostrai-me onde se esconde esse vagabundo maravilhoso, esse meu irmão desvairado que no fundo vem a ser o melhor da minha razão de existir. Foi ele, esse iluminado de olhos cintilantes e cabelos desgrenhados que um dia saltou dentro de mim e gritou basta! num momento em que meu ser civilizado, bem penteado, bem vestido e ponderado dizia sim a uma injustiça. (...) Esse ser engasgado, contido, subjugado pela ordem iníqua dos racionais é o verdadeiro fulcro da minha verdadeira natureza, o cerne da minha condição de homem, herói e pobre-diabo, pária, negro, judeu, índio, cigano, santo, poeta, mendigo e débil mental, Viramundo! que um dia há de rebelar-se dentro de mim, enfim liberto, poderoso na sua fragilidade, terrível na pureza da sua loucura. (...)"

SABINO, Fernando. O grande mentecapto. 46ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.