domingo, 21 de maio de 2017

EM SE TRATANDO DE... OU FILOSOFIA DE BANCA DE JORNAL


APRENDENDO A JOGAR
Guilherme Arantes 


Vivendo e aprendendo a jogar
Vivendo e aprendendo a jogar

Nem sempre ganhando

Nem sempre perdendo

Mas aprendendo a jogar

Água mole em pedra dura
Mais vale que dois voando

Se eu nascesse assim... pra lua

Não estaria trabalhando
Mas em casa de ferreiro
Quem com ferro se fere é bobo

Cria fama, deita na cama

Quero ver o berreiro na hora do lobo
Quem tem amigo cachorro
Quer sarna pra se coçar

Boca fechada não entra besouro

Macaco que muito pula quer dançar



EM SE TRATANDO DE... OU FILOSOFIA DE BANCA DE JORNAL
Por Fábio Brito

"(...) As coisas estão no mundo / Só que eu preciso aprender (...) 
        Paulinho da Viola


CONFIANÇA: 
"Taí" algo que, uma vez perdido, jamais será recuperado. 

ESCOLHAS: 
Não somos Prometeu ("Prometeu acorrentado"). Por isso, a nós, pobres mortais, foi dado o direito de escolher que caminhos vamos percorrer sustentando - e nem sempre aguentando - o peso de nossa pedra (ou de nossas muitas pedras). Escolheu? Vamos em frente. Ah, errou? Tudo bem! É só engolir o choro. Caminhe, criatura! Caminhe! 

MANIQUEÍSMO: 
Sem essa de que somos só "bonzinhos" OU só "mauzinhos"! Muita gente por aí acha que sim. Somos, em verdade, "bonzinhos" E "mauzinhos"... sempre! 

AMORES: 
Não me arrependo de ter amado quem amei, ainda que alguns amores tenham sido um fracasso em sua realização. Se erraram comigo, o problema não é meu; se errei com alguém, aí, sim, vou procurar expiar minha culpa, embora seja impossível seu desaparecimento. Certo fantasma vai rondar sempre... 

AMOR: 
Há pessoas que "apostam todas as fichas" no amor por um companheiro(a), achando que esse sentimento as salvará. Se, um dia, tudo acabar (e, um dia, tudo acaba), o que será dessas pessoas, que ainda não aprenderam que viver é um ato muito solitário? 

AMOR 2: 
Para uma das personagens do filme "Jules e Jim", Catherine, "o amor era só um momento, mas que voltava sempre". 

RECURSOS ELETRÔNICOS: 
Os recursos eletrônicos não me usam. Sou eu que os uso! 

CELULAR: 
O que tanto ouvem? O que tanto falam? O que tanto escrevem? O que tanto leem? Descubro, neste instante, que adoro fazer perguntas idiotas! 

CELULAR 2: 
Por que muita gente insiste em atender ao celular só para dizer que não pode atender?  

LEITOR: 
Minha vida de leitor ajudou, e muito!, a construir o cidadão que sou, o professor que sou. 

ÁRVORE:
O que será que leva uma criatura a matar, com requintes de crueldade, uma árvore? No caso, uma mangueira linda, garbosa, altaneira e, acima de tudo, valente: nasceu ao léu, sem que a tivéssemos plantado ou dela tomado conta. Como disse Adélia Prado, "quem plantou foi o vento, a água da chuva..." Quando essa delicadeza de pessoa estiver uivando em certas profundezas onde o calor é insuportável, vai pedir sombra e água fresca. Não terá. Que pena. 

NA NUVEM: 
Outro dia, precisei queimar alguns papéis. Alguém passou e perguntou o que eu estava fazendo. “Salvando na nuvem” (ou nas nuvens), respondi. Adoro a modernidade! 

MOTOQUEIRO: 
Motoqueiro é como vampiro: não aparece em espelho. Dirigindo, uso os três retrovisores, e não vejo nada. De repente, eis que sou uma ilha cercada de motos por todos os lados. De onde vieram? 


RELIGIÃO:
Há um pessoal por aí que insiste em "pagar" para ser enganado. Não "conCego" entender. Pegando carona em escritos de George Carlin, muita gente (e ponha muita nisso!) está convencida da existência de um homem invisível - morador do céu - que controla, com rigor, tudo o que nós, eternos pecadores, fazemos aqui, neste mundinho tacanha. Se derraparmos, esse homem invisível nos punirá severamente. Ainda assim, Ele é, acima de tudo, apaixonado por nós. 

RELIGIÃO 2: 
Bem disse Sthendal que a religião se baseia no medo da maioria, que dá dinheiro a uma minoria, que instrumentaliza o medo dessa maioria. Dizer mais o quê? 

RELIGIÃO 3: 
As religiões não vivem pregando "o amor ao próximo"? Então, por que tanto preconceito dentro de muitas igrejas? Deixem-me dizer que sou do Candomblé ou da Umbanda! E se eu disser que sou espírita? Quer que eu responda como serei tratado?  

RELIGIÃO 4: 
Muita gente decora o texto bíblico e transforma-se no próprio (texto). O que mais vejo é bíblia "bem vestida" que não para de fazer pregação. Desconfio do seguinte: quanto mais longe das igrejas, mais perto de Deus. 

RELIGIÃO 5: 
Estão vendendo Cristo em todas as esquinas. Todos os dias, há promoção. 

PAGANISMO: 
Vou ao encontro da obra do poeta "PessoaS", em que vejo a essência do paganismo: no mundo sensível, manifestam-se as divindades que o humano vivencia em sua vida passageira aqui neste planeta. Somos parte da "Natureza". Deus, para mim, está aí. Deus está em mim, no outro...

DEMÔNIO:
Vivem negando o Demônio e esbravejando contra ele, não é mesmo? Pois bem! Em sua origem, daemon, essa palavrinha tão temida, significava "a força, o dínamo de cada um".

PRODUÇÃO DE TEXTO: 
Produzir texto é um parto que, não raro, é complicado: mãe já idosa, com estreitamento de bacia, sem dilatação e, para completar, a criança está sentada. No entanto, é preciso nascer. 

AMIZADE: 
Amizades verdadeiras não se constroem por meio de bajulações. Não faço amigos para ter alguma vantagem pessoal. 

CANTAR: 
Elis Regina transformava em música nossos mais profundos sentimentos. Ainda transforma. Ela "é" perfeita: técnica e emoção estão nessa voz única.  

CANTAR 2: 
Dalva de Oliveira dizia que cantava "segurando o útero com as mãos". Ouvindo nosso "Rouxinol", constatamos que melhor autodefinição não há.

CANTAR 3: 
Impossível evitar o choro quando ouço Nana Caymmi e Alaíde Costa.

CANTAR 4: 
Com o passar dos anos, a voz de Elizeth Cardoso, a "divina", foi ganhando um veludo que a tornou mais bonita ainda. 

CANTAR 5: 
Angela Maria, que acaba de completar 88 anos e cuja carreira é uma das mais longevas da MPB, diz que quer morrer no palco dando o último agudo de "Babalu". Angela é um patrimônio. É a mãe de todas as cantoras brasileiras.  

CANTAR 6: 
Muitas figurinhas que pensam que cantam e que não fazem mais nada além de caras e bocas em programas de TV inclassificáveis (o carro-chefe de emissoras também inclassificáveis) precisam ouvir Ithamara Koorax, que é uma perfeição. Sempre é tempo de aprender. Corram! 

A MÚSICA HOJE: 
O que vende e faz sucesso, hoje, no mundo, é isto: um "troço" que nem de longe é parecido com música, que é cantado por alguém que nem de longe sabe cantar e que é consumido por criaturas que, em lugar da cabeça, têm uma bola de chiclete que vive iluminada pela luz de celulares e afins. 

CARÁTER OU A FALTA DE: 
Em tempos sombrios como este em que vivemos, muitas pessoas comportam-se de acordo com o que lhes é conveniente.  

CARÁTER OU A FALTA DE 2: 
A corrosão do caráter está aí... estampada nos jornais sérios.

ENVELHECIMENTO: 
Quando me perguntam qual a grande vantagem do envelhecimento, sempre digo que é ser mais sincero e natural.  

CLASSE MÉDIA: 
A classe média brasileira pensa que é classe dominante só porque explora empregada doméstica (as escravas pós-modernas) e vai à "Disney" de dois em dois anos. 

CLASSE MÉDIA 2: 
Marilena Chaui, uma das grandes filósofas deste país, disse - claramente - o que define a classe dominante: é a propriedade privada dos meios sociais de produção. Portanto, "você" está fora, classe média! Deixe de endividar-se para trocar de carro todo ano! Deixe de "estourar" o cartão de crédito! Cuidado com o coração! Cuide de sua pressão arterial! 

PROFESSORES: 
Os ensinamentos de bons professores chegam a seus alunos e funcionam como uma "polifonia coral: muitas melodias, mas dentro da mesma tonalidade". 

PROFESSORES 2: 
Professor paternalista não é professor, mas um entrave à educação. Paternalismo não faz - e nunca fez - ninguém crescer. Criança mimada nunca vai crescer enquanto houver uma mãozinha qualquer alisando seus cabelos. Crescer dói, mas é preciso. 

ENSINO: 
Se o ensino, hoje, está muito ruim, o que se tem a fazer é ir atrás de um autoaprimoramento. Muitos ficam à espera do "grande mestre", que não existe, lamento informar. As faculdades só dão o mote. Vá atrás! 

DIVERGÊNCIAS: 
Hoje, quando divergimos de alguém, principalmente quando o assunto é política, temos a certeza de que estamos declarando guerra. O ódio fala mais alto e algo parecido com chumbo se instala entre os dentes das pessoas, ainda que elas sejam amigas há muito tempo. Tudo bem. Vamos à guerra, mas usando "as armas mais bonitas", como ensinou Cazuza, nosso eterno "menino-poeta" (em Tudo é amor, parceira com Laura Finochiaro). Só não quero - e não posso - viver escondendo minhas opiniões. 

FACEBOOK: 
O que mais vejo no "facebook" é reclamação sem autoria. Onde está a opinião fundamentada, gente? Já sei: o gato comeu! O pessoal só repete... e mal (porque ouve mal também). Onde estão os argumentos? Argumentar nada mais é que fazer afirmações e sustentá-las com informações. O objetivo? O convencimento. Não vejo muita gente me convencendo. 

POLÍTICA: 
Olhando os rumos que a política neste país tem tomado, não sei se estamos em pleno século XXI. Não sei! Decididamente, não sei! O Congresso, ou melhor, o "congresso" que temos e que nos representa (é o que dizem) foi mesmo eleito pelo povo? Já esqueci. Onde está a luta por esse povo?

POLÍTICA 2: 
O fascismo tem batido à nossa porta. Quer entrar de qualquer jeito, tanto que já ameaça arrombar, além das portas, as janelas. Pode vir pela chaminé também. O que ele quer é entrar. Cuidado! 

IMPRENSA: 
Quando leio o que é publicado pela maioria dos jornais e das revistas, considero quase tudo muito raso e sensacionalista. Lembram o caso Watergate? Os jornalistas do The Washington Post foram seriíssimos.

CORRUPÇÃO: 
Corrupção? Só os políticos são corruptos? Muitos o são, claro, mas veja o que você faz diariamente, criatura! 

JUSTIÇA: 
A justiça é para todos. É? 

LITERATURA: 
Quando determinado assunto passa pelo filtro da literatura, ele se torna um estampido. É bom lembrar que, em "A República", de Platão, houve a expulsão do poeta, que era uma ameaça. O poeta é sempre uma ameaça. 

LITERATURA 2: 
Romance feminino? Romance gay? Romance não sei o quê? Melhor que seja romance humano, que é bem mais amplo. Pensando "grande", pensando no humano antes de tudo, atingiremos outras esferas, que estão dentro do humano. 

LITERATURA 3: 
Com a literatura, "queremos arranhar o absoluto, a grandeza", como preconizou a escritora Nélida Piñon. 

LETRA DE MÚSICA X POEMA: 
Há pessoas que dizem que o fato de uma letra de canção ser bonita não é motivo para que ela seja considerada poema, porque este não precisa de qualquer apoio (como uma melodia, por exemplo) além da língua. Discussão antiga essa. Pois bem. E o que dizer, então, dos poemas - textos concebidos originalmente como poemas - e que "viram canção", ou seja, que se "misturam" com uma melodia, uma harmonia? Deixam de ser poemas? Seguindo esse raciocínio, deveriam deixar de ser poemas, uma vez que eles, quando se "tornam canção", recebem outros apoios além da língua. Se "Resposta ao tempo" (Cristovão Bastos e Aldir Blanc) e "Pedaço de mim" (Chico Buarque), só para citarmos duas letras espetaculares, não forem poemas da mais alta estirpe, não sei como classificá-las. O que vale, para mim, é a qualidade poética. Não importa se o texto foi produzido por alguém chamado de letrista ou de poeta. Sendo bonito o produto, é tudo poeta, é tudo alta literatura. 

MODA E ESTILO: 
Moda é tudo o que nos é ofertado aos borbotões e até agressivamente; ter estilo passa, necessariamente, pelo que chamam de "escolha". Estar "na moda" pode ser extremamente ridículo. Muitos não veem isso.  

TELEVISÃO: 
Na televisão, hoje, o que mais vemos é artista. Onde estão os atores? Outra pergunta idiota que acabo de fazer. Não aprendo mesmo! 

INTERNET: 
Dizem que, com a Internet, as pessoas estão lendo mais. É? 

BOA ESTAMPA X INTELIGÊNCIA: 
Uma bonita estampa pode até impressionar, mas não convence. Não a mim! Trocou a inteligência pela bela estampa? Supervalorizou o sexo? Enganou-se redondamente. O que segura uma relação é afinidade intelectual, cara pálida. Onde você estava quando lhe ensinaram essa lição? Pensou em cair fora da relação que deu errado? Caia! Há tempo ainda. Encontre-se! 

IDADE: 
Normalmente, acordo bem novo e, à medida que o dia vai avançando, vou ficando mais velho. À noite, sou um velhinho com bengala e tudo, mas a memória está sempre preservada. Nem tudo está perdido nesta vida, não é mesmo? 

RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA: 
Os orixás são a representação e a divinização dos fenômenos da natureza. O Candomblé e a Umbanda, por exemplo, são religiões. Pronto! Por que outras religiões têm tanto preconceito em relação a essas duas? Insisto em perguntas idiotas. Não aprendo mesmo!

INTERPRETAÇÃO: 
Fernanda Montenegro é a melhor atriz do mundo. Quando ela olha, a cena está toda ali. 

SIMPLICIDADE E SOFISTICAÇÃO: 
Adélia Prado e Mario Quintana conseguem chegar à grande sofisticação em literatura, que se dá por meio da simplicidade. Não é fácil ser simples sem ser banal. 

CLAREZA: 
Já chamaram Clarice Lispector de "Clareza" Lispector. Perfeito. Quem diz que ela é hermética não entende nada. "Ela é excesso de poesia", como disse Ana Miranda.

IRONIA: 
A ironia fina de Machado de Assis é única. É de uma grandeza ímpar. 

FILOSOFIA: 
Todas as filosofias do mundo estão em "Grande sertão: veredas". Rosa é nada menos que monumental.




Para Maria da Graça
Paulo Mendes Campos

Quando ela chegou à idade avançada de quinze anos, eu lhe dei de presente o livro Alice no País das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade. A realidade, Maria, é louca.
Nem o papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?"
Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!" O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. “A porta do poço!” Só as criaturas humanas, nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados, conseguem abrir uma porta bem fechada e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.
Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial e temos a presunção petulante de esperar dela grandes consequências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser séria ou profunda. A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!" Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para tua sabedoria de bolso: se gosta de gatos, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: "Gostarias de gatos se fosses eu?"
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! Mas quem ganhou ?" É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não conseguirá saber quem venceu. Para o bolso: se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste.
Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!" Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: "Minha vida daria um romance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. Mas como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor. Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas".
Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida. É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.