domingo, 30 de março de 2014

"PÁGINA INFELIZ DA NOSSA HISTÓRIA"

 


 
AOS NOSSOS FILHOS
Ivan Lins - Vitor Martins

Perdoem a cara amarrada
Perdoem a falta de abraço
Perdoem a falta de espaço
Os dias eram assim

Perdoem por tantos perigos
Perdoem a falta de abrigo
Perdoem a falta de amigos
Os dias eram assim 

Perdoem a falta de folhas
Perdoem a falta de ar
Perdoem a falta de escolha
Os dias eram assim

E quando passarem a limpo
E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos
Façam a festa por mim

Quando lavarem a mágoa
Quando lavarem a alma
Quando lavarem a água
Lavem os olhos por mim

Quando brotarem as flores
Quando crescerem as matas
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim


"PÁGINA INFELIZ DA NOSSA HISTÓRIA"
Por Fábio Brito
         Em 31 de março, o golpe militar – um crime contra a democracia brasileira – completará 50 anos.  Como lembrar essa data? De um lado, há os alienados que, em pleno séc. XXI, ainda pensam nesse golpe como um ato heroico; de outro, as pessoas que, lúcidas e de olhos bem abertos, não deixam o senso crítico de lado e enxergam-no como um crime, um terror, uma “página infeliz da nossa história”². Esquecer? Jamais!
Tendo o apoio de muitos, como boa parte do empresariado e dos meios de comunicação, a ditadura enfrentou resistência – e que resistência! – de escritores, dramaturgos, músicos, cineastas e atores, entre outros, que, como ninguém, souberam “usar as armas mais bonitas”¹ no combate às atrocidades do período ditatorial. Pagaram, é claro!, um preço alto porque souberam resistir e denunciaram, por meio da arte, o sofrimento por que todos passaram e os desmandos cometidos. Não faltaram atos de brutalidade explícita dos ditadores, mas nossos artistas – bravos artistas! – resistiram e deixaram para a posteridade um legado riquíssimo, entre poemas, canções, filmes e peças teatrais, por exemplo. Foram fortes! Parafraseando Hiroshi, citado por Eugenio Mussak, nossos artistas puderam mostrar que a brutalidade não é forte, como pensam muitos. A delicadeza, sim, requer muita força. Mostraram ainda que tudo é mais real quando é mais poético.
E, para mostrar, por meio da arte, a realidade de um “Brasil sob as botas da ditadura”, o curso de Letras do Centro Universitário São Camilo/ES organizou e apresentou, dia 14 de março, o sarau “’É melhor morrer do que perder a vida’: a literatura, a música, o golpe de 64 e a repressão”. O evento marcou a terceira edição do “Dia da Poesia”: nos anos anteriores, as homenagens voltaram-se à mulher e ao centenário de nascimento do poeta Vinicius de Moraes’, nosso “Poetinha”.
 “Cantando” a liberdade de forma sutil, irônica, poética e delicada, alunos e professores, por meio da prosa, da poesia e da música, passearam – numa praça e numa redação de jornal, o cenário do evento - por diversos textos que não só fizeram história, mas estão gravados, de forma indelével, na alma de todos nós.  Thiago de Mello, Regina Zappa, Zuzu Angel, Miltinho, Chico Buarque, Gonzaguinha, Nara Leão, Milton Nascimento, Ronaldo Bastos, Affonso Romano de Sant'Anna, Sidney Miller, Ferreira Gullar, João Bosco, Aldir Blanc, Paulinho da Viola, Frei Betto, Gilberto Gil, Alex Polari, Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Lins, Vitor Martins, Cacaso, Torquato Neto, Maurício Tapajós, Paulo César Pinheiro, Sophia de Mello e Geraldo Vandré foram, em verdade, os condutores do sarau. “Receberam” os convidados oferecendo o que de melhor eles têm: sua arte. Os versos de “Os estatutos do homem”, do grande poeta Thiago de Mello, deram o mote: “A partir deste instante / a liberdade será algo vivo e transparente / como um fogo ou um rio, / e a sua morada será sempre / o coração do homem”. Ao fim do encontro, todos tiveram a certeza de que a arte liberta.
Normalmente, na correria louca do dia a dia, não damos ao outro, como disse a poeta Adélia Prado, o que de mais precioso temos: o tempo. No sarau, ao contrário, o curso de Letras ofertou ao público que compareceu ao auditório Pe. Ângelo Brusco um tempo preciosíssimo para a troca de delicadezas e sensibilidades. Ofertou arte, que nos espiritualiza, que nos torna humanos, que nos leva a Deus.  
 ¹ Da canção “Tudo é amor”, de Cazuza e Laura Finochiaro.
² Verso da canção "Vai passar", de Chico Buarque e Francis Hime.


OS ESTATUTOS DO HOMEM
(Ato Institucional Permanente)
Thiago de Mello
A Carlos Heitor Cony
 Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
Agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira. 
Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo. 
Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança. 
Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu. 
Parágrafo único:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino. 
Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa. 
Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor. 
Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que, sobretudo, tenha
sempre o quente sabor da ternura. 
Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.
 
Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã. 
Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela. 
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida
amar sem amor. 
Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou. 
Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
 
ANGÉLICA
Miltinho - Chico Buarque
 
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar 
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar 
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar 
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino
Queria cantar por meu menino
  Que ele já não pode mais cantar 
 
Um estudante de 16 anos morreu porque queria instalações sanitárias e comida para melhor cumprir suas funções de estudante. Não se trata nem mesmo de uma manifestação político-ideológica. Mas o governo (...) não podia concluir as obras do Calabouço, porque tinha tido muitas despesas com o carnaval para fantasiar a miséria, a falta de hospitais, a chacina de índios, os excedentes universitários (...)
Fizemos uma greve de teatro contra a censura. E voltamos a cantar. Mas é impossível cantar, sabendo que os estudantes estão sendo assassinados nas ruas. ‘As providências serão tomadas nas horas devidas’, e ninguém sabe que hora será essa. ‘Os culpados serão punidos’, mas acontece que os que dizem que vão punir são os verdadeiros culpados. Por isso, é preciso não cantar. A desesperança, o desespero, a falta de perspectiva de todos nós neste momento, tudo isso é impossível ser dito em música. O canto, mesmo triste, sempre celebra e é bonito. Mas a realidade está feia demais para ser cantada e celebrada.”
 
Nara Leão (Fragmento de “É preciso não cantar”, texto publicado na coluna ‘Rodaviva’, assinada por Nelson Motta no jornal “Última Hora, 1968)
 
   Fonte: CABRAL, Sérgio. Nara Leão: uma biografia. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 2001.
 
MENINO
Milton Nascimento / Ronaldo Bastos 
Quem cala sobre teu corpo
Consente na tua morte
Talhada a ferro e fogo
Nas profundezas do corte
Que a bala riscou no peito 
Quem cala morre contigo
Mais morto que estás agora
Relógio no chão da praça
Batendo, avisando a hora
Que a raiva traçou no tempo 
No incêndio repetindo
O brilho de teu cabelo
Quem grita vive contigo
OS DESAPARECIDOS
Affonso Romano de Sant’Anna 
De repente, naqueles dias, começaram
a desaparecer pessoas, estranhamente.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias. 
Ia-se colher a flor oferta
e se esvanecia.
Eclipsava-se entre um endereço e outro
ou no táxi que se ia.
Culpado ou não, sumia-se
ao regressar do escritório ou da orgia.
Entre um trago de conhaque
e um aceno de mão, o bebedor sumia.
Evaporava o pai
ao encontro da filha que não via.
Mães segurando filhos e compras,
gestantes com tricots ou grupos de estudantes
desapareciam.
Desapareciam amantes em pleno beijo
e médicos em meio à cirurgia.
Mecânicos se diluíam
mal ligavam o torno do dia.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias. 
Desaparecia-se a olhos vistos
e não era miopia. Desaparecia-se
até à primeira vista. Bastava
que alguém visse um desaparecido
e o desaparecido desaparecia.
Desaparecia o mais conspícuo
e o mais obscuro sumia.
Até deputados e presidentes evanesciam.
Sacerdotes, igualmente, levitando
iam, aerefeitos, constatar no além,
como os pescadores partiam.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Os atores no palco
entre um gesto e outro, e os da plateia
enquanto riam.
Não, não era fácil ser poeta naqueles dias.
Porque os poetas, sobretudo
 desapareciam. 
Se fosse ao tempo da Bíblia, eu diria
que carros de fogo arrebatavam os mais puros
em mística euforia. Não era. É ironia.
E os que estavam perto, em pânico, fingiam
que não viam. Se abstraíam.
Continuavam seu baralho a conversar demências
com o ausente, como se ele estivesse ali
sorrindo
com suas roupas e dentes. 
Em toda família à mesa havia
uma cadeira vazia, a qual se dirigiam.
Servia-se comida fria ao extinguido parente
e isto alimentava ficções
                                     - nas salas e mentes
enquanto no palácio, remorsos vivos
boiavam
                                 - na sopa do presidente.
 
As flores, olhando a cena, não compreendiam.
Indagavam dos pássaros, que emudeciam.
As janelas das casas, mal podiam crer
- no que viam.
                                    As pedras, no entanto,
gravavam os nomes dos fantasmas,
pois sabiam que quando chegasse a hora
por serem pedras, falariam. 
O desaparecido é como um rio:
- se tem nascente, tem foz.
Se teve corpo, tem ou terá voz.
Não há verme que em sua fome
roa totalmente um nome. O nome
habita as vísceras da fera
Como a vítima corrói o algoz. 
E surgiam sinais precisos
de que os desaparecidos, cansados
de desaparecerem vivos
iam aparecer mesmo mortos
florescendo com seus corpos
a primavera de ossos. 
Brotavam troncos de árvores,
rios, insetos e nuvens em cujo porte se viam
vestígios dos que sumiam. 
Os desaparecidos, enfim,
amadureciam sua morte. 
Desponta um dia uma tíbia
na crosta fria dos dias
e no subsolo da história
- coberto por duras botas,
faz-se amarga arqueologia.
A natureza, como a história,
segrega memória e vida
e cedo ou tarde desova
a verdade sobre a aurora.
Não há cova funda
que sepulte
- a rasa covardia.
Não há túmulo que oculte
os frutos da rebeldia. 
Cai um dia em desgraça
a mais torpe ditadura
quando os vivos saem à praça
e os mortos da sepultura.
 
 
MEIOS DE COMUNICAÇÃO
Ignácio de Loyola Brandão
          Às 23 horas, como faz todos os dias, o Presidente apareceu na televisão, cortando a transmissão do futebol. Alto, olhos claros, ar paternal, jeito de avô, bonzinho, voz pausada, tranquila (Como é bom esse homem, como é bom esse homem, como é bom esse homem: frações de segundos, os letreiros surgiam na tela: subliminal).
Às 23, 04, o Presidente bom-magnânimo-liberal ergueu a mão direita e abençoou o seu povo, o povo de todo o país (ame-O). “Durma bem, minha boa gente”. A população fez o sinal-da-cruz, e agradeceu.
 
POIS É, PRA QUÊ?
Sidney Miller 
O automóvel corre, a lembrança morre
O suor escorre e molha a calçada
A verdade na rua, a verdade no povo
A mulher toda nua, mas nada de novo
A revolta latente que ninguém vê
E nem sabe se sente, pois é, pra quê? 
O imposto, a conta, o bazar barato
O relógio aponta o momento exato
da morte incerta, a gravata enforca
O sapato aperta, o país exporta
E na minha porta ninguém quer ver
Uma sombra morta, pois é, pra quê? 
Que rapaz é esse? Que estranho canto
Seu rosto é santo, seu canto é tudo
Saiu do nada, da dor fingida
Desceu a estrada, subiu na vida
A menina aflita ele não quer ver
A guitarra excita, pois é, pra quê? 
A fome, a doença, o esporte, a gincana
A praia compensa o trabalho, a semana
O chopp, o cinema, o amor que atenua
O tiro no peito e o sangue na rua
A fome, a doença, não sei mais por quê
Que noite, que lua, meu bem, pra quê? 
O patrão sustenta o café, o almoço
O jornal comenta: um rapaz tão moço!
O calor aumenta, a família cresce
O cientista inventa uma flor que parece
A razão mais segura pra ninguém saber
De outra flor que tortura, pois é, pra quê? 
No fim do mundo tem um tesouro
Quem for primeiro carrega o ouro
A vida passa no meu cigarro
Quem tem mais pressa que arranje um carro
Pra andar ligeiro, sem ter por quê
Sem ter pra onde, pois é, pra quê?
 
MAIO 1964
Ferreira Gullar  
Na leiteria a tarde se reparte
em iogurtes, coalhadas, copos
de leite
e no espelho meu rosto. São
quatro horas da tarde, em maio.
Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo
a vida
que é cheia de crianças, de flores
e mulheres, a vida,
esse direito de estar no mundo,
ter dois pés e mãos, uma cara
e a fome de tudo, a esperança.
Esse direito de todos
que nenhum ato
institucional ou constitucional
pode cassar ou legar.
Mas quantos amigos presos!
quantos em cárceres escuros
onde a tarde fede a urina e terror.
Há muitas famílias sem rumo esta tarde
nos subúrbios de ferro e gás
onde brinca irremida a infância da classe operária. 
Estou aqui. O espelho
não guardará a marca desse rosto,
se simplesmente saio do lugar
ou se morro
se me matam.
Estou aqui e não estarei, um dia,
em parte alguma.
Que importa, pois?
A luta comum me acende o sangue
e me bate no peito
como o coice de uma lembrança.
 
 
FREI TITO
Frei Betto (texto musicado por Madan em 1997)
Frei Tito de Alencar Lima
Foi preso em novembro de 1969, acusado de oferecer infraestrutura a Carlos Marighella. Tito é submetido a palmatória e choques elétricos, no Deops, em companhia de seus confrades.
Em fevereiro do ano seguinte, quando já se encontra em mãos da Justiça Militar, é retirado do presídio Tiradentes e levado para Operação Bandeirantes, mais tarde conhecida como DOI-Codi, ‘na’ Rua Tutóia.
Durante três dias, batem sua cabeça na parece, queimam sua pele com brasa de cigarros e dão-lhe choques por todo o corpo, em especial na boca, “para receber a hóstia”, gritam os algozes.
Fernando Gabeira, preso ao lado, tudo percebe. Querem que Tito denuncie quem o ajudou a conseguir o sítio de Ibiúna para o congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), em 1968, e assine depoimento atestando que dominicanos participaram de assalto a bancos.
No limite de sua resistência, Tito corta com a gilete que lhe emprestam para fazer a barba a artéria interna do cotovelo esquerdo. É socorrido a tempo no hospital militar, no Cambuci.
As incessantes torturas não abrem a boca do frade de 28 anos, mas lhe cindem a alma. Cumpre-se a profecia do capitão Albernaz, da Oban: “Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia”.
Em dezembro de 1970, incluído na lista de presos políticos trocados pelo embaixador suíço Giovanni Bucher, sequestrado pelo VPR de Lamarca, Tito é banido do Brasil pelo governo Médici.
De Santiago do Chile ruma para Paris, sem jamais recuperar sua harmonia interior.
Nas ruas da capital francesa ele “vê” o espectro de seus torturadores.
... contorce-se em calafrios sob o fantasma do delegado Fleury. Sua mente naufraga em delírios.
No dia 10 de agosto de 1974, um estranho silêncio paira sob o céu azul do verão francês, envolvendo folhas, ventos, flores e pássaros. Nada se move. Entre o céu e a terra, sob a copa de um álamo, balança o corpo de Frei Tito, dependurado numa corda.
Do outro lado da vida ele encontrara a unidade perdida. Deixa registrado em seus papéis que “é melhor morrer do que perder a vida”.
CÁLICE
Gilberto Gil - Chico Buarque
  
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue 
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta 
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa 
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
 
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
 
 
12.207
Alex Polari 
Desembarcamos
os ferros foram lançados
no porto e nos pulsos
enquanto fomos expulsos
da vida e do continente
estando sujeitos ao pulsar
de incríveis sentimentos
e ao sabor
das ondas e das contingências
rondamos em redor
das continências dos guardas. 
Depois da viagem
da travessia e do enjoo
nos colocaram em uma sala
tiraram nossa roupa
nos revistaram, nos vestiram
nos revestiram de oco
e fizeram a chamada. 
Ganhei um número de registro
e por um instante
perdi as esperanças.
 
 
PESADELO
Maurício Tapajós – Paulo César Pinheiro  
Quando o muro separa
Uma ponte une
Se a vingança encara
O remorso pune
Você vem, me agarra
Alguém vem, me solta
Você vai na marra
Ela um dia volta
E se a força é sua, ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte
Olha o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós
Olha aí 
Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
De repente, olha eu de novo
Perturbando a paz, exigindo o troco
Vamos por aí
Eu e meu cachorro
Olha um verso, olha o outro
Olha o velho, olha o moço chegando
Que medo você tem de nós
Olha aí 
O muro caiu, olha a ponte
Da liberdade guardiã
O braço do Cristo horizonte
Abraça o dia de amanhã
Olha aí
 
DEPOIMENTO
Ignácio de Loyola Brandão
/ tomando a lápis, apressadamente /
            “Puseram um fio em minha língua e minha boca explodiu e se encheu de uma coisa de gosto muito ruim e essa coisa queria descer pela minha garganta e me sufocar e era um fogo só e cinza e merda e sangue e terra e dentes partidos tudo de uma vez. Você vai conhecer o inferno, me disse o tenente, sargento, capitão, não sei o quê. E não pense que sai vivo, porque nós vamos te arrebentar, não vai ficar um osso inteiro, pode se preparar. Era de noite, me deixaram numa cela fria, de tijolos, cheia de baratas e formigas, não sei de onde vinham aquelas formigas. Dormi no chão, quer dizer, não dormi, porque fiquei pensando no que ia me acontecer no dia seguinte.  (...) “
 
JOGOS FLORAIS
Cacaso 
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá. 
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre. 
(...)
 
 
NESTA HORA
Sophia de Mello Breyner Andresen

Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é importante neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade 
Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida 
O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe 
A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados
Não basta gritar povo é preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar 
Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão 
Para construir o canto do terrestre
— Sob o ausente olhar silente de atenção — 
Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste
 

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES
(Caminhando)
Geraldo Vandré 
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais braços dados ou não
Nas escolas nas ruas, campos, construções
Caminhando e cantando e seguindo a canção 
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer 
Pelos campos há fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão 
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer. 
Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão 
Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer. 
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Somos todos soldados, armados ou não
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais braços dados ou não
Os amores na mente, as flores no chão
A certeza na frente, a história na mão
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Aprendendo e ensinando uma nova lição 
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
 
 
O BÊBADO E A EQUILIBRISTA
João Bosco / Aldir Blanc 
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos
A lua
Tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel
E nuvens
Lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco
Louco
O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil, meu Brasil
Que sonha
Com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora
A nossa pátria, mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil
Mas sei
Que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar
Azar
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar