sábado, 20 de junho de 2015

SUCINTA E AUTORIZADA




SE MEU MUNDO CAIR
Zé Miguel Wisnik


se meu mundo cair
então caia devagar
não que eu queira assistir
sem saber evitar
cai por cima de mim
quem vai se machucar
ou surfar sobre a dor
até o fim?

cola em mim até ouvir
coração no coração
o umbigo tem frio
e o arrepio de sentir
o que fica pra trás
até perder o chão
ter o mundo na mão
sem ter mais
onde se segurar
se meu mundo cair
eu que aprenda a levitar




SUCINTA E AUTORIZADA
Por Fábio Brito

Gosto dos longes. Gosto de ler! E leio muito! Queria mais tempo. Ler me leva a cantos que nem nos mais malucos sonhos imaginei conhecer. Detesto literatura de “autoajuda”! Que ajuda? Olhar espelhos e exclamar “que lindo!” não ajuda. Só atrapalha. Licencinha, por favor! Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Pessoa, Rubem Braga, Newton Braga, Drummond, Thiago de Mello, Mia Couto, Sophia de Mello, Adélia Prado, Bandeira, Hilda Hilst, Saramago, Camões, Manoel de Barros, Bartolomeu (“Bartô”) Campos de Queirós, Machado, Quintana, Cecília Meireles, Pedro Nava, Cervantes, Baudelaire, Rimbaud, Ernesto Sabato, Caio Fernando Abreu, Torero, Florbela Espanca, Eça, Érico Veríssimo, Lobo Antunes, Ferreira Gullar, António Ramos Rosa, Leminski, Nélida Piñon, Milton Hatoum, Augusto dos Anjos, Orides Fontela, Nuno Ramos, Reinaldo Arenas, Oscar Wilde, Moacyr Félix, Vargas Llosa, Fernando Sabino, Ariano Suassuna, Borges, Galeano, Carlito Azevedo, Rubem Fonseca, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Bernadette Lyra, João Ubaldo Ribeiro, Lygia Bojunga, Moacyr Scliar, Proust, Sartre, Simone de Beauvoir, Balzac, Victor Hugo, Leonardo Boff, Affonso Romano de Sant'Anna, Marina Colasanti, Ignácio de Loyola Brandão, Daniel Pennac, Kafka, Dalton Trevisan, Camus, Autran Dourado, García Márquez, Sérgio Sant'Anna, João Cabral de Melo Neto, Jorge Amado, Antonio Prata, Thomas Mann, Rosa Montero, Lilian Hellman, Ruy Castro, Roberto Drummond, Julio  Cortázar, Murilo Rubião, Raul Brandão, Antônio Callado, Charles Dickens, Baudelaire, Poe, Fernando Morais. Ah, tenho paixão por biografias. Acho até que escrevo direitinho. Só crônicas! Pura catarse. Puro desabafo. Reviso textos e sou bem chato, dizem! Vou catando pontinhos e “inhos” e “inhos”. Opa! Não esqueço o todo! Ah, faxina é comigo mesmo! Gosto de “lipoaspiração textual”. Gordurinha no texto? Cânulas já! Faxina em casa também é comigo: vou buscar o cisquinho no fundo do armário. Não sossego enquanto ele não vem. Com a ponta da vassoura, cato aranhas nos cantos do teto. Gosto de ver a casa brilhando. Também “tô” ficando craque na faxina interior! Graças a Deus e aos orixás, lido bem com a limpeza “de dentro”. Vou lá e jogo água sem dó. Com cloro, é melhor ainda. Limpeza total. Se algum “esquisito” não quiser sair, terá de ser forte. Aviso aos navegantes: não preciso de encosto. Bom é estar na companhia de quem escolhemos... ou de quem ‘nos’ escolhe. “Alguém” mora em mim. Se sou sua melhor casa, não sei. Com o avançar dos anos, já sinto de longe, lembrando Elis, quando o cheiro não é dos melhores. Se ninguém tem “estrelinha na testa”, melhor deixar o radar sempre ligado. Estou ficando atento. Outrora, patinhei feio! “Taí” uma das vantagens da “idade mais boazinha”. E que vantagem! Gosto de rio, praia, cachoeira, lagoa e montanha. Não gosto de piscina. Deus me livre de praia no verão! Lagoa serena é um perigo. Opa! Olhe o lodo no fundo! Adoro o mar! Sou da raça dos “Caymmis”, sou da “raça dos navegadores”. Gosto do inverno. O mar é um absurdo de belo. Gosto de azul, que é transcendência. Detesto telefone, que não é “de Deus”. Detesto whatsApp e fico irritado quando me perguntam se tenho esse “troço”. As pessoas ficaram loucas por causa disso. Todo o mundo está conversando o tempo todo. Para quê? Só funciono no silêncio. Preciso de paz. Preciso de bibliotecas. Trânsito me irrita. Falta de educação é o fim do mundo. Improviso é quase tudo. Já imaginou se ninguém tivesse tido a ideia de juntar suco de laranja à massa de um bolo? Abençoada ideia. Amo salada: rúcula, alface, torradinhas, queijo de cabra. Pera, uva ou maçã? Maçã, manga e melão. Doce ou sal? Doce. De preferência, bolo confeitado com glacê de açúcar. Já fui da macrobiótica. Sou das artes! Gosto dos detalhes de tudo. Não é com os cacos que se fazem os melhores vitrais? Não gosto do que muitos dizem que é arte: esse “negócio” esquisito que só enxerga $$$$$$$. Cruzes! Na arte, a essência é a “poesia”, a seiva que nos faz mais humanos. Vivo bolando saraus que me dão um prazer incrível. Puro delírio! “Delírio sensual, arco-íris de prazer”, como diz um samba-enredo. Adoro teatro e cinema! Gosto de TV também, mas com parcimônia. Escolho muito. Só a cabo! Aberta não dá! Salva nada! Tristeza só! Que atrizes! Fernanda Montenegro, Vanessa Redgrave, Nathália Timberg, Maryl Streep, Laura Cardoso, Liv Ullmann, Bibi Ferreira, Marion Cottilard, Beatriz Segall, Helen Mirren, Renata Sorrah, Emma Thompson, Eva Wilma, Kate Winslet, Marília Pêra, Anne Bancroft, Ana Beatriz Nogueira. Que atores! Paulo José, Ricardo Darín, Marco Nanini, Gérard Depardieu, Lima Duarte, Jeremy Irons, Juca de Oliveira, Daniel Day-Lewis, Matheus Nachtergaele, Eddie Redmayne, José Dumont, Gaspard Ulliel, Nelson Xavier. Gosto de cinema e de diretores: Godard, Truffaut, Fellini, Pasolini, Walter Salles, Glauber Rocha, Ingmar Bergman, Bertolucci, Woody Allen, Copolla, Vittorio De Sicca, Kurosawa. Detesto mentira, enganação e traição! Amigos não traem! Só gosto de propostas elegantes. Sou bom em escolhas. Às vezes, tropeço. Tudo bem. Se fracassar, saio logo. Sem depressão. Sou das praias desertas e das igrejas vazias. Restaurante vazio também é ótima opção. Simplicidade é sofisticação. Gosto de rituais. Adoro o Candomblé! A religião Espírita tem respostas muito à frente do que pregam as outras religiões. Adoro imagens de santos! Tenho várias. Sincretismo? Deve ser. Caminhada é “minha praia”. Não suporto shopping. Amo livrarias. Vinil é uma de minhas paixões. O antigo me atrai. Quando novo, eu era “velho com pouca idade”. Detesto “juventude de espírito”! Luar é a palavra mais bonita da língua portuguesa. Bicicletas me seduzem. Morro de saudade de muita gente. Às vezes, vou ao cemitério e fico lá. Gosto do ritual da saudade. Cemitério é pura paz. Gosto de confundir. Gosto do mistério que há em tudo. Já disseram que meu discurso é literário e ambíguo. Adoro música! Detesto música “brega”! Só música chique rola no carro e em casa: de Tom Jobim a Edu Lobo, Milton Nascimento e Elis Regina; de Flora Purim e Tania Maria a Ithamara Koorax; de Billie Holiday a Nana Caymmi; de Édith Piaf, a Dalva de Oliveira, Maysa e Maria Bethânia; de Sylvia Telles, Alaíde Costa, Astrud Gilberto a Nara Leão, Maria Creuza, Jane Duboc e Adriana Calcanhotto; de Sueli Costa a Fátima Guedes; de Gal Costa a Marisa Monte e Leila Maria; de Leny Andrade a Luciana Souza; de Gilberto Gil a Zeca Baleiro; de Caetano Veloso a Chico César; de Custódio Mesquita a Sérgio Sampaio e Sidney Miller; de Ivan Lins a Djavan; de Vinicius de Moraes a Aldir Blanc, Fernando Brant, Paulo César Pinheiro e Guinga; de Carmen Costa a Mônica Salmaso; de Helena de Lima a Ná Ozzetti; de Leny Eversong, Claudya e Yma Sumac a Cida Moreira, Fabiana Cozza e Simone Mazzer; de Clara Nunes a Teresa Cristina; de Marcos Sacramento a Paulinho da Viola; de Noel Rosa a Chico Buarque, Cazuza e Renato Russo; de Villa-Lobos a Pixinguinha; de Beethoven, Wagner, Mozart, Chopin, Shumann, Schubert, Brahms, Strauss, Vivaldi, Tchaikovsky, Ravel, Debussy, Gershwin, Bah a Carlos Gomes; de Ernesto Nazareth a Cartola; de Bidu Sayão a Clementina de Jesus; de Araci de Almeida a Roberta Sá; de Ella Fitzgerald a Carmen MacRae, Dinah Washington e Rosa Passos; de Duke Ellington, Art Blakey, John Coltrane, Thelonious Monk, Miles Davis, Dizzy Gillespie, Charlie Parker, Herbie Hancock, Chick Corea a Chet Baker; de Orlando Silva a Mário Reis, Lúcio Alves, Dick Farney e João Gilberto; de Marcelo Jenecy a Zé Miguel Wisnik; de Adoniran Barbosa a Arrigo Barnabé; de João Bosco a Tim Maia e Luiz Melodia; de Nelson Cavaquinho a Raphael Rabello; de Luiz Gonzaga a Luiz Gonzaga Jr.; de Omara Portuondo a Rita Beneditto; de Baden Powell a Marcel Powell; de Louis Armstrong a Elza Soares; de Elizeth Cardoso a Leila Pinheiro; de Áurea Martins a Célia; de Heleninha Costa a Zizi Possi; de Nora Ney a Janis Joplin e Angela RoRo; de Dolores Duran a Joyce e Simone Guimarães; de Carmem Miranda a Tetê Espíndola; de Demônios da Garoa a Casuarina; de Zimbo Trio e Os Cariocas a MPB4, Boca Livre e Nouvelle Cuisine; de Beth Carvalho a Mariene de Castro; de Martinho da Vila a Mart’nália; de João Nogueira a Diogo Nogueira; de Aretha Franklin a Rosa Marya Colin; de Ney Matogrosso a Titane e Ceumar; de Dorival a Dori e Danilo Caymmi; de Ary Barroso a Silas de Oliveira. Atenção! Na opaco da literatura, moram as clarezas. Não é preciso esconder a vida, nem exibi-la. Viver naturalmente é o melhor caminho. Gente sensível me enxerga. Parafraseando uma de nossas estrelas, gosto do que é quase banal e do é quase impossível. Wisnik, estou aprendendo a levitar. Chico César, vivo "em estado de poesia".



"(...) Discuti alto. Um, que estava com sua rede ali a próximo, de certo acordou com meu vozeio, e xingou xiu. Baixei, mas fui ponteando opostos. Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado... (...)"

In: Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa




 Sou um sujeito cheio de recantos.
Os desvãos me constam.
Tem hora leio avencas.
Tem hora, Proust.
Ouço aves e beethovens.
Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin.

O dia vai morrer aberto em mim.

Manoel de Barros




Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.





Ausência, Sophia de Mello Breyner Andresen




"(...) Agora começamos a aprender o que há de irremissível nas separações. Agora sabemos que jamais voltaremos a estar juntos; pois quando estivermos juntos perceberemos que já somos outros e estamos separados pelo tempo perdido na distância. Cada um de nós terá incorporado a si mesmo o tempo da ausência. Poderemos falar, falar, para nos correspondermos por cima dessa muralha dupla; mas não estaremos juntos; seremos duas outras pessoas, talvez por este motivo, melancólicas; talvez nem isso (...)"

Sobre o Amor, etc., Rubem Braga



 Há muito tempo, sim, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias. 
Eu mesmo envelheci. Olha, em relevo, 
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto: 
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças. 

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
"Deus te abençoe", e a noite se abri em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto 
a noite acumulada de meus dias, 
e sinto que estou vivo, e que não sonho. 

Carta, Carlos Drummond de Andrade





"(...) Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. (...)"

Perdoando Deus, Clarice Lispector






"(...) Quanto a mim, estremeço de gozo diante de um gesto delicado. As cordas do meu ser afinam-se de imediato com o som perfeito dos sentimentos humanos. E o seu mistério, presente em um simples ato, leva-me a confiar na civilização dos homens, a crer que cada um de nós merece sobreviver.
Ao surpreender gestos assim, retribuo a generosidade que me ofertaram sem cobrar nada em troca. Assinalo nas tábuas do amor a minha fé na bondade gratuita que brota da mesma região que inventou Deus. (...)"

In: Coração Andarilho, Nélida Piñon







        Havia um tempo de cadeiras na calçada. Era um tempo em que havia mais estrelas. Tempo em que as crianças brincavam sob a claraboia da lua. E o cachorro da casa era um grande personagem. E também o relógio de parede! Ele não media o tempo simplesmente: ele meditava o tempo.

Tempo perdido, Mario Quintana




"(...) A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não pereceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. [...]
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma."

                                                      Eu sei, mas não devia, Marina Colasanti




"(...) A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida toda uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem-disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. Mas como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor. Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixa preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de sofrimento ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões. (...)"

Para Maria da Graça, Paulo Mendes Campos



"(...) Nenhuma palavra vive sozinha. Toda palavra é composta. Se escrevo mar, nessa palavra rolam ondas, viajam barcos, cantam sereias, brilham estrelas, algas, conchas e outras praias. Se digo pai, é aquele que me ama ou aquele que não conheci ou aquele, ainda, que me abandonou. Toda palavra brinca de esconder outras palavras. Quando se lê uma palavra o coração escreve mais outras. Escrever é escutar a palavra e registrar o que ela nos pede. É a palavra que nos inscreve."

                                          In: Para ler em silêncio, Bartolomeu Campos de Queirós





"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces,
estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: ‘vem por aqui’!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

  Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: ‘vem por aqui’?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém,
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe,
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: ‘vem por aqui’!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!”
  Cântico negro, José Régio 




Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Poema em linha reta, Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa




"(...) Ai, Viramundo de minha vida, que vira Minas pelo avesso sem revelar aos meus olhos o seu mais impenetrável mistério. Ai, Minas de minha alma, alma de meu orgulho, orgulho de minha loucura, acendei uma luz no meu espírito, iluminai os desvãos do meu entendimento e mostrai-me onde se esconde esse vagabundo maravilhoso, esse meu irmão desvairado que no fundo vem a ser o melhor da minha razão de existir. Foi ele, esse iluminado de olhos cintilantes e cabelos desgrenhados que um dia saltou dentro de mim e gritou basta! num momento em que meu ser civilizado, bem penteado, bem vestido e ponderado dizia sim a uma injustiça. Foi ele quem amou a mulher e a colocou num pedestal e lhe ofertou uma flor. Foi ele quem sofreu quando jovem a emoção de um desencanto, e chorou quando menino a perda de um brinquedo, debatendo-se na camisa-de-força com que tolhiam o seu protesto. Este ser engasgado, contido, subjugado pela ordem iníqua dos racionais é o verdadeiro fulcro da minha verdadeira natureza, o cerne da minha condição de homem, herói e pobre-diabo, pária, negro, judeu, índio, cigano, santo, poeta, mendigo e débil mental, Viramundo! que um dia há de rebelar-se dentro de mim, enfim liberto, poderoso na sua fragilidade, terrível na pureza da sua loucura. (...)"
           In: O grande mentecapto, Fernando Sabino




TESTAMENTO
Manuel Bandeira

O que não tenho e desejo / É o que que melhor me enriquece. / Tive uns dinheiros - perdi-os... / Tive amores - esqueci-os. / Mas no maior desespero / Rezei: ganhei essa prece. // Vi terras da minha terra. / Por outras terras andei. / Mas o que ficou marcado / No meu olhar fatigado, / Foram terras que inventei. // Gosto muito de crianças: / Não tive um filho de meu. / Um filho!... Não foi de jeito... / Mas trago dentro do peito / Meu filho que não nasceu. // Criou-me desde eu menino, / Para arquiteto meu pai. / Foi-se-me um dia a saúde... / Fiz-me arquiteto? Não pude! / Sou poeta menor, perdoai! // Não faço versos de guerra. / Não faço porque não sei. / Mas num torpedo-suicida / Darei de bom grado a vida / Na luta em que não lutei!