sábado, 28 de outubro de 2017

NO ADESIVO DO CARRO: "EU AMO A MINHA FAMÍLIA..."


              NO ADESIVO DO CARRO: "EU AMO A MINHA FAMÍLIA..."
              Por Fábio Brito 

          Já vou entrar perguntando: ama mesmo, meu amigo? Pensando nas "milícias digitais" - de que nos fala Sakamoto em seu blogue - e também na perseguição a obras de arte (lembrei-me da Alemanha de Hitler...) que temos visto recentemente, preciso comentar um flagrante: dias atrás, voltando do trabalho, à noite, eis que passo por um local de minha cidade e vejo um carro contratando serviços das prostitutas que ficam por ali. Até aí tudo bem. O detalhe é que o carro ostentava, no vidro traseiro, o seguinte: "Eu amo a minha família". Estou pensando até agora nessa situação... Nada contra as prostitutas, que, aliás, têm um trabalho "pra" lá de honesto e corajoso. E quanto à criatura que "ama a família"? Deve ser mais uma dessas figurinhas que, de arma em punho, vão às ruas - ou às redes sociais - defender a moral e os bons costumes, mas que, nas madrugadas da vida, não devem desgrudar os olhos de "certos 'sites'"... Eita! Que mundo sincero, não? Que mundo, eu diria!
       Pegando carona nesse episódio do cara que "ama sua família", pensei no rebuliço que certos defensores "da moral e dos bons costumes" criaram por causa da "performance" "La bête", apresentada no MAM de São Paulo não faz muito tempo, e na exposição "Queermuseu", fechada para atender a pedidos de pessoas que "lutam em prol da moral e dos bons costumes". No MAM, há uma interação tátil entre público e artista. Tal "performance" teve como inspiração esculturas - da série "Bichos" - de Lygia Clark, em que uma das réplicas (de plástico) é manipulada pelo artista. Assim como na obra de Clark, que possibilita que suas partes sejam articuladas, o artista, que se apresenta nu, também pode ter a posição das partes de seu corpo modificadas pelo público. Num dos vídeos a que podemos assistir, que deflagrou revoltas, há uma mãe e sua filha menor, que, juntas, modificam a posição dos pés e das mãos do artista. E aí? Aí vêm as acusações de pedofilia. Cheguei a ler comentários - de gente conhecida até - de que se trata de "pedofilia institucionalizada". Vamos aos dicionários? Está lá o conceito de pedofilia. 
          Quanto à exposição "Queermuseu", uma das artistas da mostra, Alessandra Cunha Ropre, cuja obra "Pedofilia" foi objeto de ataques, foi muito clara, em entrevista à revista "Le monde diplomatique Brasil"*, ao afirmar que sua obra não faz apologia à pedofilia. Ao contrário, "essa pintura", como afirma Ropre, "integra uma série de 32 imagens que estão na mesma exposição. Todas denunciam alguma forma de violência contra mulheres cis e trans, crianças, 'gays' e outros oprimidos pela sociedade branca, patriarcal e machista". Quem censurou guiou-se apenas pelo título? Ou seja, o título foi o bastante para que a censura se fizesse presente e imperiosa? Procuraram entender a obra? O resultado é que não só a obra foi recolhida, mas a exposição teve seu fechamento decretado. Bom, se servir como consolo, nem tudo está perdido: em algumas instâncias, como frisou Ropre, promotores constataram que a imagem não faz "apologia a crimes sexuais contra crianças", mas, ao contrário, denunciam.  
        Parafraseando Sakamoto, no fundo, a  maioria das pessoas não está nem um pouco preocupada com a compreensão de uma simples notícia de jornal, de uma pintura, de uma escultura, de uma letra de canção, de um livro, de um filme. Nada! Veem tudo pela ótica mais rasa que há e saem por aí apedrejando. O "facebook" é uma plataforma excelente para que se verifique isso. Quando se publica algo que não era para gerar qualquer polêmica, mas gera, todos os "filósofos" do "face" saem de suas recônditas bibliotecas e vociferam na rede. Um exemplo bem recente é a enxurrada de comentários estapafúrdios que, por descuido, acabei lendo acerca da letra da canção "Tua cantiga", que puxa o novo CD de Chico Buarque, "Caravanas". Os versos "(...) Quando teu coração suplicar / Ou quando teu capricho exigir / Largo mulher e filhos / E de joelhos / Vou te seguir (...)" foram atiçados - sem dó e junto com seu autor - numa fogueira daquelas. Que prato cheio, Buarque! Largar mulher e filhos é uma afronta à família! Esse eu poético...! Novamente, a família serve de égide aos que defendem "a moral e os bons costumes". Para piorar, Chico Buarque é um artista declaradamente "de esquerda", como fazem questão de frisar.  
         Bom, no meio de todo esse barulho, há ângulos - dois, em especial - em que pouca gente pensou. O primeiro diz respeito ao choque e à surpresa que toda obra de arte, seja ela qual for, tem a pretensão de causar, como li num ótimo artigo recentemente publicado. Se as obras aqui comentadas causaram tanta celeuma, ou seja, se elas chocaram, cumpriram seu papel de obras de arte. Sem o impacto, tais obras se arrastariam no chãozinho gasto de nosso cotidiano tacanha. O segundo ponto nos põe de orelhas em pé para o seguinte: por trás de toda essa polêmica, seja envolvendo a "performance" no MAM, a exposição de Porto Alegre ou a letra do Chico, é evidente que estão certas milícias, que levam o povo para onde quiserem. Ainda lembrando Sakamoto, tais milícias imprimem o significado que bem entenderem ao objeto de seu ataque, sempre conectando esse objeto a ódios, preconceitos e recalques. O mais assustador é que muita (e ponha muita nisso!) gente "vai na onda". Ah, determinada peça de teatro é uma afronta a seus princípios morais? Ok. Não vá ao teatro! Certa exposição de um museu também fere seus princípios morais e éticos? Ok. Não vá ao museu! Se um filme está "bombando" nos cinemas, mas ele é ofensivo à sua família, a solução é simples: não vá ao cinema! Tudo muito simples, "tá" vendo? Quer uma solução? Fique em casa. Pensando bem, é melhor ir. Assim, o rebuliço que você causar vai, de certa forma, jogar luz sobre obras de arte. O problema é sair por aí e procurar um "líder" qualquer - há muitos! - e perguntar-lhe o que se deve fazer da vida. Certamente, ele vai indicar o "caminho certo  a ser seguido". Como pregava uma antiga brincadeira infantil, faça tudo o que seu mestre mandar. Assim caminha a humanidade em pleno século XXI. Ou melhor, em plena Idade Média.  

* Le monde diplomatique Brasil, ano 10, número 123, outubro 2017.



A CENSURA DÁ O BOTE

Aconteceu em 1996. Eu escrevia a novela Xica da Silva, para a extinta TV Manchete. Um sucesso. A certa altura, entrava uma bruxa na novela. Enfeitiçava algumas noviças que perseguiam um padre. Não acontecia nada de sexual. Mas uma foto, na imprensa, do padre deitado enquanto as noviças o rodeavam provocou uma onda de protestos. Rapidamente, alguém entrou com uma ação. (...). Fui censurado sem que ninguém  envolvido na denúncia visse as cenas. A censura é assim: cega. Artistas são execrados, proibidos de trabalhar, sem que a maior parte dos acusadores sequer veja o que foi apresentado. Da mesma maneira, quando veio o golpe militar, havia uma escritora de absoluto sucesso no Brasil: Cassandra Rios. Vendia aos milhares. Livros com temática lésbica ou simplesmente sexual. Veio a censura. Seus livros foram proibidos. Músicos, escritores e autores de teatro eram defendidos pela esquerda e pelos democratas contra os militares. Ninguém ergueu a voz para falar sobre Cassandra. Não falava sobre contradição social, tema caro à esquerda. Mas sobre sexo. Um tema que provoca horror tanto na direita, como na esquerda, como no centro.

A exposição Queermuseu, que o banco Santander estreou em Porto Alegre, aborda a relação entre as artes plásticas e o universo LGTB, com obras de artistas mais que renomados, como Flávio de Carvalho, Volpi e Adriana Varejão. Diante dos protestos, o Santander fechou a exposição. (...)

Em São Paulo, no MAM, a abertura da Mostra Panorama da Arte Brasileira teve uma performance do artista Wagner Schwartz, na qual os presentes podem manipular seu corpo. O vídeo de uma menina, devidamente acompanhada pela mãe, botou fogo nas opiniões. Houve acusações de pedofilia. (...)

Museus do mundo inteiro estão repletos de esculturas e pinturas de mulheres nuas, desde a Renascença. Exposições que as crianças visitam com professoras, para estudar. Mulher nua não provoca escândalo. Homem, sim. (E o universo LGTB achava que tinha conquistas espetaculares! Eis a realidade.) Eu mesmo postei um Instagram a favor do direito de expressão e da exposição. Fui xingado até a morte. Por pessoas que certamente não viram a exposição. Na época do golpe militar, a organização Tradição, Família e Propriedade fez manifestações em prol de supostos valores morais que seriam destruídos pelo governo democrático. Recentemente, no impeachment de Dilma, o que vimos foram deputados que nem sequer tocaram no objeto do julgamento. Se Dilma devia ser impedida ou não. Mas somente falaram da família, dos valores morais. (...) Mas há um valor acima de tudo isso: o direito de o pai educar o filho. O direito de uma família decidir o que seu filho pode ou não ver, assistir. Quando políticos pretendem dizer aos pais como educar seus filhos, estamos, sim, partindo para um estado totalitário. Um político não pode arbitrar em cima do “que acha” melhor para a população (...) Mas abrir espaço para as diversas manifestações culturais. Dar direito aos pais de escolher o que é melhor. Não é o estado que deve educar os filhos. Mas os pais. 
Essa posição que aparentemente defende, na verdade, é contra o que considero o principal valor familiar. O pai e a mãe têm o direito de escolher a religião, a escola e o que é melhor para seus filhos. O professor também. Tenho toda a confiança no discernimento dos pais e professores. E, para falar a verdade, nenhuma no dos políticos.
http://epoca.globo.com/sociedade/walcyr-carrasco/noticia/2017/10/censura-da-o-bote.html





Alô, liberdade



Enriquez - Bardotti - Chico Buarque

 
Alô, liberdade
Desculpa eu vir
Assim sem avisar
Mas já era tarde
E os galos tão
Cansados de cantar

Bom dia, alegria
A minha companhia
Vai cantar
Sutil melodia
Pra te acordar

Quem vai querer tocar trombeta
Pem pererém pererém
Pempem
Quem vai querer tocar matraca
Tracatracatraca
Tracatraca
Quem vai de flauta e clarineta
Fi firiri
Firiri fifi
Quem é que vai de prato e faca
Taca cheque taca
Chequetaca checá
Quem vai querer sair de banda
Pan pararan
Pararan panpan
Hoje a banda sairá

Alô, liberdade
Levanta, lava o rosto
Fica em pé
Como é, liberdade!
Ah, dona liberdade...
Vou ter que requentar
O teu café

Bom dia, alegria
A minha companhia
Vai cantar
Em doce harmonia
Pra te alegrar

Quem vem com a boca no trombone
Pom pororom pororom pompom
Quem vem com a bossa no pandeiro
Chá carachá carachá chachá
E quem só toca telefoneTrim tiririm
Tiririm trintrim
E quem só canta no chuveiro
Trá tralalá tralalá lalá
Quem vai querer sair na banda
Pan pararan
Pararan panpan
Hoje a banda sairá
Ah, sairá, sairá, sairá
Laiaralaialaialaiá
Hoje a banda sairá
Olá, liberdade!


Boi voador não pode
Chico Buarque - Ruy Guerra
 
Quem foi, quem foi
Que falou no boi voador
Manda prender esse boi
Seja esse boi o que for
O boi ainda dá bode
Qual é a do boi que revoa
Boi realmente não pode
Voar à toa
É fora, é fora, é fora
É fora da lei, é fora do ar
É fora, é fora, é fora
Segura esse boi
Proibido voar

http://www.chicobuarque.com.br/